Levei meu pai, um senhor de 86 anos, para fazer uma endoscopia. Quando o deixei em casa, ele ainda sentia sono por conta da sedação do exame. Comeu pouco e foi deitar. No final da tarde, passei novamente em sua casa para ver como estava. Dormindo, disse categoricamente minha mãe. Entrei no quarto, sentei no canto da cama. A mesma cama da minha infância que me abrigou nas madrugadas de medo quando eu acordava em pânico, aterrorizada pelo escuro e corria até o quarto dos meus pais. Parecia tão grande, a cama. Agora, pequena e estreita. Olhei para o meu pai, sua aparência frágil, seus cabelos ralos e brancos. Na mesa de cabeceira, porta-retratos acomodam fotos dele e dela. Jovens. Meu pai sempre agarrou a vida pelas mãos, com coragem. A imagem do rapaz de beca, segurando o diploma, é um contraste doloroso do tempo. Agora escasso. Para ele. Para nós dois juntos. Insisto em manter meus olhos fixos nele. Passo a observá-lo igual a um bebê, percebendo o movimento do peito para ter certeza de que está ali, comigo.
Às vezes acho estranho escrever sobre minhas sentimentalidades. Sobre esta experiência de compasso lento que tem sido o envelhecer de cada um deles. Contabilizando dias, exames, prognósticos. Mas também sei como a escrita pode ser um caminho de acesso a mim, aquilo que me afoga, sufoca. Escrevo, assim, para me libertar da dor. Reduzi-la, fragmentá-la por meio das palavras.
Ao ler o belo texto autobiográfico Todo o tempo que existe, no qual Adriana Lisboa conta de um jeito bonito a experiência de perder a mãe e, depois, o pai, me senti no apartamento da família, na varanda cheia de plantas, nas caminhadas pelo Jardim Botânico, na dor que a morte provoca. Tudo isso me fez perceber, mais uma vez, que a escrita é a forma que escolhemos para narrar (ou viver) nossas experiências, das mais dolorosas às mais excitantes.
“Estou aqui, com este texto, enquanto o céu se ilumina de pássaros e a casa ainda dorme. A vida é um não saber o que virá. De modo que, talvez, mais do que viver para narrá-la, vivamos ao narrá-la. Ou: viver é narrá-la, é compô-la, improvisá-la o tempo todo”, escreve Adriana em Todo o tempo que existe.
Escolho o caminho daquilo que é comum, banal, porque gosto. Acredito no encanto que o cotidiano traz consigo. Nas miudezas, nos gestos, nas conversas, naquilo que passa despercebido pela maior parte das pessoas. No que se torna invisível diante dos olhos, mas que carrega tanto de nós. De que outra forma conseguiria me colocar de frente para o medo da perda do meu pai? A palavra tem essa capacidade de percorrer veios estreitos dentro da gente e dar voz ao que antes era inaudível. De um jeito gentil, amoroso.
Observo novamente meu pai, me curvo para lhe beijar a testa. Ele abre os olhos, sorri. Você está bem, pai? Estou. Vai levantar? Vou. Preciso voltar para casa, pai. Vai lá, filha. Obrigada, por tudo. Meus olhos cruzam as fotos antigas mais uma vez. Um novo beijo, saio em silêncio. Volto para casa e escrevo este texto. Um texto que narra a minha vida, a de todos nós.
Ana Holanda é jornalista, escritora e professora de escrita. Autora dos livros Minha mãe fazia e Como se encontrar na escrita, ambos publicados pela Rocco.
De vários anos para cá, cursos e obras sobre o que se costumou chamar de “escrita criativa” ganharam espaço não apenas nas universidades, inclusive com a oferta de pós-graduações específicas, mas em espaços livres e independentes de criação literária, na forma de oficinas esporádicas e workshops itinerantes. A “escrita criativa” está relacionada, em especial, com …
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COLUNA LIVRE
NARRAR A VIDA
por Ana Holanda
Levei meu pai, um senhor de 86 anos, para fazer uma endoscopia. Quando o deixei em casa, ele ainda sentia sono por conta da sedação do exame. Comeu pouco e foi deitar. No final da tarde, passei novamente em sua casa para ver como estava. Dormindo, disse categoricamente minha mãe. Entrei no quarto, sentei no canto da cama. A mesma cama da minha infância que me abrigou nas madrugadas de medo quando eu acordava em pânico, aterrorizada pelo escuro e corria até o quarto dos meus pais. Parecia tão grande, a cama. Agora, pequena e estreita. Olhei para o meu pai, sua aparência frágil, seus cabelos ralos e brancos. Na mesa de cabeceira, porta-retratos acomodam fotos dele e dela. Jovens. Meu pai sempre agarrou a vida pelas mãos, com coragem. A imagem do rapaz de beca, segurando o diploma, é um contraste doloroso do tempo. Agora escasso. Para ele. Para nós dois juntos. Insisto em manter meus olhos fixos nele. Passo a observá-lo igual a um bebê, percebendo o movimento do peito para ter certeza de que está ali, comigo.
Às vezes acho estranho escrever sobre minhas sentimentalidades. Sobre esta experiência de compasso lento que tem sido o envelhecer de cada um deles. Contabilizando dias, exames, prognósticos. Mas também sei como a escrita pode ser um caminho de acesso a mim, aquilo que me afoga, sufoca. Escrevo, assim, para me libertar da dor. Reduzi-la, fragmentá-la por meio das palavras.
Ao ler o belo texto autobiográfico Todo o tempo que existe, no qual Adriana Lisboa conta de um jeito bonito a experiência de perder a mãe e, depois, o pai, me senti no apartamento da família, na varanda cheia de plantas, nas caminhadas pelo Jardim Botânico, na dor que a morte provoca. Tudo isso me fez perceber, mais uma vez, que a escrita é a forma que escolhemos para narrar (ou viver) nossas experiências, das mais dolorosas às mais excitantes.
“Estou aqui, com este texto, enquanto o céu se ilumina de pássaros e a casa ainda dorme. A vida é um não saber o que virá. De modo que, talvez, mais do que viver para narrá-la, vivamos ao narrá-la. Ou: viver é narrá-la, é compô-la, improvisá-la o tempo todo”, escreve Adriana em Todo o tempo que existe.
Escolho o caminho daquilo que é comum, banal, porque gosto. Acredito no encanto que o cotidiano traz consigo. Nas miudezas, nos gestos, nas conversas, naquilo que passa despercebido pela maior parte das pessoas. No que se torna invisível diante dos olhos, mas que carrega tanto de nós. De que outra forma conseguiria me colocar de frente para o medo da perda do meu pai? A palavra tem essa capacidade de percorrer veios estreitos dentro da gente e dar voz ao que antes era inaudível. De um jeito gentil, amoroso.
Observo novamente meu pai, me curvo para lhe beijar a testa. Ele abre os olhos, sorri. Você está bem, pai? Estou. Vai levantar? Vou. Preciso voltar para casa, pai. Vai lá, filha. Obrigada, por tudo. Meus olhos cruzam as fotos antigas mais uma vez. Um novo beijo, saio em silêncio. Volto para casa e escrevo este texto. Um texto que narra a minha vida, a de todos nós.
Ana Holanda é jornalista, escritora e professora de escrita. Autora dos livros Minha mãe fazia e Como se encontrar na escrita, ambos publicados pela Rocco.
3 respostas para “COLUNA LIVRE”
Marta
Lindo!
Ana Inês
A literatura liberta, e creio que o escrever é abrir a porta e ler, o caminhar.
Dayanne Dockhorn
Tua escrita é muito bonita, Ana.
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