ELOGIO DA PARTILHA: A TRADUÇÃO DE ‘BRILHA COMO VIDA’
por Patricia Peterle e Andrea Santurbano
Neste relato, Patricia Peterle e Andrea Santurbano descrevem o ofício da tradução partindo da máxima que a escrita é sempre um convite para uma partilha.
Como uma constatação de vida, que carrega suas marcas, feridas e cicatrizes, eles trabalharam a quatro mãos, na tradução do italiano para o português, o romance ‘Brilha como vida’, o qual enxergam como “um livro musical, marcado por um ritmo peculiar; um livro plástico”.
Autora inédita no Brasil, a italiana Maria Grazia Calandrone virá ao Brasil nos dias 4 e 5 de outubro para encontros e atividades no Rio de Janeiro e São Paulo, com o apoio do Instituto Italiano de Cultura. A Relicário divulgará, em breve, a agenda com a programação dos eventos gratuitos e imperdíveis com Calandrone em ambas as cidades. Entre as atividades, estão previstos bate-papos, oficinas e encontro com clubes de leitura.
***
Patricia Peterle e Andrea Santurbano
A escrita é sempre um convite para uma partilha. Um convite que, por si só, pressupõe o outro, mesmo que ele não esteja ali. A língua nos toca, nos envolve. O estopim de Brilha como vida, de Maria Grazia Calondrone, é uma revelação que lhe é feita ainda quando criança por sua mãe: “Mãe revelou Eu não sou a sua Mamãe Verdadeira”. Qual o peso dessas palavras para quem as pronuncia e para quem as escuta? Essa frase do romance concentra toda uma tensão expressada e demarcada pela escolha do uso das letras maiúsculas e dos termos Mãe e MamãeVerdadeira. Aqui inicia o desequilíbrio da relação, um descompasso que não tem como ficar de fora e é absorvido pela língua literária de Calandrone. A partitura da relação é desestabilizada, os compassos são desfeitos para que se possa seguir com outros andamentos. Talvez por isso a contaminação entre prosa e poesia seja um de seus elementos.
Ritmo e disfarces
O ritmo – de páginas inteiras, de períodos, de linhas, de palavras individuais – é a marca da escrita de Calandrone. Nas páginas de Brilha como vida, há o ritmo sincopado de uma memória fragmentária, seletiva, sem pretensão de exaustão ou linearidade. Trata-se de um livro de disfarces, prosa e poesia, mais claramente revelados no início e no fim pela inserção de versos, mas que a toda hora pode abrigar no corpo do texto um alexandrino ou um decassílabo em forma de prosa.
Não raros foram os momentos de troca também com os revisores, à procura do limiar em que a língua de chegada não é forçada desafinadamente, mas, ao mesmo tempo, pode acolher num descompasso ritmado, o timbre e a voz, sempre pessoal, dos grandes autores. O ritmo de prosa poética da autora exigiu um afinamento dos tradutores, que deram vida à voz de Calandrone em português, desnaturalizando as vozes iniciais e as línguas envolvidas, abrindo espaço para a escuta do outro em si. O que foi sendo traçado ao longo do processo de tradução foi um lugar paradoxal de afetos entre corpos – incluindo os corpos das línguas.
Disfarces ainda do tempo e de sua passagem, cadenciados a partir de músicas de sucesso, que ecoam na memória da protagonista e lhe emprestam frases marcantes de suas letras. Escrita ainda caracterizada por repentinos registros coloquiais, revelando épocas e lugares autobiográficos, que se alternam a variações de tom. Movimentos que não deixam de seguir as oscilações da memória, a qual afasta e aproxima, como uma sanfona, as imagens conforme revisitadas e revividas. Reproduzindo, assim, aqueles movimentos de presença-ausência, vivência-passado, vida-morte, proporcionados por recortes de jornais e fotos pessoais que desencadearam essa autobiografia ficcional.
Em uma história que expõe relações e sentimentos tão íntimos e pessoais, mas que por isso mesmo é capaz de falar a muita gente que pode se reconhecer em algumas situações, a autora narra:
O que mais pedir, à vida de um ser humano, senão essa direção obstinada rumo ao “aberto”?
As palavras são a parte mais concreta da matéria.
A matéria é uma brincadeira bem-sucedida.
As palavras não são nunca completamente limpas.
Escuta e performance
A tradução é uma reescrita, é um processo de se dar ao outro e de receber algo. Como toda e qualquer relação, a tradução é cheia de tensões e crises, mas é, sobretudo, um gesto de amor.
Quantos mundos são passíveis de serem construídos na tradução? Quantos mundos são apagados na construção de uma tradução? Aqueles nós que corroem e perturbam a leitura do tradutor precisam ser invisibilizados? Certamente não. O que acontece nesse elogio ao estar juntos, ao desejo de partilha que se inscreve na tradução? No caso de Brilha como vida, primeira obra de Maria Grazia Calandrone traduzida para o português no Brasil, esse elogio foi potencializado pelo fato de a tradução ter sido feita a quatro mãos. Um convívio que durou meses, desafiou as singularidades envolvidas, exigiu a busca por elos, mesmo que algumas fissuras fossem mantidas.
Uma das discussões nos bastidores da tradução se deu em relação às notas explicativas dos tradutores: uma tendência às notas veio por parte da Patricia e um freio a essas explicações foi dado pelo Andrea. Ao longo do processo, notas foram descartadas, o texto foi encontrando seu ritmo e começava a falar uma língua outra que, ao mesmo tempo que os tradutores dominavam, também escapava deles.
A tradução de Brilha como vida pode ser vista tanto como escuta quanto performance, realizada em determinado momento, que pode se repetir, mas que nunca será igual. A própria tradução é uma espécie de nova vida. Ali cada gesto, cada escolha são únicos, naquele específico segundo. Se é possível dizer que uma língua performa o mundo no seu discurso, a tradução, por sua vez, se configura como uma performatividade outra.
A escrita chama pelo outro, por alguém, como já lembrava Paul Celan. É aquela garrafa lançada no mar que fica à deriva até encontrar possíveis destinos.
Patricia Peterle (1974) é professora de Literatura Italiana na UFSC e atua na Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da USP. Tradutora, crítica literária e poeta, traduziu Giorgio Agamben, Giovanni Pascoli, Giorgio Caproni, Enrico Testa, Eugenio De Signoribus, Roberto Esposito, Franco Rella, Valerio Magrelli. Escreveu e organizou ensaios publicados no Brasil e na Itália. Entre seus livros, estão No limite da palavra: percursos pela poesia italiana (2015), Vozes: cinco décadas de poesia italiana (2017), A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni (2018), A palavra esgarçada: Giorgio Caproni (2018), No reverso do verso (2022).
Andrea Santurbano (1970) cursou doutorado e pós-doutorado na Itália. Professor de Literatura Italiana e Comparada na UFSC, coordena o Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana (Neclit) e coedita a revista Mosaico Italiano. Realiza pesquisas sobre Manganelli, Savinio, Morselli, Walser, Sebald e Bernhard. Traduziu filósofos como Agamben, Rella e Esposito, e escritores e poetas como Manganelli, Mari, Testa e Maria Grazia Calandrone.
“ISSO É UMA LIVRARIA?” por Giuseppe Zani, da Jacaré Livros Em meados de agosto de 2021, durante a pandemia de Covid-19, abri as portas da Livraria Jacaré, com títulos de segunda mão, no fundo de uma galeria do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Tinha muita dúvida se as pessoas viriam – eu …
DOIS DE CADA por Ana Elisa Ribeiro Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes …
GUIA TURÍSTICO DE ‘O RIO ANTES DO RIO’ por Rafael Freitas da Silva Neste mês, a Relicário Edições comemora oito anos de existência em contribuições à literatura e cultura editorial do Brasil. Por isso, a coluna Pindorama de outubro é dedicada à editora que desde 2019 não só abraçou, mas sobretudo renovou O Rio …
NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN por Patrícia Lavelle Em 15 de julho de 2022, o berlinense Walter Benjamin completaria 130 anos. Um dos mais relevantes filósofos e pensadores de todos os tempos, o jovem Benjamin peregrinou por universidades na Alemanha e na Suíça, onde realizou doutorado em filosofia durante a Primeira Guerra Mundial. Nos anos …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
ELOGIO DA PARTILHA:
A TRADUÇÃO DE ‘BRILHA COMO VIDA’
por Patricia Peterle e Andrea Santurbano
Neste relato, Patricia Peterle e Andrea Santurbano descrevem o ofício da tradução partindo da máxima que a escrita é sempre um convite para uma partilha.
Como uma constatação de vida, que carrega suas marcas, feridas e cicatrizes, eles trabalharam a quatro mãos, na tradução do italiano para o português, o romance ‘Brilha como vida’, o qual enxergam como “um livro musical, marcado por um ritmo peculiar; um livro plástico”.
Autora inédita no Brasil, a italiana Maria Grazia Calandrone virá ao Brasil nos dias 4 e 5 de outubro para encontros e atividades no Rio de Janeiro e São Paulo, com o apoio do Instituto Italiano de Cultura. A Relicário divulgará, em breve, a agenda com a programação dos eventos gratuitos e imperdíveis com Calandrone em ambas as cidades. Entre as atividades, estão previstos bate-papos, oficinas e encontro com clubes de leitura.
***
Patricia Peterle e Andrea Santurbano
A escrita é sempre um convite para uma partilha. Um convite que, por si só, pressupõe o outro, mesmo que ele não esteja ali. A língua nos toca, nos envolve. O estopim de Brilha como vida, de Maria Grazia Calondrone, é uma revelação que lhe é feita ainda quando criança por sua mãe: “Mãe revelou Eu não sou a sua Mamãe Verdadeira”. Qual o peso dessas palavras para quem as pronuncia e para quem as escuta? Essa frase do romance concentra toda uma tensão expressada e demarcada pela escolha do uso das letras maiúsculas e dos termos Mãe e Mamãe Verdadeira. Aqui inicia o desequilíbrio da relação, um descompasso que não tem como ficar de fora e é absorvido pela língua literária de Calandrone. A partitura da relação é desestabilizada, os compassos são desfeitos para que se possa seguir com outros andamentos. Talvez por isso a contaminação entre prosa e poesia seja um de seus elementos.
Ritmo e disfarces
O ritmo – de páginas inteiras, de períodos, de linhas, de palavras individuais – é a marca da escrita de Calandrone. Nas páginas de Brilha como vida, há o ritmo sincopado de uma memória fragmentária, seletiva, sem pretensão de exaustão ou linearidade. Trata-se de um livro de disfarces, prosa e poesia, mais claramente revelados no início e no fim pela inserção de versos, mas que a toda hora pode abrigar no corpo do texto um alexandrino ou um decassílabo em forma de prosa.
Não raros foram os momentos de troca também com os revisores, à procura do limiar em que a língua de chegada não é forçada desafinadamente, mas, ao mesmo tempo, pode acolher num descompasso ritmado, o timbre e a voz, sempre pessoal, dos grandes autores. O ritmo de prosa poética da autora exigiu um afinamento dos tradutores, que deram vida à voz de Calandrone em português, desnaturalizando as vozes iniciais e as línguas envolvidas, abrindo espaço para a escuta do outro em si. O que foi sendo traçado ao longo do processo de tradução foi um lugar paradoxal de afetos entre corpos – incluindo os corpos das línguas.
Disfarces ainda do tempo e de sua passagem, cadenciados a partir de músicas de sucesso, que ecoam na memória da protagonista e lhe emprestam frases marcantes de suas letras. Escrita ainda caracterizada por repentinos registros coloquiais, revelando épocas e lugares autobiográficos, que se alternam a variações de tom. Movimentos que não deixam de seguir as oscilações da memória, a qual afasta e aproxima, como uma sanfona, as imagens conforme revisitadas e revividas. Reproduzindo, assim, aqueles movimentos de presença-ausência, vivência-passado, vida-morte, proporcionados por recortes de jornais e fotos pessoais que desencadearam essa autobiografia ficcional.
Em uma história que expõe relações e sentimentos tão íntimos e pessoais, mas que por isso mesmo é capaz de falar a muita gente que pode se reconhecer em algumas situações, a autora narra:
O que mais pedir, à vida de um ser humano, senão essa direção obstinada rumo ao “aberto”?
As palavras são a parte mais concreta da matéria.
A matéria é uma brincadeira bem-sucedida.
As palavras não são nunca completamente limpas.
Escuta e performance
A tradução é uma reescrita, é um processo de se dar ao outro e de receber algo. Como toda e qualquer relação, a tradução é cheia de tensões e crises, mas é, sobretudo, um gesto de amor.
Uma das discussões nos bastidores da tradução se deu em relação às notas explicativas dos tradutores: uma tendência às notas veio por parte da Patricia e um freio a essas explicações foi dado pelo Andrea. Ao longo do processo, notas foram descartadas, o texto foi encontrando seu ritmo e começava a falar uma língua outra que, ao mesmo tempo que os tradutores dominavam, também escapava deles.
A tradução de Brilha como vida pode ser vista tanto como escuta quanto performance, realizada em determinado momento, que pode se repetir, mas que nunca será igual. A própria tradução é uma espécie de nova vida. Ali cada gesto, cada escolha são únicos, naquele específico segundo. Se é possível dizer que uma língua performa o mundo no seu discurso, a tradução, por sua vez, se configura como uma performatividade outra.
A escrita chama pelo outro, por alguém, como já lembrava Paul Celan. É aquela garrafa lançada no mar que fica à deriva até encontrar possíveis destinos.
Patricia Peterle (1974) é professora de Literatura Italiana na UFSC e atua na Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da USP. Tradutora, crítica literária e poeta, traduziu Giorgio Agamben, Giovanni Pascoli, Giorgio Caproni, Enrico Testa, Eugenio De Signoribus, Roberto Esposito, Franco Rella, Valerio Magrelli. Escreveu e organizou ensaios publicados no Brasil e na Itália. Entre seus livros, estão No limite da palavra: percursos pela poesia italiana (2015), Vozes: cinco décadas de poesia italiana (2017), A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni (2018), A palavra esgarçada: Giorgio Caproni (2018), No reverso do verso (2022).
Andrea Santurbano (1970) cursou doutorado e pós-doutorado na Itália. Professor de Literatura Italiana e Comparada na UFSC, coordena o Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana (Neclit) e coedita a revista Mosaico Italiano. Realiza pesquisas sobre Manganelli, Savinio, Morselli, Walser, Sebald e Bernhard. Traduziu filósofos como Agamben, Rella e Esposito, e escritores e poetas como Manganelli, Mari, Testa e Maria Grazia Calandrone.
Posts relacionados
COLUNA LIVRE
“ISSO É UMA LIVRARIA?” por Giuseppe Zani, da Jacaré Livros Em meados de agosto de 2021, durante a pandemia de Covid-19, abri as portas da Livraria Jacaré, com títulos de segunda mão, no fundo de uma galeria do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Tinha muita dúvida se as pessoas viriam – eu …
COLUNA MARCA PÁGINA
DOIS DE CADA por Ana Elisa Ribeiro Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes …
COLUNA PINDORAMA
GUIA TURÍSTICO DE ‘O RIO ANTES DO RIO’ por Rafael Freitas da Silva Neste mês, a Relicário Edições comemora oito anos de existência em contribuições à literatura e cultura editorial do Brasil. Por isso, a coluna Pindorama de outubro é dedicada à editora que desde 2019 não só abraçou, mas sobretudo renovou O Rio …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN por Patrícia Lavelle Em 15 de julho de 2022, o berlinense Walter Benjamin completaria 130 anos. Um dos mais relevantes filósofos e pensadores de todos os tempos, o jovem Benjamin peregrinou por universidades na Alemanha e na Suíça, onde realizou doutorado em filosofia durante a Primeira Guerra Mundial. Nos anos …