Esta pergunta pressupõe que ser escritora seja uma espécie de eclosão, assunção ou até mesmo metamorfose. A gente nasce, cresce e, um dia, a depender de alguma coisa externa, sente-se apta a se considerar escritora. Mas confesso que me impressionam mesmo e me chamam a atenção as pessoas que se dizem escritoras desde sempre, que lançam meio livro ou um e são despachadas o suficiente para se dizerem escritoras. É alguma coisa que me toca, de fora. Precisei de muito mais para me sentir minimamente escritora – e digo minimamente porque é o que sinto. Há uma dependência qualquer do externo, e esse externo nunca vem ou jamais está à altura da exigência que eu mesma me faço. Publiquei dezenas de livros. Já são dezenas! Para públicos diversos, em editoras de variados portes. Ainda assim, mal tenho condições de me confessar escritora.
E o que falta então?
Nunca pensei nos critérios, eles nunca foram nítidos para mim. Suspeito que haja uns elementos que precisam acontecer combinados. Lembro de dar OK num item da provável lista quando na imprensa me chamaram de “a escritora”. Naquele momento, senti uma espécie de clique e um brevíssimo alívio. Lá por dentro, ainda de maneira inconfessável, pensei: opa, alguém acha, e da imprensa. Depois a gente percebe que isso também tem suas camadas. E a autoexigência se mantém. Tem os elementos que são constitutivos, isto é, fundacionais, sem eles não existe escritora: escrever. E depois tem um que dá essa dimensão pública ou quase pública: publicar. Depois a gente descobre que isso também tem dimensões e camadas, que os valores são atribuídos diferentemente se a pessoa publica aqui ou ali, este ou aquele gênero editorial ou literário, se alcança o público x ou y etc. Camadas inalcançáveis, em muitos casos. Tem também outros itens nesta lista, mas reitero que sempre muito nebulosos. Quando um livro recebe uma resenha, bom, talvez a gente ande uma casa para a frente no tabuleiro; a depender da autoria e do espaço de publicação dessa resenha, mais casas, até saltadas! Se o livro ou a obra chamam a atenção e ganham um estudo na universidade, outras casas. Aí continua dependendo de qual universidade, se dentro ou fora do país, em que região, se é pesquisa de graduação (TCC), mestrado ou doutorado. Se o livro vira ponto de alguma disciplina universitária também faz diferença, mas tem de ver quem é o/a professor/a, quem mais está no programa, qual é o enfoque. Dependendo, recai sobre nós uma maldição, porque uns podem ser inimigos dos outros. Mas os riscos disso são diminutos para a maioria de nós. Virar verbete em dicionários e enciclopédia especializados, para além da Wikipédia; constar em levantamentos e antologias, a depender de quem organiza e da editora que lança, ah, também se é impresso ou digital; constar em listas de fim de ano, isso também vale. Prêmios, considerando também seus alcances e suas importâncias, assim como esferas (local, regional, nacional, internacional) e valor pago, quando há. Nossa, é muita coisa. Mas tudo pode ser percebido de dentro do ambiente e não depende do trabalho, do esforço, da constância. Depende de variáveis, algumas das quais inalcançáveis, pura miragem, como ter certos sobrenomes, ser filho ou filha deste ou daquele que alcançaram alguma graça escritoral dessas. É preciso saber disso e jogar com o possível. E pode ser que sempre falte, falte, falte.
Mas você pode dar um exemplo?
Ah, claro, com o cuidado de não dar muitos, incontáveis, para não cansar ninguém. Muito recentemente mesmo rolou algo na imprensa que sempre acontece. O curioso não é acontecer, mas é acontecer há mais de vinte anos e nunca terminar. Meio milagrosamente, apareci numa lista de escritores e escritoras mineiros/as que deveriam ser lidos e conhecidos do público. Vejamos: saiu na imprensa, ok, mas avalie-se então o porte do jornal, seu âmbito de circulação, quem era o/a jornalista, junto de quem, listados por quem. Respondendo: era um jornal local, digo, que talvez tenha circulação estadual, pouco conhecido fora, e na versão digital. Que eu saiba não teve versão impressa da tal lista. Foi uma matéria, na verdade quase só uma lista mesmo, escrita por um jornalista que não é famoso, com nomes variados, citados por gente bamba da cena mineira. Isso é suficientemente interessante: quando sai em determinados lugares, a gente é municipal ou estadual; em um ou dois lugares, tudo é brasileiro. A perspectiva abarcadora, mesmo que seja, na maioria das vezes, pretensiosa, é interessante e poderia nos ensinar algo. Bom, Drummond já cantava essa bola há tempos. Mas um elemento da lista que me chamou a atenção foi na brevíssima descrição de quem era aquela poeta (no caso, eu). Todos e todas foram sumamente apresentados, mas é impressionante que tenham escrito sobre mim a seguinte frase: “A jovem autora é também cronista…”. O que quero apontar está neste começo de frase, que poderia, a esta altura, até me agradar pelo efeito rejuvenescedor que poderia ter, se esta fosse minha preocupação. É claro que levei zoada de amigas e amigos com esse “jovem autora”, já que todos eles e elas entenderam o que está por trás disso. Para além de certa falta de apuração e do fato de eu estar mais perto dos 50 anos do que dos 40, é impressionante como tudo faz parecer que estamos sempre começando, que jamais saímos do lugar, que se escreve, escreve, escreve, publica, publica, publica, mas é como num pesadelo desses em que a gente corre sem sair do lugar. É isso, e fica a pergunta: quando é que deixaremos de ser “jovens autoras” para alcançar a maturidade literária? Esta poderia ser uma pergunta desta entrevista, mas fica apenas como provocação. É retórica, já que talvez não haja solução no horizonte, por enquanto. Cada livro novo é como o primeiro? Cada livro novo ainda serve para que nos (re)conheçam? Cada livro novo é como um retorno no tempo, sem memória? Quem quer ser “jovem autora” para sempre? Eu, não. Mas nem no esforço de ficar velha o efeito tem sido alcançado. Que legal estar na lista, mas que tristeza ainda como iniciante.
Isso é ressentimento?
Pode se transformar em, claro. Há muitas e muitos autores ressentidos, sem dúvida. Gênios não reconhecidos, segundo eles/elas próprios/as, mas por enquanto isso tudo faz parte do meu interesse nessas dinâmicas da escrita e da edição de livros. O segredo não está em trabalhar muito. Isso pode ser até perda de tempo. Geralmente, o segredo está em outro lugar, muito menos discernível. Para a maioria de nós, é como tentar capturar borboletas que, na verdade, são projeções apenas. Elas certamente vão atravessar a rede, diante dos nossos olhos.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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COLUNA MARCA PÁGINA
ENTREVISTA FICTÍCIA DA ESCRITORA IMAGINÁRIA
por Ana Elisa Ribeiro
Esta pergunta pressupõe que ser escritora seja uma espécie de eclosão, assunção ou até mesmo metamorfose. A gente nasce, cresce e, um dia, a depender de alguma coisa externa, sente-se apta a se considerar escritora. Mas confesso que me impressionam mesmo e me chamam a atenção as pessoas que se dizem escritoras desde sempre, que lançam meio livro ou um e são despachadas o suficiente para se dizerem escritoras. É alguma coisa que me toca, de fora. Precisei de muito mais para me sentir minimamente escritora – e digo minimamente porque é o que sinto. Há uma dependência qualquer do externo, e esse externo nunca vem ou jamais está à altura da exigência que eu mesma me faço. Publiquei dezenas de livros. Já são dezenas! Para públicos diversos, em editoras de variados portes. Ainda assim, mal tenho condições de me confessar escritora.
E o que falta então?
Nunca pensei nos critérios, eles nunca foram nítidos para mim. Suspeito que haja uns elementos que precisam acontecer combinados. Lembro de dar OK num item da provável lista quando na imprensa me chamaram de “a escritora”. Naquele momento, senti uma espécie de clique e um brevíssimo alívio. Lá por dentro, ainda de maneira inconfessável, pensei: opa, alguém acha, e da imprensa. Depois a gente percebe que isso também tem suas camadas. E a autoexigência se mantém. Tem os elementos que são constitutivos, isto é, fundacionais, sem eles não existe escritora: escrever. E depois tem um que dá essa dimensão pública ou quase pública: publicar. Depois a gente descobre que isso também tem dimensões e camadas, que os valores são atribuídos diferentemente se a pessoa publica aqui ou ali, este ou aquele gênero editorial ou literário, se alcança o público x ou y etc. Camadas inalcançáveis, em muitos casos. Tem também outros itens nesta lista, mas reitero que sempre muito nebulosos. Quando um livro recebe uma resenha, bom, talvez a gente ande uma casa para a frente no tabuleiro; a depender da autoria e do espaço de publicação dessa resenha, mais casas, até saltadas! Se o livro ou a obra chamam a atenção e ganham um estudo na universidade, outras casas. Aí continua dependendo de qual universidade, se dentro ou fora do país, em que região, se é pesquisa de graduação (TCC), mestrado ou doutorado. Se o livro vira ponto de alguma disciplina universitária também faz diferença, mas tem de ver quem é o/a professor/a, quem mais está no programa, qual é o enfoque. Dependendo, recai sobre nós uma maldição, porque uns podem ser inimigos dos outros. Mas os riscos disso são diminutos para a maioria de nós. Virar verbete em dicionários e enciclopédia especializados, para além da Wikipédia; constar em levantamentos e antologias, a depender de quem organiza e da editora que lança, ah, também se é impresso ou digital; constar em listas de fim de ano, isso também vale. Prêmios, considerando também seus alcances e suas importâncias, assim como esferas (local, regional, nacional, internacional) e valor pago, quando há. Nossa, é muita coisa. Mas tudo pode ser percebido de dentro do ambiente e não depende do trabalho, do esforço, da constância. Depende de variáveis, algumas das quais inalcançáveis, pura miragem, como ter certos sobrenomes, ser filho ou filha deste ou daquele que alcançaram alguma graça escritoral dessas. É preciso saber disso e jogar com o possível. E pode ser que sempre falte, falte, falte.
Mas você pode dar um exemplo?
Ah, claro, com o cuidado de não dar muitos, incontáveis, para não cansar ninguém. Muito recentemente mesmo rolou algo na imprensa que sempre acontece. O curioso não é acontecer, mas é acontecer há mais de vinte anos e nunca terminar. Meio milagrosamente, apareci numa lista de escritores e escritoras mineiros/as que deveriam ser lidos e conhecidos do público. Vejamos: saiu na imprensa, ok, mas avalie-se então o porte do jornal, seu âmbito de circulação, quem era o/a jornalista, junto de quem, listados por quem. Respondendo: era um jornal local, digo, que talvez tenha circulação estadual, pouco conhecido fora, e na versão digital. Que eu saiba não teve versão impressa da tal lista. Foi uma matéria, na verdade quase só uma lista mesmo, escrita por um jornalista que não é famoso, com nomes variados, citados por gente bamba da cena mineira. Isso é suficientemente interessante: quando sai em determinados lugares, a gente é municipal ou estadual; em um ou dois lugares, tudo é brasileiro. A perspectiva abarcadora, mesmo que seja, na maioria das vezes, pretensiosa, é interessante e poderia nos ensinar algo. Bom, Drummond já cantava essa bola há tempos. Mas um elemento da lista que me chamou a atenção foi na brevíssima descrição de quem era aquela poeta (no caso, eu). Todos e todas foram sumamente apresentados, mas é impressionante que tenham escrito sobre mim a seguinte frase: “A jovem autora é também cronista…”. O que quero apontar está neste começo de frase, que poderia, a esta altura, até me agradar pelo efeito rejuvenescedor que poderia ter, se esta fosse minha preocupação. É claro que levei zoada de amigas e amigos com esse “jovem autora”, já que todos eles e elas entenderam o que está por trás disso. Para além de certa falta de apuração e do fato de eu estar mais perto dos 50 anos do que dos 40, é impressionante como tudo faz parecer que estamos sempre começando, que jamais saímos do lugar, que se escreve, escreve, escreve, publica, publica, publica, mas é como num pesadelo desses em que a gente corre sem sair do lugar. É isso, e fica a pergunta: quando é que deixaremos de ser “jovens autoras” para alcançar a maturidade literária? Esta poderia ser uma pergunta desta entrevista, mas fica apenas como provocação. É retórica, já que talvez não haja solução no horizonte, por enquanto. Cada livro novo é como o primeiro? Cada livro novo ainda serve para que nos (re)conheçam? Cada livro novo é como um retorno no tempo, sem memória? Quem quer ser “jovem autora” para sempre? Eu, não. Mas nem no esforço de ficar velha o efeito tem sido alcançado. Que legal estar na lista, mas que tristeza ainda como iniciante.
Isso é ressentimento?
Pode se transformar em, claro. Há muitas e muitos autores ressentidos, sem dúvida. Gênios não reconhecidos, segundo eles/elas próprios/as, mas por enquanto isso tudo faz parte do meu interesse nessas dinâmicas da escrita e da edição de livros. O segredo não está em trabalhar muito. Isso pode ser até perda de tempo. Geralmente, o segredo está em outro lugar, muito menos discernível. Para a maioria de nós, é como tentar capturar borboletas que, na verdade, são projeções apenas. Elas certamente vão atravessar a rede, diante dos nossos olhos.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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