Existe uma relação entre a tagarelice e a posição feminina na linguagem? Por que, na tradição ocidental, as mulheres estão comumente associadas ou à posição silenciosa ou à posição verborrágica, muitas vezes esta última compreendida como excessiva, tagarela? Existe uma linguagem feminina? Assim como a autora, professora e pesquisadora Isabela Pinho, o filósofo Walter Benjamin parecia também estar às voltas com essas perguntas ao escrever “Metafísica da juventude”, ensaio de 1913 que Isabela traduziu pela primeira vez ao português e está publicado em Feminino e linguagem: Itinerários entre o silêncio e o tagarelar, livro recém-lançado pela Relicário em coedição com a ed. PUC-Rio. No texto, Benjamin indica figuras femininas como paradigmas para repensar a linguagem, a cultura e a política.
Além das indagações de Benjamin, a autora encontra outros ecos, alguns deles acessados pela professora Carolina Correia dos Santos neste ensaio. Carolina participou do evento de lançamento do livro no Rio – em conversa calorosa e com bom público na Blooks Livraria – e compartilha sua experiência de leitura de Feminino e linguagem em diferentes camadas.
A autora entre Aline Aimée (à esq.) e Carolina Correia dos Santos em evento de lançamento na Blooks Livraria, no Rio
E na sexta, 26/04, será a vez de uma nova e animada conversa na Travessa Pinheiros, em São Paulo, com a presença da autora e convidadas. Livros à venda no local com a Livraria da Travessa.
E com vocês, o texto de Carolina.
Por um defeito de formação, li Feminino e linguagem como um romance. Como o romance típico não existe mais, minha tarefa de leitora era esquizofrênica. O que quero dizer com isso é que compreendi um herói no livro, o Feminino, e ao longo do texto, me dispus a acompanhá-lo neste percurso, como se ele tivesse que passar por aventuras, altos e baixos. Eu tinha que imaginar suas peripécias, mesmo no silêncio, construí-lo mental e afetuosamente no silêncio das ações e dos discursos dos seus inimigos que iriam aparecer em breve. Todos sabemos que o Feminino tem muito inimigos, e todos eles tentam fazê-lo desaparecer.
A autora deste livro emocionante me deu algumas pistas a partir da sua própria trajetória – era como se, sendo um romance de literatura contemporânea, o livro também apresentasse esta que tem sido uma tendência: a presença do autor (“real”). Então, a autora disse que em certo momento da sua vida, entendeu que deveria desdobrar o “tagarelar feminino” de Benjamin, junto ao “experimentum linguae” de Agamben. Esses dois, entendi então, seriam protagonistas e eu, de cara, gostei mais do primeiro. Sim, a verdade é que eu já gostava dele antes, mas essa história de “tagarelar feminino” me pareceu muito simpática, muito prosaica, bem feminista. Me fez lembrar daquela escritora que Virginia Wolf cita em seu Um quarto todo seu, a Jane (Austen). Pensei nela escrevendo no seu caderno sentada à mesinha no canto da cozinha, ocupada com os afazeres domésticos, tirando o caderno da gaveta nos intervalos entre eles, insistindo na escrita. “Tagarela” à sua maneira.
Também pensei naquele “estado de graça” clariceano que G.H. disse ter conquistado com o “ato ínfimo”: “Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. Não o ato máximo, como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado.” Esse tagarelar seria, ainda, eu li no livro da Isabela, um modo de “fazer uma experiência outra com a linguagem”. É claro, pensei. Somente o feminino faz uma experiência outra com a linguagem. A linguagem, enquanto comunicação, comunicação perfeita é masculina. O próprio Benjamin tinha explicitado isso através da decadência da narrativa em detrimento da “informação”. Ele fala disso em “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, texto conhecido dos estudiosos de Letras. Benjamin acredita que essa linguagem que estou chamando de “comunicação perfeita” é a linguagem da “informação”, posto que esta “aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’”. Esse tipo de linguagem, que é constituído por uma mensagem que sai do seu remetente e chega ao seu destinatário; essa linguagem é masculina. As estruturas sociais de fala e escuta são masculinas. O subalterno não pode falar, como já declarou Gayatri Spivak (e seu subalterno é, justamente, a subalterna: mulher de cor do terceiro mundo).
Mas, então, comecei o capítulo um e comecei a sofrer. O herói Feminino estava escondido. Na verdade, ele não aparecia. Eu procurava, mas entre esses grandes monstros: Aristóteles, Saussure, Falta, Heidegger, Hegel, Tradição, Universal, Bíblia, o Feminino não conseguia realmente aparecer. E eu, que conheço a autora, me perguntava: como é que a Isabela vai sair desta? Até a tagarelice, aqui, era vilã.
Comecei o capítulo dois um tanto desanimada. E, apesar de ele enunciar “rumo ao tagarelar” no seu título, os monstros continuavam a aparecer. Aos outros, se juntaram Platão, Kant. Esses personagens nunca foram protagonistas, mas o enredo estava com eles. Eles estavam dominando a cena e eu estava cada vez mais apreensiva. Pensei: “Não dou conta disso, os filósofos têm sangue frio, eu não”.
E foi aí, no auge de algum desespero desta leitora dramática, que veio a bonança. Entre as rochas enormes, titânicas, que dominavam a paisagem do triunfo do homem, da redenção da humanidade, começou a surgir uns musgos, líquens verdinhos dando origem àquelas plantinhas que parecem jardins em miniatura. Neste momento, eu li: “Esse fim não remete, entretanto, à noção teleológica de fim, mas apenas para um outro modo ou uso de uma determinada concepção histórica de linguagem”. E eu pensei: “essa filósofa sabe contar uma história”.
É nesta altura que Isabela resgata um texto marginal de Benjamin, numa atitude tipicamente feminista. Ela traz esse texto da juventude do personagem à luz, chamado “Metafísica da juventude”. Na verdade, ela faz mais do que isso: ela traduz este texto. A tradução, inserida ao final desta grande aventura, é um modo maravilhoso de terminar o livro. Fazendo assim, ela abre caminhos, itinerários por vir, não concluindo, não dando a palavra final. Nenhum triunfo transcendental, nenhuma redenção. Apenas um texto do jovem Benjamin trazido à tona por uma jovem pensadora.
Neste texto, Benjamin pensa a prostituta, a lésbica e o sexo sem fins para procriação. É o sexo erotizado, sexo sem finalidade heteronormativa e procriativa (muito pelo contrário) que Isabela relaciona com uma linguagem que rompe com a comunicação plena, uma linguagem, portanto, sem finalidade comunicativa, contrariando a história enquanto tradição e tempo contínuo, dona que é, esta história, dos significados compartilhados social e tradicionalmente. “O amor que não procria corresponde a uma linguagem que não é comunicativa. A relação sexual entre as mulheres e o erotismo feminino funcionam como insígnia para outra possibilidade de linguagem”, ela afirma. O tagarelar e a conversa sem compromisso adquirem um estatuto revolucionário.
A aventura podia ter terminado aqui. Eu estava bem contente neste ponto. Mas a autora, não. Então, ela introduz o personagem do Lacan e o livro fica engraçado porque eles nos contam um monte de piadas, de chistes. Toda essa falação, mais lúdica e prazerosa, tem a ver com o tagarelar feminino que ela havia identificado no Benjamin. Na minha opinião, Benjamin é o mais importante dos protagonistas de Feminino e linguagem. E afirmo isso para além da minha simpatia com ele. É ele e sua Safo que permitem a ligação com Lacan e o gozo feminino. É ele também que já havia sido personagem de vários textos de Agamben, aqueles que Isabela recupera no livro.
O feminino se torna, então, a potência de desarticulação da história enquanto sucessão de fatos, embargo da linguagem enquanto comunicação efetiva, suspensão da representação. Se o último movimento do livro é a retomada do Agamben, que na estória do nosso herói Feminino tinha ficado um pouco pra trás, vale trazer à luz uma afirmação que Isabela repete duas ou três vezes sobre o protagonista. Agamben, ela diz, “em nenhum momento [da conferência que Isabela lê cuidadosamente no último capítulo] menciona a palavra ‘feminino’”. Literalmente, Agamben nunca pronuncia o feminino. Será, afinal, que sua tagarelice é igual àquela que Benjamin em 1916 identificava como linguagem masculina?
Se é chegado o momento das dúvidas, de comentar as aberturas deste livro inspirador, trago uma última provocação, que nos é oferecida, na verdade por Jacques Derrida. Assim, pergunto: se por um lado é estimulante e bonito imaginar um mundo sem fronteiras – inclusive as linguísticas – por outro, não haveria um preço a pagar pela homogeneidade? Sei que esta seria uma última instância, um tanto quanto vulgar, do que é uma bela colocação a favor de um porvir em Agamben. Mas, ainda assim: uma única comunidade, uma única família, um único deus, uma única língua: não era isso que Deus havia evitado ao impossibilitar a comunicação entre os homens que construíam a torre de Babel? E isso não instituiria, afinal, a própria necessidade de tradução?
Provoco porque, me parece, é somente a pensadora feminista que pode tomar uma provocação em modo amoroso, sério e prazeroso. É ela – que não entra em disputas, ao contrário do pensador majoritário: “Dois homens juntos são sempre encrenqueiros, e acabam por resolver tudo a ferro e fogo” diz o Benjamin que Isabela traduziu –, é a pensadora feminista, afinal, quem pode terminar seu livro com a oferta de outros (livros a serem escritos) por outros autores. É assim que entendo a tradução de “Metafísica da juventude”. Pois a partir dela, quanto mais poderá ser dito?
***
Carolina Correia dos Santos é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professora de Teoria da Literatura na Uerj. É autora de Jaguaretama: o mundo imperceptível de “Meu tio o Iauaretê” (7Letras, 2022) e Na ponta da língua: política, literatura e violência em “Os sertões”, “Native Son” e “Cidade de Deus” (EdUERJ, 2021).
ELOGIO DA PARTILHA: A TRADUÇÃO DE ‘BRILHA COMO VIDA’ por Patricia Peterle e Andrea Santurbano Neste relato, Patricia Peterle e Andrea Santurbano descrevem o ofício da tradução partindo da máxima que a escrita é sempre um convite para uma partilha. Como uma constatação de vida, que carrega suas marcas, feridas e cicatrizes, eles trabalharam a quatro …
EGOÍSMO MEU Por Nara Vidal Há alguns anos, venho me dedicando a pequenas iniciativas que têm por objetivo divulgar literatura brasileira contemporânea onde moro. Não se trata de bondade ou altruísmo, já que são ações voluntárias. Minha relação com esse movimento é pautada no esforço da permanência de uma língua que é a minha …
21 notas cartográficas [sobre Nós somos muitas, de Pedro Meira Monteiro] por Patrícia Lino 1. Na capa, o pronome “nós” divide-se, entrecortado, como um slide deslizante, em 4. Assim como o deslizante advérbio “muitas”, que se desmonta, no sentido contrário, em 6. O verbo, que não desliza nunca, une “nós” e “muitas”. Do lado esquerdo, …
NARRAR A VIDA por Ana Holanda Levei meu pai, um senhor de 86 anos, para fazer uma endoscopia. Quando o deixei em casa, ele ainda sentia sono por conta da sedação do exame. Comeu pouco e foi deitar. No final da tarde, passei novamente em sua casa para ver como estava. Dormindo, disse categoricamente …
COLUNA LIVRE
UMA EXPERIÊNCIA OUTRA COM A LINGUAGEM
Por Carolina Correia dos Santos
Existe uma relação entre a tagarelice e a posição feminina na linguagem? Por que, na tradição ocidental, as mulheres estão comumente associadas ou à posição silenciosa ou à posição verborrágica, muitas vezes esta última compreendida como excessiva, tagarela? Existe uma linguagem feminina? Assim como a autora, professora e pesquisadora Isabela Pinho, o filósofo Walter Benjamin parecia também estar às voltas com essas perguntas ao escrever “Metafísica da juventude”, ensaio de 1913 que Isabela traduziu pela primeira vez ao português e está publicado em Feminino e linguagem: Itinerários entre o silêncio e o tagarelar, livro recém-lançado pela Relicário em coedição com a ed. PUC-Rio. No texto, Benjamin indica figuras femininas como paradigmas para repensar a linguagem, a cultura e a política.
Além das indagações de Benjamin, a autora encontra outros ecos, alguns deles acessados pela professora Carolina Correia dos Santos neste ensaio. Carolina participou do evento de lançamento do livro no Rio – em conversa calorosa e com bom público na Blooks Livraria – e compartilha sua experiência de leitura de Feminino e linguagem em diferentes camadas.
A autora entre Aline Aimée (à esq.) e Carolina Correia dos Santos em evento de lançamento na Blooks Livraria, no Rio
E na sexta, 26/04, será a vez de uma nova e animada conversa na Travessa Pinheiros, em São Paulo, com a presença da autora e convidadas. Livros à venda no local com a Livraria da Travessa.
E com vocês, o texto de Carolina.
Por um defeito de formação, li Feminino e linguagem como um romance. Como o romance típico não existe mais, minha tarefa de leitora era esquizofrênica. O que quero dizer com isso é que compreendi um herói no livro, o Feminino, e ao longo do texto, me dispus a acompanhá-lo neste percurso, como se ele tivesse que passar por aventuras, altos e baixos. Eu tinha que imaginar suas peripécias, mesmo no silêncio, construí-lo mental e afetuosamente no silêncio das ações e dos discursos dos seus inimigos que iriam aparecer em breve. Todos sabemos que o Feminino tem muito inimigos, e todos eles tentam fazê-lo desaparecer.
A autora deste livro emocionante me deu algumas pistas a partir da sua própria trajetória – era como se, sendo um romance de literatura contemporânea, o livro também apresentasse esta que tem sido uma tendência: a presença do autor (“real”). Então, a autora disse que em certo momento da sua vida, entendeu que deveria desdobrar o “tagarelar feminino” de Benjamin, junto ao “experimentum linguae” de Agamben. Esses dois, entendi então, seriam protagonistas e eu, de cara, gostei mais do primeiro. Sim, a verdade é que eu já gostava dele antes, mas essa história de “tagarelar feminino” me pareceu muito simpática, muito prosaica, bem feminista. Me fez lembrar daquela escritora que Virginia Wolf cita em seu Um quarto todo seu, a Jane (Austen). Pensei nela escrevendo no seu caderno sentada à mesinha no canto da cozinha, ocupada com os afazeres domésticos, tirando o caderno da gaveta nos intervalos entre eles, insistindo na escrita. “Tagarela” à sua maneira.
Também pensei naquele “estado de graça” clariceano que G.H. disse ter conquistado com o “ato ínfimo”: “Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. Não o ato máximo, como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado.” Esse tagarelar seria, ainda, eu li no livro da Isabela, um modo de “fazer uma experiência outra com a linguagem”. É claro, pensei. Somente o feminino faz uma experiência outra com a linguagem. A linguagem, enquanto comunicação, comunicação perfeita é masculina. O próprio Benjamin tinha explicitado isso através da decadência da narrativa em detrimento da “informação”. Ele fala disso em “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, texto conhecido dos estudiosos de Letras. Benjamin acredita que essa linguagem que estou chamando de “comunicação perfeita” é a linguagem da “informação”, posto que esta “aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’”. Esse tipo de linguagem, que é constituído por uma mensagem que sai do seu remetente e chega ao seu destinatário; essa linguagem é masculina. As estruturas sociais de fala e escuta são masculinas. O subalterno não pode falar, como já declarou Gayatri Spivak (e seu subalterno é, justamente, a subalterna: mulher de cor do terceiro mundo).
Mas, então, comecei o capítulo um e comecei a sofrer. O herói Feminino estava escondido. Na verdade, ele não aparecia. Eu procurava, mas entre esses grandes monstros: Aristóteles, Saussure, Falta, Heidegger, Hegel, Tradição, Universal, Bíblia, o Feminino não conseguia realmente aparecer. E eu, que conheço a autora, me perguntava: como é que a Isabela vai sair desta? Até a tagarelice, aqui, era vilã.
Comecei o capítulo dois um tanto desanimada. E, apesar de ele enunciar “rumo ao tagarelar” no seu título, os monstros continuavam a aparecer. Aos outros, se juntaram Platão, Kant. Esses personagens nunca foram protagonistas, mas o enredo estava com eles. Eles estavam dominando a cena e eu estava cada vez mais apreensiva. Pensei: “Não dou conta disso, os filósofos têm sangue frio, eu não”.
E foi aí, no auge de algum desespero desta leitora dramática, que veio a bonança. Entre as rochas enormes, titânicas, que dominavam a paisagem do triunfo do homem, da redenção da humanidade, começou a surgir uns musgos, líquens verdinhos dando origem àquelas plantinhas que parecem jardins em miniatura. Neste momento, eu li: “Esse fim não remete, entretanto, à noção teleológica de fim, mas apenas para um outro modo ou uso de uma determinada concepção histórica de linguagem”. E eu pensei: “essa filósofa sabe contar uma história”.
É nesta altura que Isabela resgata um texto marginal de Benjamin, numa atitude tipicamente feminista. Ela traz esse texto da juventude do personagem à luz, chamado “Metafísica da juventude”. Na verdade, ela faz mais do que isso: ela traduz este texto. A tradução, inserida ao final desta grande aventura, é um modo maravilhoso de terminar o livro. Fazendo assim, ela abre caminhos, itinerários por vir, não concluindo, não dando a palavra final. Nenhum triunfo transcendental, nenhuma redenção. Apenas um texto do jovem Benjamin trazido à tona por uma jovem pensadora.
Neste texto, Benjamin pensa a prostituta, a lésbica e o sexo sem fins para procriação. É o sexo erotizado, sexo sem finalidade heteronormativa e procriativa (muito pelo contrário) que Isabela relaciona com uma linguagem que rompe com a comunicação plena, uma linguagem, portanto, sem finalidade comunicativa, contrariando a história enquanto tradição e tempo contínuo, dona que é, esta história, dos significados compartilhados social e tradicionalmente. “O amor que não procria corresponde a uma linguagem que não é comunicativa. A relação sexual entre as mulheres e o erotismo feminino funcionam como insígnia para outra possibilidade de linguagem”, ela afirma. O tagarelar e a conversa sem compromisso adquirem um estatuto revolucionário.
A aventura podia ter terminado aqui. Eu estava bem contente neste ponto. Mas a autora, não. Então, ela introduz o personagem do Lacan e o livro fica engraçado porque eles nos contam um monte de piadas, de chistes. Toda essa falação, mais lúdica e prazerosa, tem a ver com o tagarelar feminino que ela havia identificado no Benjamin. Na minha opinião, Benjamin é o mais importante dos protagonistas de Feminino e linguagem. E afirmo isso para além da minha simpatia com ele. É ele e sua Safo que permitem a ligação com Lacan e o gozo feminino. É ele também que já havia sido personagem de vários textos de Agamben, aqueles que Isabela recupera no livro.
O feminino se torna, então, a potência de desarticulação da história enquanto sucessão de fatos, embargo da linguagem enquanto comunicação efetiva, suspensão da representação. Se o último movimento do livro é a retomada do Agamben, que na estória do nosso herói Feminino tinha ficado um pouco pra trás, vale trazer à luz uma afirmação que Isabela repete duas ou três vezes sobre o protagonista. Agamben, ela diz, “em nenhum momento [da conferência que Isabela lê cuidadosamente no último capítulo] menciona a palavra ‘feminino’”. Literalmente, Agamben nunca pronuncia o feminino. Será, afinal, que sua tagarelice é igual àquela que Benjamin em 1916 identificava como linguagem masculina?
Se é chegado o momento das dúvidas, de comentar as aberturas deste livro inspirador, trago uma última provocação, que nos é oferecida, na verdade por Jacques Derrida. Assim, pergunto: se por um lado é estimulante e bonito imaginar um mundo sem fronteiras – inclusive as linguísticas – por outro, não haveria um preço a pagar pela homogeneidade? Sei que esta seria uma última instância, um tanto quanto vulgar, do que é uma bela colocação a favor de um porvir em Agamben. Mas, ainda assim: uma única comunidade, uma única família, um único deus, uma única língua: não era isso que Deus havia evitado ao impossibilitar a comunicação entre os homens que construíam a torre de Babel? E isso não instituiria, afinal, a própria necessidade de tradução?
Provoco porque, me parece, é somente a pensadora feminista que pode tomar uma provocação em modo amoroso, sério e prazeroso. É ela – que não entra em disputas, ao contrário do pensador majoritário: “Dois homens juntos são sempre encrenqueiros, e acabam por resolver tudo a ferro e fogo” diz o Benjamin que Isabela traduziu –, é a pensadora feminista, afinal, quem pode terminar seu livro com a oferta de outros (livros a serem escritos) por outros autores. É assim que entendo a tradução de “Metafísica da juventude”. Pois a partir dela, quanto mais poderá ser dito?
***
Carolina Correia dos Santos é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professora de Teoria da Literatura na Uerj. É autora de Jaguaretama: o mundo imperceptível de “Meu tio o Iauaretê” (7Letras, 2022) e Na ponta da língua: política, literatura e violência em “Os sertões”, “Native Son” e “Cidade de Deus” (EdUERJ, 2021).
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