ISTO É UM PANÓPTICO? ou NOTAS SOBRE TRADUÇÃO E TRADUZIR
por Moacir Amâncio
Sempre estranhei a língua portuguesa. Emoções e pensamentos não cabem direito nas palavras. Lendo Clarice Lispector, pelo modo como ela escrevia, percebi: falar e escrever são duas experiências básicas do traduzir. Falo na Clarice porque ela tem uma escrita colada ao orgânico e isso é o que mais se destaca nela. É um drama constante. Tudo vibra dentro da óbvia artificialidade da língua, de todas as línguas. Sempre há um intervalo intransponível entre o que a gente pensa e sente e a palavra. Depois li um texto do Octavio Paz no qual ele dizia a mesma coisa sobre as correntes alternantes do traduzir.
Na prática, isso fica mais claro quando falamos ou traduzimos não de nós mesmos, mas de um texto escrito numa outra língua, apesar da diferença no ponto de partida. Repete-se, de modo geral, a situação: como dizer em português o que está dito em inglês ou qualquer outro idioma? A ideia de se chegar à reconstituição exata do que está em inglês, na língua portuguesa, qualquer outra ou vice-versa, é tão impossível quanto a expressão perfeita em português do que julgamos ter pensado em português. A língua pensa por nós, então o ponto é enfrentar esse desacerto que envolve e nos engana com a suposta invulnerabilidade do fato dado e fantasmagorias como a língua mãe.
Escrever um texto, digamos próprio – com todas as reservas –, tem tudo a ver com trazer para o português o que está dito em outra língua, perguntando-se a respeito do não dito por nós e pelos demais autores, pulsando nas entrelinhas. O texto é fixo até quando alguém abre o livro. Basta pegarmos originais ou traduções ao longo da história para verificar como muita coisa muda, tanto que, tradicionalmente, as traduções vêm incluídas nas obras completas de um escritor. Cada geração precisa de novas traduções. Toda escrita é pessoal e impessoal, por conta da língua. Ou melhor, das línguas.
Escolhas, releituras, fluxo
Não sou tradutor profissional. As pessoas estranham quando digo isso. Traduzo muito pouco, prefiro traduzir para mim mesmo, primeiro lendo, depois escrevendo. Traduzir para publicar, prefiro escolher. Em geral, as releituras bastam. Todo leitor sabe o que é voltar a um livro lido há tempos, ou relido. O fluxo da leitura encontra acidentes, tropeçamos na memória que não confere com as surpresas do momento. Há pessoas que temem reler aqueles livros dos quais gostaram tanto na juventude ou há três anos. Como se tivessem medo das alterações que acontecem em todos nós, à espera de serem descobertas.
Prazo é fator complicado para a entrega de uma tradução por encomenda – escrever não tem na verdade um tempo, mas o tempo. Temos de aceitar a limitação das condições da vida que não é só nossa, ser realistas – não sou tanto, embora faça concessões. Posso até traduzir com certa rapidez, mas quando já conheço e convivo com a obra do autor. Mesmo assim, quando retorno ao texto traduzido, meu primeiro impulso é começar a fazer mudanças aqui, ali, rever o ritmo. Isso também ocorre com meus próprios textos, tanto que evito reler. Escrever não tem fim. É como olhar no espelho e não se reconhecer – mesma rotina de fazer a barba pela manhã. Não se reconhecer jamais. Essa não é a minha cara.
Compulsão
Melhor traduzir por compulsão. Uma primeira e temerária experiência tradutória foi quando li um poema do Allen Ginsberg. Gosto e sou leitor de Ginsberg até hoje, ele me provoca, tenho muito pouco a ver com suas ideias. É sempre um desafio. Preferir o suposto semelhante é um equívoco. Temperamentos coincidem e isso é uma armadilha contra nós mesmos. Eu estava na Cásper Líbero, cursando jornalismo. Entre os ótimos professores, lá estava o poeta e tradutor Péricles Eugênio da Silva Ramos, acessível aos alunos, sem desandar nos critérios. Mostrei a tradução a ele. Só lembro que, para evitar rima em português, eu tinha usado uma palavra menos corriqueira do que seria esperado, e ele percebeu no ato, sem surpresa. Fiquei surpreendido porque ele aprovou, com ponderações, o que eu havia feito. Só voltaria ao assunto com o professor Péricles trinta anos depois.
Como eu treinava a prosa desde muito cedo, passei a traduzir trechos de autores que eu lia. Para entender o processo de sua escrita, aprender com eles – sem garantia nenhuma de resultado, fazer por fazer, pois como traduzir Joseph Conrad pensando em se igualar a ele, é ridículo. Não, eu traduzia, como outras pessoas já fizeram, para verificar como seria o Conrad em português. Em português, só havia, ou eu só conhecia Lord Jim, mas quando comparei com o original vi que o estilo do Conrad, aquelas frases longas, musicadas, estavam curtas, mais para Hemingway, então deixei de lado e fiquei com o original. Até falei com o tradutor para saber se ele havia utilizado o original ou tradução francesa. Com paciência, era coisa antiga, ele verificou e um dia me disse que tinha sido do francês. O texto era ótimo, o tradutor escrevia excepcionalmente bem. Depois de ler o original inglês, resolvi concluir a leitura da tradução, pela experiência da leitura proporcionada pelo tradutor.
Eu costumava traduzir trechos. Ou contos. Mas do Thomas Clayton Wolfe, escritor estadunidense que eu lia bastante – a dica veio de Henry Miller –, resolvi traduzir a novela O Filho Pródigo. Sempre aquilo, você não pode voltar para casa. Guardei por acidente o original da minha versão. Por outro acidente, reencontrei há algum tempo e talvez venha a publicá-lo, o autor está em domínio público. Sim, existe a tradução da Marilene Felinto, beleza, comparar os dois textos foi interessante, conversa a três – infelizmente não tive até hoje a oportunidade de conhecê-la. Sem nenhuma ideia de competir, apenas porque é uma versão com minhas variantes.
Essa situação acontece quando mais de um cantor interpreta a mesma canção, ou um instrumentista. Há coincidências inevitáveis para frases objetivas, verbos, expressões, mas algo ou muito pode mudar. Fiquei contente quando vi a tradução da Marilene – eu tinha a sensação de ser o único sujeito que lia aquele escritor por aqui. Já éramos três pelo menos. Geraldo Santos cita o Thomas na epígrafe do romance Vento de Mar Aberto.
Na tradução acrescenta-se mais uma personagem, ou seja, o tradutor, assim vai. Quanto à solidão do leitor eu me acostumei – não existe saída para isso. Como se cada um lesse os livros que estão à sua espera. Faz parte.
Sala de espelhos distorcidos
Certa vantagem da tradução coincide com certa vantagem da leitura. A leitura também é histórica, mas tem a vertigem da exclusividade, cada um sente e pensa do seu jeito, ou deveria. Tradução também é resultado de uma leitura, mas sendo de outra pessoa. Quando a gente lê uma tradução, lê duplamente, o autor tido como original e o tradutor, o mais recente, talvez, ou antigo. Se eu leio Ovídio na versão de Bocage me deparo com a duplicidade que se acrescenta a uma terceira pessoa, que é o hipotético e isolado leitor de qualquer época, mas nesse momento seria eu mesmo, acaso imperdível.
Outra experiência é ler traduções em outras línguas, de textos que a gente já conhece do português ou do original. Por exemplo, Machado de Assis em outras línguas. Ou Ungaretti, ou Drummond em inglês. Ou Walt Whitman em italiano, castelhano, por aí vai. Por que não García Márquez ou Pessoa em qualquer idioma que esteja ao alcance? Borges em hebraico. É tudo aspecto de uma mesma história, talvez sem pé nem cabeça, sem fim, fascinante. São iluminações da imensidão, numa releitura momentaneamente inspirada por Ungaretti, aqui e agora.
Leitura, interpretação, é uma sala de espelhos, na maioria distorcidos, quase nada combina, até que de repente surgem simetrias mais estranhas do que as deformidades aparentes até segunda ordem. A primeira fase do interpretar se dá no momento da leitura, dependendo da inspiração – há quem insista que a inspiração é de quem se expressa, mas desconfio de que, nesse capítulo, a inspiração do leitor também conta, e muito.
Penso na leitura mecânica. Quando se pensa ou se lê aquele trecho bíblico sobre o tempo em que “toda a terra tinha uma só língua e mesmas palavras” (Gênesis 11, Bíblia Hebraica, Sêfer) e a posterior confusão das línguas por causa da Torre de Babel. Aquelas linhas, examinadas através da infinidade de lentes colocadas sobre elas, não atestam uma leitura intelectiva e inspirada, mas apenas um gesto condicionado culturalmente quando “confirmamos” a ideia do castigo por causa da vã e vazia ambição humana. Como se fosse uma nova expulsão de um paraíso de comunhões – algo que nunca existiu, muito menos no Éden. Pena máxima: os seres humanos perderam a oportunidade da língua única, agora morrerão infinitas mortes em vida.
No entanto, se alguém atentar para a leitura do comentarista italiano Ovádia Sforno (sec. XV-XVI), vemos que o rabino joga outra luz sobre o horror de Babel, onde um tijolo valia mais do que uma vida humana. E hoje? Quanto vale uma vida humana, hoje? Então. A ponte foi feita por um autor importante, mas completamente ou quase desconhecido por aqui chamado Yeshaiahu (Isaías) Leibovitz (1903-1994), nascido em Riga, Letônia, que se tornaria israelense de primeira hora.
Pelos comentários bíblicos desses dois pensadores judeus podemos também concluir que a tal confusão das línguas não foi maldição, mas uma bênção. Livrou-nos do perigo totalitário da língua única e, por tabela, do pensamento único, da conduta única, da doutrina única, da cara única, da “raça” única, da estupidez programada, da automatização. Temos ali um momento inaugural da alteridade, difundindo-se os seres humanos por toda a terra a partir da confusão prismática das línguas, de nós mesmos, assim seja. Segundo o rabino Ovádia, o objetivo do projeto idolátrico-totalitário, tema de Gênesis 11, era fazer com que o rei do momento “fosse considerado deus dos deuses de todos os seres humanos”, ou seja, que o rei “reinasse sobre aquela cidade e todo o gênero humano”.
A língua mais traduzida do mundo é a que falamos no dia a dia. Alguém resolveu fazer pichações no Rio de Janeiro com um verso de Jorge de Lima, o que foi esclarecido mais tarde, após o impacto: “Celacanto provoca maremoto”. Provoca mesmo. Como entender esse conjunto de palavras? A imprensa tratou do caso, que durou além do esperado na mídia. Efeito Babel. Recomeço. Acabei de ler no celular que pescadores japoneses enlouqueceram ao trazer nas redes, esses dias, um peixe enorme, de aspecto feroz, vindo das regiões abissais. O celacanto não parecia existir por lá. Como se a pichação feita no Rio emergisse tumultuosa de outras águas. E assusta, abala, muda tudo. Releitura, retradução. Quem é fóssil sempre aparece.
Traduzir é ato de urgência
A tradução mecânica mata a tradução no limite utilitário. Traduzir é um ato de urgência e opções inclusive imponderáveis: plural. Vamos repetir: todo leitor é, antes de tudo, tradutor na origem. Não podemos nos esquecer de que todas as línguas pertencem a toda a humanidade, a cada um de nós. Há o caso daqueles que escrevem num outro idioma. Conrad não cresceu falando inglês, sua primeira língua era o polonês. No século XIX e em boa parte do XX, escritores judeus da Europa Central e Oriental escreviam ficção, poesia, ensaística em três ou quatro línguas. Um deles, Micha Berdichevski, dizia que considerava o iídiche língua materna, então escrevia a pesquisa da cultura popular judaica nesse idioma. Como a língua paterna era o hebraico (tudo ficção dentro de ficção), ele escrevia suas narrativas imaginadas em hebraico. Mas o diário era escrito em alemão, talvez porque vivia na Alemanha. Fim do mito da “língua mãe”. Dizem que Celan, tradutor de Emily Dickinson e Pessoa, pensava em francês e escrevia em alemão. E Nabokov?
Houve um talentoso escritor brasileiro que, diante da dificuldade alegada pela tradutora estadunidense de um de seus livros, assumiu a tarefa e recebeu os maiores elogios. Certa vez, tentei puxar conversa a respeito, num programa de TV, mas ele disse que não se preocupava com gloríolas como essa. Eu poderia perguntar se a participação num programa televisivo também não seria gloríola, mas entendi que ele simplesmente evitara falar de assunto um tanto complicado para aquele momento e veículo.
Joyce fez com que as línguas se atabalhoassem esplendidamente. Quando li em voz alta para um amigo um trecho do “Ulisses” traduzido para o hebraico, ele perguntou de quem era o texto, se era do Agnon – o maior escritor hebraico contemporâneo. Independentemente da linguagem usada. Vejamos como Giorgio Morandi traduziu outro Giorgio, de Chirico. Que, antes, traduziu Morandi. Giorgio, Giorgi.
Ver: “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges.
Moacir Amâncio é autor dos poemas Ata (reunião de oito livros), Matula e Yona e o Andrógino – notas sobre poesia e cabala. Traduziu poetas israelenses como Ronny Someck, Yona Wollach, Yehuda Amichai, Tal Nitzán. Para a Relicário traduziu A paisagem correta, de Amir Or. É professor de literatura hebraica na USP.
A escrita como vício, conversa realizada em 23 de novembro de 2021, por ocasião do Circuito Marguerite Duras, teve entre os convidados/as a pesquisadora Isabela Bosi, que nos brindou com a leitura de um texto cheio de rigor e profundidade, o qual, a pedidos, reproduzimos aqui no Blog da Relicário, por ocasião da chegada de …
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COLUNA LIVRE
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por Moacir Amâncio
Sempre estranhei a língua portuguesa. Emoções e pensamentos não cabem direito nas palavras. Lendo Clarice Lispector, pelo modo como ela escrevia, percebi: falar e escrever são duas experiências básicas do traduzir. Falo na Clarice porque ela tem uma escrita colada ao orgânico e isso é o que mais se destaca nela. É um drama constante. Tudo vibra dentro da óbvia artificialidade da língua, de todas as línguas. Sempre há um intervalo intransponível entre o que a gente pensa e sente e a palavra. Depois li um texto do Octavio Paz no qual ele dizia a mesma coisa sobre as correntes alternantes do traduzir.
Na prática, isso fica mais claro quando falamos ou traduzimos não de nós mesmos, mas de um texto escrito numa outra língua, apesar da diferença no ponto de partida. Repete-se, de modo geral, a situação: como dizer em português o que está dito em inglês ou qualquer outro idioma? A ideia de se chegar à reconstituição exata do que está em inglês, na língua portuguesa, qualquer outra ou vice-versa, é tão impossível quanto a expressão perfeita em português do que julgamos ter pensado em português. A língua pensa por nós, então o ponto é enfrentar esse desacerto que envolve e nos engana com a suposta invulnerabilidade do fato dado e fantasmagorias como a língua mãe.
Escrever um texto, digamos próprio – com todas as reservas –, tem tudo a ver com trazer para o português o que está dito em outra língua, perguntando-se a respeito do não dito por nós e pelos demais autores, pulsando nas entrelinhas. O texto é fixo até quando alguém abre o livro. Basta pegarmos originais ou traduções ao longo da história para verificar como muita coisa muda, tanto que, tradicionalmente, as traduções vêm incluídas nas obras completas de um escritor. Cada geração precisa de novas traduções. Toda escrita é pessoal e impessoal, por conta da língua. Ou melhor, das línguas.
Escolhas, releituras, fluxo
Não sou tradutor profissional. As pessoas estranham quando digo isso. Traduzo muito pouco, prefiro traduzir para mim mesmo, primeiro lendo, depois escrevendo. Traduzir para publicar, prefiro escolher. Em geral, as releituras bastam. Todo leitor sabe o que é voltar a um livro lido há tempos, ou relido. O fluxo da leitura encontra acidentes, tropeçamos na memória que não confere com as surpresas do momento. Há pessoas que temem reler aqueles livros dos quais gostaram tanto na juventude ou há três anos. Como se tivessem medo das alterações que acontecem em todos nós, à espera de serem descobertas.
Prazo é fator complicado para a entrega de uma tradução por encomenda – escrever não tem na verdade um tempo, mas o tempo. Temos de aceitar a limitação das condições da vida que não é só nossa, ser realistas – não sou tanto, embora faça concessões. Posso até traduzir com certa rapidez, mas quando já conheço e convivo com a obra do autor. Mesmo assim, quando retorno ao texto traduzido, meu primeiro impulso é começar a fazer mudanças aqui, ali, rever o ritmo. Isso também ocorre com meus próprios textos, tanto que evito reler. Escrever não tem fim. É como olhar no espelho e não se reconhecer – mesma rotina de fazer a barba pela manhã. Não se reconhecer jamais. Essa não é a minha cara.
Compulsão
Melhor traduzir por compulsão. Uma primeira e temerária experiência tradutória foi quando li um poema do Allen Ginsberg. Gosto e sou leitor de Ginsberg até hoje, ele me provoca, tenho muito pouco a ver com suas ideias. É sempre um desafio. Preferir o suposto semelhante é um equívoco. Temperamentos coincidem e isso é uma armadilha contra nós mesmos. Eu estava na Cásper Líbero, cursando jornalismo. Entre os ótimos professores, lá estava o poeta e tradutor Péricles Eugênio da Silva Ramos, acessível aos alunos, sem desandar nos critérios. Mostrei a tradução a ele. Só lembro que, para evitar rima em português, eu tinha usado uma palavra menos corriqueira do que seria esperado, e ele percebeu no ato, sem surpresa. Fiquei surpreendido porque ele aprovou, com ponderações, o que eu havia feito. Só voltaria ao assunto com o professor Péricles trinta anos depois.
Como eu treinava a prosa desde muito cedo, passei a traduzir trechos de autores que eu lia. Para entender o processo de sua escrita, aprender com eles – sem garantia nenhuma de resultado, fazer por fazer, pois como traduzir Joseph Conrad pensando em se igualar a ele, é ridículo. Não, eu traduzia, como outras pessoas já fizeram, para verificar como seria o Conrad em português. Em português, só havia, ou eu só conhecia Lord Jim, mas quando comparei com o original vi que o estilo do Conrad, aquelas frases longas, musicadas, estavam curtas, mais para Hemingway, então deixei de lado e fiquei com o original. Até falei com o tradutor para saber se ele havia utilizado o original ou tradução francesa. Com paciência, era coisa antiga, ele verificou e um dia me disse que tinha sido do francês. O texto era ótimo, o tradutor escrevia excepcionalmente bem. Depois de ler o original inglês, resolvi concluir a leitura da tradução, pela experiência da leitura proporcionada pelo tradutor.
Eu costumava traduzir trechos. Ou contos. Mas do Thomas Clayton Wolfe, escritor estadunidense que eu lia bastante – a dica veio de Henry Miller –, resolvi traduzir a novela O Filho Pródigo. Sempre aquilo, você não pode voltar para casa. Guardei por acidente o original da minha versão. Por outro acidente, reencontrei há algum tempo e talvez venha a publicá-lo, o autor está em domínio público. Sim, existe a tradução da Marilene Felinto, beleza, comparar os dois textos foi interessante, conversa a três – infelizmente não tive até hoje a oportunidade de conhecê-la. Sem nenhuma ideia de competir, apenas porque é uma versão com minhas variantes.
Essa situação acontece quando mais de um cantor interpreta a mesma canção, ou um instrumentista. Há coincidências inevitáveis para frases objetivas, verbos, expressões, mas algo ou muito pode mudar. Fiquei contente quando vi a tradução da Marilene – eu tinha a sensação de ser o único sujeito que lia aquele escritor por aqui. Já éramos três pelo menos. Geraldo Santos cita o Thomas na epígrafe do romance Vento de Mar Aberto.
Na tradução acrescenta-se mais uma personagem, ou seja, o tradutor, assim vai. Quanto à solidão do leitor eu me acostumei – não existe saída para isso. Como se cada um lesse os livros que estão à sua espera. Faz parte.
Sala de espelhos distorcidos
Certa vantagem da tradução coincide com certa vantagem da leitura. A leitura também é histórica, mas tem a vertigem da exclusividade, cada um sente e pensa do seu jeito, ou deveria. Tradução também é resultado de uma leitura, mas sendo de outra pessoa. Quando a gente lê uma tradução, lê duplamente, o autor tido como original e o tradutor, o mais recente, talvez, ou antigo. Se eu leio Ovídio na versão de Bocage me deparo com a duplicidade que se acrescenta a uma terceira pessoa, que é o hipotético e isolado leitor de qualquer época, mas nesse momento seria eu mesmo, acaso imperdível.
Outra experiência é ler traduções em outras línguas, de textos que a gente já conhece do português ou do original. Por exemplo, Machado de Assis em outras línguas. Ou Ungaretti, ou Drummond em inglês. Ou Walt Whitman em italiano, castelhano, por aí vai. Por que não García Márquez ou Pessoa em qualquer idioma que esteja ao alcance? Borges em hebraico. É tudo aspecto de uma mesma história, talvez sem pé nem cabeça, sem fim, fascinante. São iluminações da imensidão, numa releitura momentaneamente inspirada por Ungaretti, aqui e agora.
Leitura, interpretação, é uma sala de espelhos, na maioria distorcidos, quase nada combina, até que de repente surgem simetrias mais estranhas do que as deformidades aparentes até segunda ordem. A primeira fase do interpretar se dá no momento da leitura, dependendo da inspiração – há quem insista que a inspiração é de quem se expressa, mas desconfio de que, nesse capítulo, a inspiração do leitor também conta, e muito.
Penso na leitura mecânica. Quando se pensa ou se lê aquele trecho bíblico sobre o tempo em que “toda a terra tinha uma só língua e mesmas palavras” (Gênesis 11, Bíblia Hebraica, Sêfer) e a posterior confusão das línguas por causa da Torre de Babel. Aquelas linhas, examinadas através da infinidade de lentes colocadas sobre elas, não atestam uma leitura intelectiva e inspirada, mas apenas um gesto condicionado culturalmente quando “confirmamos” a ideia do castigo por causa da vã e vazia ambição humana. Como se fosse uma nova expulsão de um paraíso de comunhões – algo que nunca existiu, muito menos no Éden. Pena máxima: os seres humanos perderam a oportunidade da língua única, agora morrerão infinitas mortes em vida.
No entanto, se alguém atentar para a leitura do comentarista italiano Ovádia Sforno (sec. XV-XVI), vemos que o rabino joga outra luz sobre o horror de Babel, onde um tijolo valia mais do que uma vida humana. E hoje? Quanto vale uma vida humana, hoje? Então. A ponte foi feita por um autor importante, mas completamente ou quase desconhecido por aqui chamado Yeshaiahu (Isaías) Leibovitz (1903-1994), nascido em Riga, Letônia, que se tornaria israelense de primeira hora.
Pelos comentários bíblicos desses dois pensadores judeus podemos também concluir que a tal confusão das línguas não foi maldição, mas uma bênção. Livrou-nos do perigo totalitário da língua única e, por tabela, do pensamento único, da conduta única, da doutrina única, da cara única, da “raça” única, da estupidez programada, da automatização. Temos ali um momento inaugural da alteridade, difundindo-se os seres humanos por toda a terra a partir da confusão prismática das línguas, de nós mesmos, assim seja. Segundo o rabino Ovádia, o objetivo do projeto idolátrico-totalitário, tema de Gênesis 11, era fazer com que o rei do momento “fosse considerado deus dos deuses de todos os seres humanos”, ou seja, que o rei “reinasse sobre aquela cidade e todo o gênero humano”.
A língua mais traduzida do mundo é a que falamos no dia a dia. Alguém resolveu fazer pichações no Rio de Janeiro com um verso de Jorge de Lima, o que foi esclarecido mais tarde, após o impacto: “Celacanto provoca maremoto”. Provoca mesmo. Como entender esse conjunto de palavras? A imprensa tratou do caso, que durou além do esperado na mídia. Efeito Babel. Recomeço. Acabei de ler no celular que pescadores japoneses enlouqueceram ao trazer nas redes, esses dias, um peixe enorme, de aspecto feroz, vindo das regiões abissais. O celacanto não parecia existir por lá. Como se a pichação feita no Rio emergisse tumultuosa de outras águas. E assusta, abala, muda tudo. Releitura, retradução. Quem é fóssil sempre aparece.
Traduzir é ato de urgência
A tradução mecânica mata a tradução no limite utilitário. Traduzir é um ato de urgência e opções inclusive imponderáveis: plural. Vamos repetir: todo leitor é, antes de tudo, tradutor na origem. Não podemos nos esquecer de que todas as línguas pertencem a toda a humanidade, a cada um de nós. Há o caso daqueles que escrevem num outro idioma. Conrad não cresceu falando inglês, sua primeira língua era o polonês. No século XIX e em boa parte do XX, escritores judeus da Europa Central e Oriental escreviam ficção, poesia, ensaística em três ou quatro línguas. Um deles, Micha Berdichevski, dizia que considerava o iídiche língua materna, então escrevia a pesquisa da cultura popular judaica nesse idioma. Como a língua paterna era o hebraico (tudo ficção dentro de ficção), ele escrevia suas narrativas imaginadas em hebraico. Mas o diário era escrito em alemão, talvez porque vivia na Alemanha. Fim do mito da “língua mãe”. Dizem que Celan, tradutor de Emily Dickinson e Pessoa, pensava em francês e escrevia em alemão. E Nabokov?
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