Parece fumaça, mas é o reflexo do sol na água que balança. Mergulho um dos pés e logo minhas unhas pintadas de vermelho começam a se ondular. A informação é de que a temperatura da água é sempre de vinte e sete graus. Parece-me muito mais fria, quase gelada. Tanto que preciso me jogar de uma vez só, como num salto de fé, já sabendo, no entanto, que vou me acostumar e que vou, eventualmente, gostar de estar nessa zona líquida, habitat não natural. Percorro o caminho a braçadas. Repito algumas vezes até o coração chegar perto da garganta. Não há ninguém.
Eu moro aqui, longe de casa. Também num salto de fé percorro os dias num ambiente emprestado e que me proporciona tanta liberdade que, às vezes, me sinto sem ar. Respiro. Um homem e duas crianças chegam. Nossos olhares se cruzam e nossos pensamentos dizem que era preferível que não nos encontrássemos porque queremos aquele espaço de forma exclusiva. As crianças me encaram. Eu moro aqui. Moro longe de casa e gosto deste espaço temporário, deste tempo suspenso como se a vida fosse feita de aceitar convites de última hora, visitar todas as livrarias possíveis, pegar um trem que me leve a Lisboa quando eu bem entender e beber vinho às quatro da tarde numa terça-feira porque terminei todas as minhas possibilidades de escrita e leitura, não tenho que fazer o jantar, posso ligar a TV e entender a razão de não querer ver a TV.
O espanto e a liberdade
A moça da limpeza veio organizar o meu espaço de trabalho. Eu digo que não precisa e que eu posso arrumar tudo sozinha. Ela diz que deve limpar e que precisa abastecer o café, a água. O que a moça da limpeza não sabe é que, quando ela chegou, eu estava na febre de um texto e não queria falar com ninguém porque, se falasse, o texto desapareceria. Isso já me aconteceu tantas vezes.
Sei bem do que falo. Passo a me espantar com a velocidade com a qual nos acostumamos às coisas, e penso quando escrevi um livro de contos por inteiro enquanto meus filhos brincavam de carrinho ou loja debaixo da minha mesa de trabalho, aos meus pés. Aqui, agora, nesse silêncio e nessa liberdade, uma mosca que chega do outono quente de Cascais passa a me incomodar. Rio de mim mesma e do quão ridícula é essa intransigência. Mas é que nos acostumamos tão rápido com a liberdade.
A loucura é irresistível
Passo dias inteiros dentro do meu espaço de trabalho. Saio só para almoçar, uma caminhada. Às vezes, não estou e vou para outro espaço, outro mundo, a liberdade. Noite dessas e, de novo, aquela autonomia imensa nas minhas mãos. Abri o pequeno espaço da geladeira e me senti esperta porque o meu primeiro item comprado aqui foi um saca-rolhas. Saí do quarto e fui nadar. Ninguém. Eu moro aqui. Braçadas leves, água calma, a luz verde e tão brilhante. Ninguém. Saio da água e encontro o meu reflexo nítido no vidro: um corpo perfeitamente imperfeito como são todos os corpos. Não há ninguém no meu entorno. Eu moro aqui, longe de casa.
Shakespeare saía frequentemente de Stratford-upon-Avon para Londres, onde escrevia suas peças. Vivia, dizem, num quarto sobre uma taverna, longe dos filhos e de Anne. Shakespeare fica comigo na piscina. Não estou sozinha e já que, imagino, ninguém nos vê, abro um diálogo com ele. A loucura é praticamente irresistível. Moro aqui, eu digo aos seus ouvidos, suspensa entre parênteses que são a data de chegada e a data de partida.
Seja bem-vinda. Volte sempre.
Volto. Moro aqui, perto de casa.
Nara Vidal é escritora e tradutora. Escreve para Jornal Rascunho, A Tribuna de Minas e revista Quatro Cinco Um. Seu romance de estreia, Sorte (prêmio Oceanos, 2019), foi traduzido para o holandês e o espanhol, e Mapas para Desaparecer é finalista do prêmio Jabuti na categoria Conto. Edita a Capitolina Revista (prêmio APCA, 2021). É autora convidada da Residência Literária da Fundação Dom Luís I, em Cascais (Portugal). Mineira, vive na Inglaterra.
NOTÍCIAS DA PRIMEIRA EPIDEMIA por Rafael Freitas da Silva Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados …
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
SIMPLES É O CONTRÁRIO DO FÁCIL por Adalberto Ribeiro, o Beto, da Livraria Simples Janeiro de 2016. O corre Simples de vender livros já estava valendo. Avisei para geral: abri uma livraria, se precisar de algum livro pode contar comigo que vai ser bem Simples. Eu tinha poucos reais no bolso, mas sabia que …
QUEM LIGA? por Ana Elisa Ribeiro Abri o Facebook e aquela enxurrada vertical de postagens e links começou a rolar. Li então um conhecido, poeta, perguntar como lidar com a situação de pessoas queridas que não valorizam em nada o que a gente produz. Ele não era explícito, não dizia qual exatamente era a …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
MORO AQUI
por Nara Vidal
Parece fumaça, mas é o reflexo do sol na água que balança. Mergulho um dos pés e logo minhas unhas pintadas de vermelho começam a se ondular. A informação é de que a temperatura da água é sempre de vinte e sete graus. Parece-me muito mais fria, quase gelada. Tanto que preciso me jogar de uma vez só, como num salto de fé, já sabendo, no entanto, que vou me acostumar e que vou, eventualmente, gostar de estar nessa zona líquida, habitat não natural. Percorro o caminho a braçadas. Repito algumas vezes até o coração chegar perto da garganta. Não há ninguém.
Eu moro aqui, longe de casa. Também num salto de fé percorro os dias num ambiente emprestado e que me proporciona tanta liberdade que, às vezes, me sinto sem ar. Respiro. Um homem e duas crianças chegam. Nossos olhares se cruzam e nossos pensamentos dizem que era preferível que não nos encontrássemos porque queremos aquele espaço de forma exclusiva. As crianças me encaram. Eu moro aqui. Moro longe de casa e gosto deste espaço temporário, deste tempo suspenso como se a vida fosse feita de aceitar convites de última hora, visitar todas as livrarias possíveis, pegar um trem que me leve a Lisboa quando eu bem entender e beber vinho às quatro da tarde numa terça-feira porque terminei todas as minhas possibilidades de escrita e leitura, não tenho que fazer o jantar, posso ligar a TV e entender a razão de não querer ver a TV.
O espanto e a liberdade
A moça da limpeza veio organizar o meu espaço de trabalho. Eu digo que não precisa e que eu posso arrumar tudo sozinha. Ela diz que deve limpar e que precisa abastecer o café, a água. O que a moça da limpeza não sabe é que, quando ela chegou, eu estava na febre de um texto e não queria falar com ninguém porque, se falasse, o texto desapareceria. Isso já me aconteceu tantas vezes.
Sei bem do que falo. Passo a me espantar com a velocidade com a qual nos acostumamos às coisas, e penso quando escrevi um livro de contos por inteiro enquanto meus filhos brincavam de carrinho ou loja debaixo da minha mesa de trabalho, aos meus pés. Aqui, agora, nesse silêncio e nessa liberdade, uma mosca que chega do outono quente de Cascais passa a me incomodar. Rio de mim mesma e do quão ridícula é essa intransigência. Mas é que nos acostumamos tão rápido com a liberdade.
A loucura é irresistível
Passo dias inteiros dentro do meu espaço de trabalho. Saio só para almoçar, uma caminhada. Às vezes, não estou e vou para outro espaço, outro mundo, a liberdade. Noite dessas e, de novo, aquela autonomia imensa nas minhas mãos. Abri o pequeno espaço da geladeira e me senti esperta porque o meu primeiro item comprado aqui foi um saca-rolhas. Saí do quarto e fui nadar. Ninguém. Eu moro aqui. Braçadas leves, água calma, a luz verde e tão brilhante. Ninguém. Saio da água e encontro o meu reflexo nítido no vidro: um corpo perfeitamente imperfeito como são todos os corpos. Não há ninguém no meu entorno. Eu moro aqui, longe de casa.
Shakespeare saía frequentemente de Stratford-upon-Avon para Londres, onde escrevia suas peças. Vivia, dizem, num quarto sobre uma taverna, longe dos filhos e de Anne. Shakespeare fica comigo na piscina. Não estou sozinha e já que, imagino, ninguém nos vê, abro um diálogo com ele. A loucura é praticamente irresistível. Moro aqui, eu digo aos seus ouvidos, suspensa entre parênteses que são a data de chegada e a data de partida.
Seja bem-vinda. Volte sempre.
Volto. Moro aqui, perto de casa.
Nara Vidal é escritora e tradutora. Escreve para Jornal Rascunho, A Tribuna de Minas e revista Quatro Cinco Um. Seu romance de estreia, Sorte (prêmio Oceanos, 2019), foi traduzido para o holandês e o espanhol, e Mapas para Desaparecer é finalista do prêmio Jabuti na categoria Conto. Edita a Capitolina Revista (prêmio APCA, 2021). É autora convidada da Residência Literária da Fundação Dom Luís I, em Cascais (Portugal). Mineira, vive na Inglaterra.
Posts relacionados
COLUNA PINDORAMA
NOTÍCIAS DA PRIMEIRA EPIDEMIA por Rafael Freitas da Silva Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados …
COLUNA LIVRE
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
COLUNA LIVRE
SIMPLES É O CONTRÁRIO DO FÁCIL por Adalberto Ribeiro, o Beto, da Livraria Simples Janeiro de 2016. O corre Simples de vender livros já estava valendo. Avisei para geral: abri uma livraria, se precisar de algum livro pode contar comigo que vai ser bem Simples. Eu tinha poucos reais no bolso, mas sabia que …
COLUNA MARCA PÁGINA
QUEM LIGA? por Ana Elisa Ribeiro Abri o Facebook e aquela enxurrada vertical de postagens e links começou a rolar. Li então um conhecido, poeta, perguntar como lidar com a situação de pessoas queridas que não valorizam em nada o que a gente produz. Ele não era explícito, não dizia qual exatamente era a …