Minha vida entre os livros começou cedo e a paixão por eles me levou a ambições que nunca me abandonaram, enquanto não se convertem em incômodas frustrações. Fui para a faculdade de Letras perseguindo uma ideia que sempre correu mais que eu, mas deu para me aproximar do alvo. Mais de duas décadas atrás, quando eu achava que escaparia da vida de professora, fui assistente editorial e até editora assistente em algumas editoras mineiras. Dei uma sorte danada, em especial no primeiro emprego, de topar com gente com quem eu aprendia até por osmose.
Naqueles tempos, nossa equipe cuidava da produção de livros didáticos. Éramos três pessoas, cada uma com suas missões em áreas diferentes. Passávamos o dia confinados em uma sala cujas janelas davam para um pátio central, num prédio com chão de ardósia. E ali líamos, recortávamos, revisávamos, relíamos, procurávamos imagens, pesquisávamos textos, falávamos com autores e autoras, ilustradores e ilustradoras, acompanhávamos o trabalho de outros profissionais, tudo atrás de mesas beges e conectados a computadores de tela de tubo. Mal existia PDF! As provas de prelo começavam a sumir e ainda era impossível suspeitar de algo como a impressão digital.
No meio desse povo todo que trabalhava dia e noite para que os livros ficassem prontos e bons, estava a preparadora. Não sei até hoje que idade ela tinha, com quem se parecia, se era alta ou baixa, se usava batom ou pintava as unhas. Só sabíamos que ela morava em São Paulo e tinha uma voz firme. Vivia dessa profissão que descobríamos ali e que ninguém sabia explicar direito o que era. Tratávamos com uma preparadora de originais de mão pesada e inteligência arguta. Provas dos livros didáticos saíam de nossas impressoras e seguiam pelos Correios direto para o endereço dela. Passavam dias, às vezes semanas, em São Paulo, sob os cuidados daquela mulher, que devolvia tudo muito rabiscado e colorido.
Quando as caixas da preparadora voltavam, corríamos feito crianças famintas em busca daqueles mistérios. Abríamos tudo, espalhávamos os volumes sobre nossas mesas e olhávamos, olhávamos, olhávamos. Passávamos as páginas por horas a fio, observando cada mudança feita no texto, cada vírgula, alteração de pontuação, marcação com cor, rabisco ou interrogação. Cada sugestão da preparadora era ouro. A chefe do editorial se derretia em elogios a ela, e nós, aprendizes ciumentas, pensávamos quando é que chegaríamos aos pés da misteriosa profissional.
Fada do texto
Nosso contato com a preparadora era esse, mediado pelo trabalho que ela enviava de volta em caixas pesadas. Tudo organizadamente rabiscado, cheio de lógica e delicadeza, ao mesmo tempo que as mudanças faziam uma diferença enorme nos textos que seriam publicados. Ela encontrava incoerências, dava sugestões muito mais inteligentes e apontava detalhes quase invisíveis. Era uma espécie de fada do texto, aos pés de quem sonhávamos chegar, mesmo sem saber direito onde é que se aprendia aquilo. Na faculdade não era, isso a gente já sabia. Como é que alguém se tornava preparadora?
À medida que fomos ganhando intimidade com a papelada preparada por ela, passamos a ter coragem de telefonar. Vez ou outra, acometidos de uma dúvida insuportável, ligávamos para ela e queríamos aprender algo. Por que você tirou estas aspas? Que critério você usa para passar o ponto para depois? Por que você reescreveu este trecho? E as perguntas não a impacientavam. Talvez ela tivesse certo senso pedagógico ou achasse divertido ensinar para uma turma de iniciantes, mas o fato é que nunca demonstrou irritação com nossa curiosidade editorial.
Eis que, um dia, recebemos uma notícia inquietante: a preparadora visitaria Belo Horizonte. Viria de avião para um compromisso e passaria pela editora para um café e um dedo de prosa. Passamos, ansiosas, a reunir questões, dúvidas, suspeitas. Queríamos dicas, observaríamos, provavelmente, as mãos da preparadora, imaginando-as calejadas nas laterais dos dedos que seguravam canetas e borrachas. Pensávamos, talvez, que ela guardasse apontadores na cabeleira e tivesse um cinto de utilidades feito o do Batman, só que com tesoura, marca-textos, corretivos e estiletes. Era quase um ser mitológico, com garras de caneta e pés de compasso.
No grande dia, voltamos mais cedo do almoço a fim de recepcionar a preparadora já no hall do prédio. Escovamos os dentes, envergamos nossas camisas de botão e colarinho, enfiamos marca-textos nos bolsos da calça, com as ponteiras visíveis. Ela chegaria já, já. O café novo rescendia pelo corredor, o filtro cheio de água, pão de queijo no forno da cozinha dos funcionários. A preparadora estava para chegar.
Passadas horas de inútil ansiedade, a chefe do editorial surgiu em nossa sala com sua bata esvoaçante a nos dar, sem muita delicadeza, a terrível notícia: voo cancelado. A preparadora ficara em São Paulo e não teria mais condições de vir a BH, muito menos à editora. Que decepção. Até Santos Dumont levou bordoada. Que tragédia. Que tristeza. Nada de respostas às nossas dúvidas gramaticais ou às nossas suspeitas sobre textos que fluem feito corredeiras cristalinas. Nunca mais. E assim jamais conhecemos pessoalmente A Preparadora.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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COLUNA MARCA PÁGINA
O MISTÉRIO DA PREPARADORA
por Ana Elisa Ribeiro
Minha vida entre os livros começou cedo e a paixão por eles me levou a ambições que nunca me abandonaram, enquanto não se convertem em incômodas frustrações. Fui para a faculdade de Letras perseguindo uma ideia que sempre correu mais que eu, mas deu para me aproximar do alvo. Mais de duas décadas atrás, quando eu achava que escaparia da vida de professora, fui assistente editorial e até editora assistente em algumas editoras mineiras. Dei uma sorte danada, em especial no primeiro emprego, de topar com gente com quem eu aprendia até por osmose.
Naqueles tempos, nossa equipe cuidava da produção de livros didáticos. Éramos três pessoas, cada uma com suas missões em áreas diferentes. Passávamos o dia confinados em uma sala cujas janelas davam para um pátio central, num prédio com chão de ardósia. E ali líamos, recortávamos, revisávamos, relíamos, procurávamos imagens, pesquisávamos textos, falávamos com autores e autoras, ilustradores e ilustradoras, acompanhávamos o trabalho de outros profissionais, tudo atrás de mesas beges e conectados a computadores de tela de tubo. Mal existia PDF! As provas de prelo começavam a sumir e ainda era impossível suspeitar de algo como a impressão digital.
No meio desse povo todo que trabalhava dia e noite para que os livros ficassem prontos e bons, estava a preparadora. Não sei até hoje que idade ela tinha, com quem se parecia, se era alta ou baixa, se usava batom ou pintava as unhas. Só sabíamos que ela morava em São Paulo e tinha uma voz firme. Vivia dessa profissão que descobríamos ali e que ninguém sabia explicar direito o que era. Tratávamos com uma preparadora de originais de mão pesada e inteligência arguta. Provas dos livros didáticos saíam de nossas impressoras e seguiam pelos Correios direto para o endereço dela. Passavam dias, às vezes semanas, em São Paulo, sob os cuidados daquela mulher, que devolvia tudo muito rabiscado e colorido.
Quando as caixas da preparadora voltavam, corríamos feito crianças famintas em busca daqueles mistérios. Abríamos tudo, espalhávamos os volumes sobre nossas mesas e olhávamos, olhávamos, olhávamos. Passávamos as páginas por horas a fio, observando cada mudança feita no texto, cada vírgula, alteração de pontuação, marcação com cor, rabisco ou interrogação. Cada sugestão da preparadora era ouro. A chefe do editorial se derretia em elogios a ela, e nós, aprendizes ciumentas, pensávamos quando é que chegaríamos aos pés da misteriosa profissional.
Fada do texto
Nosso contato com a preparadora era esse, mediado pelo trabalho que ela enviava de volta em caixas pesadas. Tudo organizadamente rabiscado, cheio de lógica e delicadeza, ao mesmo tempo que as mudanças faziam uma diferença enorme nos textos que seriam publicados. Ela encontrava incoerências, dava sugestões muito mais inteligentes e apontava detalhes quase invisíveis. Era uma espécie de fada do texto, aos pés de quem sonhávamos chegar, mesmo sem saber direito onde é que se aprendia aquilo. Na faculdade não era, isso a gente já sabia. Como é que alguém se tornava preparadora?
À medida que fomos ganhando intimidade com a papelada preparada por ela, passamos a ter coragem de telefonar. Vez ou outra, acometidos de uma dúvida insuportável, ligávamos para ela e queríamos aprender algo. Por que você tirou estas aspas? Que critério você usa para passar o ponto para depois? Por que você reescreveu este trecho? E as perguntas não a impacientavam. Talvez ela tivesse certo senso pedagógico ou achasse divertido ensinar para uma turma de iniciantes, mas o fato é que nunca demonstrou irritação com nossa curiosidade editorial.
Eis que, um dia, recebemos uma notícia inquietante: a preparadora visitaria Belo Horizonte. Viria de avião para um compromisso e passaria pela editora para um café e um dedo de prosa. Passamos, ansiosas, a reunir questões, dúvidas, suspeitas. Queríamos dicas, observaríamos, provavelmente, as mãos da preparadora, imaginando-as calejadas nas laterais dos dedos que seguravam canetas e borrachas. Pensávamos, talvez, que ela guardasse apontadores na cabeleira e tivesse um cinto de utilidades feito o do Batman, só que com tesoura, marca-textos, corretivos e estiletes. Era quase um ser mitológico, com garras de caneta e pés de compasso.
No grande dia, voltamos mais cedo do almoço a fim de recepcionar a preparadora já no hall do prédio. Escovamos os dentes, envergamos nossas camisas de botão e colarinho, enfiamos marca-textos nos bolsos da calça, com as ponteiras visíveis. Ela chegaria já, já. O café novo rescendia pelo corredor, o filtro cheio de água, pão de queijo no forno da cozinha dos funcionários. A preparadora estava para chegar.
Passadas horas de inútil ansiedade, a chefe do editorial surgiu em nossa sala com sua bata esvoaçante a nos dar, sem muita delicadeza, a terrível notícia: voo cancelado. A preparadora ficara em São Paulo e não teria mais condições de vir a BH, muito menos à editora. Que decepção. Até Santos Dumont levou bordoada. Que tragédia. Que tristeza. Nada de respostas às nossas dúvidas gramaticais ou às nossas suspeitas sobre textos que fluem feito corredeiras cristalinas. Nunca mais. E assim jamais conhecemos pessoalmente A Preparadora.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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