“A LITERATURA ME FORÇA A ABRIR PORTAS QUE ME DAVAM MEDO”
Em uma decisão histórica, o Congresso francês aprovou em 4 de março de 2024 o projeto de lei que constitucionaliza a liberdade das mulheres de recorrer à interrupção voluntária da gravidez no país. A votação representa um momento emblemático na França, que descriminalizou o aborto em 1975 com a Lei Veil, nomeada em homenagem a Simone Veil, então ministra da Saúde que teve papel crucial em sua aprovação.
Em Dezessete anos, a autora Colombe Schneck estabelece um diálogo com Annie Ernaux. O livro surge como resposta ao que Schneck descreve como uma convocação de sua antecessora. Era preciso falar sobre a experiência do aborto naquela primavera de 1984. Este, que é um dos atos mais frequentes e secretos na história das mulheres. O livro é uma contribuição a respeito desse tema tabu, sobre o qual tão pouco se falou na literatura e que envolve interditos ligados ao corpo da mulher.
Nascida em Paris no ano de 1966, Colombe Schneck é uma das escritoras mais importantes de sua geração. No âmbito do Seminário Internacional de Literaturas Francófonas da Uerj, a escritora conversa com a professora da Uerj Laura Campos sobre a escrita, a questão da memória e do relato, além de comentar sobre os temas que norteiam sua obra.
A autora na Livraria da Travessa Ipanema, no Rio, em evento de lançamento e debate sobre os direitos da mulher
Laura, que assina a tradução de Dezessete anos em conjunto com Isadora Pontes, e esteve com Colombe no Rio e em Juiz de Fora, por conta da turnê da autora no Brasil em novembro e dezembro de 2023, participa do evento Por que traduzir?, um projeto de extensão do Selb no Instituto de Letras da Uerj, em 9 de maio (quinta-feira), às 18h30, com a palestra “Traduzir o indizível: Dezessete anos, de Colombe Schneck”. Evento gratuito, com inscrições no local e emissão de certificado.
A seguir, você acompanha a conversa entre Laura e Colombe.
Laura Campos (LC): Muito obrigada por ter aceitado o nosso convite, Colombe. É uma grande honra recebê-la nessa conversa. Você é jornalista, documentarista e autora de cerca de 15 romances. Foi laureada com importantes prêmios literários. Além disso, presidiu o júri do Prêmio Madame Figaro. Em relação à recepção da sua obra, como você lida com a crítica literária? Acha que o reconhecimento dos grandes prêmios interfere na escrita?
Colombe Schneck (CS): Eu que agradeço o convite, que me dá muita satisfação. Há 15 anos, quando comecei, não sabia que escrevia. Fiz o meu primeiro romance com certa inocência. Eu ia escrevendo sem pensar, não fazia ideia se aquilo seria um livro ou se não daria em nada. Seguia escrevendo e ao mesmo tempo me dizendo: “Vamos ver no que vai dar!”. Sempre fui uma grande leitora, mas escrever me parecia inacessível. Quando, depois de ter lido o meu primeiro manuscrito, o editor Jean-Marc Roberts me disse: “É um livro e haverá outros”, senti que algo havia se modificado na minha vida naquele momento e que eu continuaria escrevendo, mas não avaliava as consequências disso.
A recepção de um livro é importante. As boas críticas são relevantes, e as ruins, é claro, incomodam. Entretanto, aprendi também que, às vezes, as críticas negativas nos ensinam mais sobre o nosso trabalho – e sobre quem somos – do que nos mostra a avaliação positiva. Depois do meu primeiro livro, por exemplo, um jornalista disse que a minha escrita estava bloqueada e eu achei que ele tinha razão, estava mesmo. Se posso me manter escrevendo como atividade principal, é porque meus livros são lidos, porque houve uma recepção crítica, porque eles têm espaço nas livrarias e na imprensa. Portanto, é claro que isso é muito importante. Philip Roth dizia que pensava em um inimigo ao escrever, naquela pessoa que detestava seus livros e escrevia, então, para enfrentar essa pessoa.
Às vezes me dou conta, depois de começar um livro novo, após semanas ou meses, que o assunto é incômodo e que deveria ter ido por outro caminho, mas aí já é tarde demais. Escrever sobre a burguesia, por exemplo, não é um “bom tema”, é malvisto, não se espera que os escritores pertençam à burguesia. Na França, ser burguês é um insulto, mas tive que assumir a minha classe social, ser honesta sobre quem sou, caso contrário, não teria sentido escrever. Sou oriunda de uma elite burguesa e permaneço nessa posição social, apenas aprofundei meus privilégios, não há nada de nobre nem de louvável nesse fato, mas a burguesia é a minha paisagem e preciso assumir isso.
Quando escrevi sobre o aborto em Dezessete anos, a questão era considerada um tema menor, conforme Annie Ernaux explicou no momento da publicação de O acontecimento – livro que, apesar de fundamental, teve uma repercussão muito menor do que a habitual. As mulheres não contam sobre seus abortos, elas sentem vergonha, mas se não falarmos sobre isso, esse direito corre o risco de desaparecer. Escutei Annie Ernaux e não tive opção, precisei contar a história do meu aborto.
LC: L’incrévable Monsieur Schneck, seu primeiro livro, de 2006, traz uma investigação relacionada a seu avô. Como começou a escrevê-lo? Houve alguma situação desencadeadora?
CS: Houve múltiplos elementos desencadeadores, sendo o primeiro ponto o fato de que sou uma leitora. Se eu tivesse que escolher uma identidade, seria a de leitora. Quando se lê, fatalmente, em algum momento, pensa-se em escrever. Para mim, leitura e escrita são atividades interligadas. Leio e escrevo na mesma posição, na cama com o livro ou o computador sobre os joelhos, tenho a sensação de que se trata da mesma atividade.
LC: Há grandes intelectuais na sua família também…
CS: Sim, mas eu seria uma leitora de qualquer maneira. Independentemente da minha classe social de origem, ser leitora me constitui, essa é uma de minhas poucas certezas.
LC: Não obstante, você aguardou 40 anos para começar a escrever….
CS: Para escrever sim, mas não para ler. Quando criança, lia tudo que encontrava pela frente. Como muitos leitores, sempre pensei que eu não poderia escrever um livro ruim. O meu tio era um escritor admirado, eu não conseguia me imaginar escrevendo depois dele, parecia algo inacessível para mim. Houve, então, uma série de acasos. Primeiro, descobri que o meu avô havia sido assassinado. É um bom tema, não é? Em seguida, recebi uma proposta de trabalho em um jornal – na época eu trabalhava em televisão – e percebi o quanto eu gostava de escrever, ficava feliz escrevendo na cama.
LC: Sorte a nossa…
CS: Mais uma coisa que pode parecer bobagem: li o livro de um amigo que admiro muito, um bom crítico literário, mas considerei a publicação muito ruim, aliás, não fez o menor sucesso na época. Entendi, então, que o céu não cai sobre nossas cabeças, que escrever um livro ruim não era nada demais. De certa forma, esse caso me ajudou a iniciar o primeiro livro.
LC: L’increvable Monsieur Schneck apresenta o seguinte incipit: “Esta é a história de um segredo. Ela nunca deveria ter pertencido à cobiçada categoria dos segredos”. Essas primeiras linhas me parecem emblemáticas da totalidade da sua produção literária. Você concorda?
CS: Quando ouço essas frases novamente, lembro-me dos primeiros conselhos do excelente editor Raphael Sorin, dizendo para escrever com o máximo de contenção e para criar um suspense. Meus livros são sempre investigações e, quando os inicio, ignoro a resolução. Eu realmente só sei o desfecho depois de terminar de escrever. Acho que essas frases iniciais buscavam o suspense e despertar o desejo de continuar a leitura. Percebo que, desde o primeiro livro, essa questão está presente.
LC: Tenho a impressão de que, em todos os seus livros, há um trabalho muito pessoal sobre algo do âmbito do indizível.
CS: Sim, depois de terminar esse meu primeiro texto sobre o assassinato do meu avô, enviei-o a Jean-Marc Roberts, meu editor. Marc me disse ter gostado do livro, mas também disse: “Falta alma, falta você, Colombe”. Fiz, então, alguns acréscimos que são do âmbito do indizível e que estarão também presentes em publicações subsequentes. Descrevi minha mãe deitada em sua cama, fumando seu cigarro da marca Gitanes sem filtro, tirando pedacinhos de tabaco da boca enquanto telefonava para a mãe dela, algo que fazia todos os dias, mas que não era um momento agradável para ela. Era tenso, angustiante, mas ela persistia porque considerava um dever, porque era uma boa filha que telefonava para a mãe idosa. Entretanto, as duas não conseguiam se comunicar, porque o indizível estava entre elas. Acrescentei esse momento de tensão que permanecerá presente em todos os meus livros até La Réparation, de 2012.
LC: Antes de falar de La Réparation, gostaria de comentar um lindo relato de infância publicado em 2008, Val de Grâce. O título remete ao nome da rua de Paris onde você cresceu. Incialmente, temos a narrativa de uma infância envolta a mimos e proteção, até o momento em que surgem a doença, a morte e os traumas das gerações anteriores. É também uma narrativa centrada na figura materna. A memória da residência familiar é uma questão crucial, diz respeito ao luto do passado e ao luto da mãe?
CS: Nesse livro, existe a presença do indizível que mencionei, mas não de forma consciente. É um livro que trata, antes de mais nada, de um cenário. Eu quis descrever o apartamento onde morei até os 20 anos e que foi vendido depois da morte de minha mãe. O lugar permaneceu em mim, no meu corpo, do mínimo rangido de gavetas, até os cheiros. Eu quis descrevê-lo de forma material e humana. Esse apartamento é como um personagem que teria conhecido o esplendor e a decadência de uma vida quando acaba o dinheiro. Meu pai morreu e a vida foi se afastando desse apartamento, minha mãe faleceu lá. Eu ainda não tinha consciência da face mortífera dessa infância. Como meus pais tiveram uma infância terrível, procuraram nos mimar e nos proteger das feridas da vida real. Meus pais maquiaram a verdade e fabricaram um lindo cenário.
Pouco a pouco, à medida em que escrevia e contava essa infância de conto de fadas – uma invenção, porque eu passava a maior parte do tempo lendo no meu quarto e meus pais estavam frequentemente ausentes –, fui descobrindo o indizível dos meus pais, descobrindo o aspecto mortífero do passado e até mesmo da minha própria infância. Nasci em 1966, apenas 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Havia numerosos fantasmas habitando aquele apartamento escuro e lúgubre. Eu ficava muito tempo lendo o catálogo telefônico, procurando nomes e endereços e, sem me dar conta, estava buscando os desaparecidos e os fantasmas da minha família.
LC: Você é uma grande conservadora dos “Arquivos do íntimo”[1]?
CS: Um lindo título! Tento constantemente fazer descartes, doações e triagens, mas guardo óculos quebrados ou agendas antigas que não consigo jogar fora. Estou sempre me equilibrando entre o desejo de me libertar, de me afastar do passado e de seus fantasmas, ao mesmo tempo que me apego constantemente a ele.
LC: Em La Réparation, livro muito impactante, temos a história de parte de sua família materna e as circunstâncias da morte de alguns primos. Já o livro Les Guerres de mon père, de 2018, como indica o título, é centrado na figura paterna. Você mobiliza a memória familiar, capturando, a um só tempo, as dimensões biográfica e autobiográfica. Seria esse procedimento uma estratégia, um desvio, para falar de si?
CS: Sim, porque o passado nos constitui. Em grande medida, somos moldados pelo passado, então, é preciso conhecê-lo. Durante muito tempo, achei que estaria me libertando ao me recusar a olhar para trás, acreditava que ignorar esses fatos fosse algo benéfico, que seria a melhor maneira de crescer, de viver. Tanto na vida quanto nos livros, sempre tentei virar a página, porque eu tinha medo que o passado me “maculasse”, mas é impossível ignorá-lo. Graças a arquivos, viagens e entrevistas pude descobrir não apenas a história trágica de minha família, mas também a minha autobiografia – ao conhecer a minha história familiar, descobri também quem eu era. Escrevi vários livros sobre a minha história familiar e acho, ou espero, ter me livrado dela. Às vezes as pessoas se enganam ao mencionar o título do livro La Réparation [A Reparação] e dizem “a separação”. Eu gosto desse engano, é como se eu tivesse, enfim, me livrado do passado. Claro que é um engodo, o passado sempre volta a atacar.
Vou contar algo surpreendente que aconteceu comigo há semanas. Eu ia pegar um trem na Gare de l’Est, em Paris, para ir a um evento sobre o meu novo livro, na cidade de Mulhouse. A Gare de l’Est é a estação dos trens com destino ao leste, portanto em direção à Alemanha e à Polônia. Eu sempre tive o hábito de chegar cedo, mas nesse dia me atrasei e, subitamente, senti uma angústia irracional, um frio na barriga. Pensei que era uma bobagem porque havia trens de Paris para Mulhouse de hora em hora, portanto não era nada grave. Fiquei me sentindo boba por estar tão preocupada, mas quando cheguei na estação, me dei conta de que o trem que fazia o trajeto para Mulhouse era alemão. Lembrei então de uma piada que minha mãe contava, uma das raras que conseguia contar rindo. Ela dizia: “Agora temos que pagar passagem quando pegamos o trem para a Alemanha” – uma referência às deportações dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O fato é que, quando me sentei, confortavelmente, no trem alemão, a angústia já havia se dissipado, mas penso que meu corpo de mulher nascida em 1966 se alarmara ao interpretar a presença de um trem alemão como um eventual perigo. Por mais que eu queira, não posso ignorar o que aconteceu no passado.
LC: Que história impressionante. E você acha que a literatura tem um papel reparador?
CS: Não sei. David Grossman, que cito na epígrafe de La Réparation, diz que, quando o pior acontece conosco (e não aconteceu comigo, mas com a minha família) e descrevemos com nossas próprias palavras, não somos mais vítimas. Acho que a escrita permite estabelecer um enquadramento, não para reparar algo, mas para se apropriar dele, para domar a história.
LC: O jornal Le Monde des livres afirmou que Les Guerres de mon père seria o seu livro mais bem-sucedido. Você concorda?
CS: Antes e durante a escrita desse livro, senti uma grande liberdade. Fiquei em pé de igualdade com meu pai. Sendo adulta, não havia mais o dever de obediência. Não sei se é o meu livro mais bem-sucedido, mas tive a sensação de ter eliminado os freios e de ter ido realmente ao ponto.
LC: O seu pai nunca falou sobre a experiência de ter tido a infância marcada pela Segunda Guerra Mundial, tampouco sobre ter vivenciado, como médico, o trauma da Guerra da Argélia. Você constrói um texto em que o silenciamento dele é sintetizado na frase: “Não se deve falar sobre aquilo que chateia”, repetida insistentemente ao longo de diversos livros. Tenho a impressão de que esse silenciamento paterno dá origem a um sentimento de “des-herança”, de ausência na transmissão e com narradoras marcadas por uma fratura no continuum verbal. Podemos pensar um “mal de transmissão” em sua obra?
CS: Discordo de você em relação à ausência de transmissão. Não ocorreu a transmissão dos dramas, mas houve outro tipo de transmissão. Para começar, houve a presença do amor e da afeição do meu pai por seus filhos, mas ocorreu ainda a transmissão do belo. Ele era um homem que valorizava a beleza das coisas materiais, tinha muito bom gosto e gostava de compartilhar a beleza de forma generosa, oferecendo, por exemplo, presentes, viagens e através também da admiração que sentia pelo belo, seja uma obra de arte, por roupas, por paisagens ou por um lindo jardim. Portanto, a transmissão se realizou e foi muito importante. Não podemos negligenciar a transmissão do belo. Efetivamente, a transmissão não se deu integralmente, entretanto, se eu tivesse que optar entre essas duas formas, escolheria a transmissão da beleza e do amor.
LC: A repetição de certas cenas ou mesmos de algumas expressões dentro do espaço autobiográfico formado a partir de suas publicações cria uma sensação de cumplicidade nos leitores, há uma familiaridade que se instaura.
CS: Posso me transformar, mentir ou inventar, mas sempre conto a mesma história e, certamente, os leitores a reconhecem, o que talvez dê origem a esse sentimento de familiaridade.
LBC: Deux petites bourgeoises (2021) é um romance autobiográfico muito sensível, sobre a amizade das personagens Esther e Héloise. Você poderia falar um pouco mais sobre ele?
CS: É uma história inspirada em minha infância e em uma longa amizade iniciada na escola. Estudávamos em um colégio da elite intelectual parisiense. Não éramos garotas descoladas, mas compenetradas. Recebemos uma ótima formação, graças à escola e à família. Isso foi na década de 70 e início dos anos 80, fomos criadas por mães feministas e estávamos convencidas de que havíamos nos livrado das desigualdades de gênero, que tínhamos uma relação igualitária com os garotos. Pouco a pouco, a despeito da nossa posição social privilegiada, as amarras da condição feminina também nos atingiram. Gradativamente, nos estudos, no trabalho, na vida afetiva, conjugal e familiar, o espectro de gênero se abateu sobre nós. Eu quis falar sobre isso e, também, sobre amizade. Escreve-se muito sobre casais e sobre vida amorosa, como se isso estivesse no centro da vida das mulheres, mas a amizade, assim como a burguesia, é um tema pouco explorado. Percebi que, para mim, as relações de amizades eram mais bem-sucedidas que os relacionamentos amorosos e que elas também me proporcionam muito amor e ternura. Além de tudo isso, quis falar sobre morte porque perdi, subitamente, a minha amiga de infância. A morte também é um tema que costumamos evitar em conversas. Sempre evitamos falar sobre doença e morte e nos comportamos como se não fôssemos mortais, sobretudo diante de pessoas com um prognóstico fatal anunciado, então quis escrever sobre a morte.
LC: E você escreveu o livro durante o período de confinamento da Covid-19?
CS: Não, foi antes, mas revisei durante o confinamento. Escrevo rápido, mas reescrevo bastante. Procuro realizar uma escrita simples e isso demanda muito trabalho de reescrita. Efetivamente, à medida que eu trabalhava e que a morte nos rodeava, a narrativa tomou uma outra dimensão…
LC: Uma dimensão coletiva?
CS: Claro.
LC: Na primeira parte de Deux petites bourgeoises, além de uma narrativa de infância, o leitor acompanha a História da França em um determinado período, a emergência de novas classes sociais nos anos 70, como a esquerda burguesa intelectual. As personagens de Esther e de Héloise não conseguem escapar da condição de esposa e mãe, ou seja, não escapam da “dominação masculina”.
CS: Isso mesmo. Eu pensava que, por ter tido o privilégio de ter uma boa formação, poderia me considerar em posição de igualdade com os rapazes. Lembro que, aos 17 anos, quando engravidei, fiquei furiosa com o meu corpo, eu me senti traída por ele. Achava que, assim como os meninos, eu podia fazer sexo impunemente, mas não era bem assim, as garotas engravidam. Fiquei furiosa porque descobri que não tinha o mesmo corpo dos meninos e ninguém havia me ensinado isso. Tenho um útero e posso engravidar! Foi nesse período que comecei a me curvar um pouco. Nessa época, eu tinha características consideradas “pouco femininas”, às vezes eu era bruta, violenta e bastante esportiva. Passei a abaixar mais a cabeça, afinal, eu era apenas uma garota. Mais tarde, tive filhos e me casei. Fiz tudo aquilo que as mulheres costumam fazer em casa, além de trabalhar fora. Só comecei a me revoltar quando entrei na faixa dos 40 anos e foi apenas aos 50, na menopausa, que me senti, finalmente, em igualdade com os homens da minha idade. Em La tendresse du crawl (2019), conto como a natação me fez perceber o meu corpo de outra forma, sem ser inferior ao corpo dos meninos, nem mais frágil, nem mais suave, mas que simplesmente tem defeitos e qualidades.
LC: Esther é uma personagem presente também em Nuits d’été à Broklyn (2020). Parece uma espécie de alter ego, lembrando um pouco o Nathan Zuckerman, de Philip Roth. Quem são os escritores que inspiram você?
CS: Tive muita vontade de passar a fazer realmente ficção, um romance de imaginação. Tinha, enfim, me libertado da minha família, escrevera sobre meu avô, meu pai, minha mãe. Eu podia, enfim, seguir adiante. Morei em Nova York na juventude, criei, então, a personagem de Esther – que não sou eu, mas na qual inseri aspectos autobiográficos. Esther é a personagem ficcional que me libertou. Ela pôde assumir tudo o que eu não ousava dizer sobre mim mesma, sobre a burguesia ou sobre bons estudos, por exemplo. Preciso dizer que senti certo prazer escrevendo esse romance: imaginar, inventar, mentir! O romance é a arte de mentir, foi tão prazeroso. No entanto, quando terminei a primeira versão, percebi que estava faltando alguma coisa, havia uma lacuna no livro, eu precisava voltar para a Europa e retomar a Shoá. Eu me dei conta então de que não escaparia disso nunca e que era preciso que existisse essa história no passado de Esther. Fiquei surpresa, pois pensei que tivesse conseguido virar a página. Mesmo não estando tão livre quanto imaginara, Esther – personagem ficcional com aspectos autobiográficos – me ajudou muito, apesar de não ter conseguido me descolar completamente da minha história familiar.
No caso de Deux petites bourgeoises, escrevi uma primeira versão em primeira pessoa, mas achei que estava limitado, redutor. Quando passei para a terceira pessoa, retomei a personagem de Esther e gostei muito do resultado. Com uma personagem de ficção, pude ficar mais livre e até mais sincera, escrevendo aquilo que não conseguiria na primeira pessoa.
LC: Você considera que faz uma literatura “desconcertante”, no sentido atribuído pelo teórico Dominique Viart?
CS: Gosto quando a literatura me força a abrir portas que me davam medo, quando ela me permite enxergar o que eu recusava ver e quando ela me perturba. Ao mesmo tempo, a leitura é um consolo por sua beleza.
LC: Temas tabus ocupam um lugar central em sua obra: segredo de família, aborto, trauma. Eles aparecem também em seus documentários, abordando assuntos como a sexualidade na terceira idade ou ainda a opção pela não maternidade. Os temas que andam contra a corrente propulsionam a sua criação artística?
CS: Não é proposital, preferiria trabalhar sobre assuntos mais consoladores, mais leves ou suaves. Escolho quase de forma inconsciente, quando começo a trabalhar, e percebo que não são temas agradáveis. Mas escrever sobre essas questões me tranquiliza. Temas a priori difíceis, como aborto, mulheres sem filhos, sexualidade de mulheres idosas são, ao mesmo tempo, reconfortantes. Saber que se pode interromper uma gravidez, que temos a liberdade de fazê-lo – mesmo sendo algo difícil – ou que podemos optar pela não maternidade e sermos plenamente felizes, ou ainda que existe sexualidade depois dos 70 ou 80 anos, é reconfortante. Percebemos que não estamos sozinhas, que existem outras possibilidades. Escrever e ler me libertam de injunções sociais aprisionadoras.
Laura Campos é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Rouen, na França.
[1] A expressão faz referência ao livro Archives de l’intime: Yann Potin (org). Françoise Dolto. Archives de l’intime. Paris: Gallimard, 2008.
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Em Dezessete anos, a autora Colombe Schneck estabelece um diálogo com Annie Ernaux. O livro surge como resposta ao que Schneck descreve como uma convocação de sua antecessora. Era preciso falar sobre a experiência do aborto naquela primavera de 1984. Este, que é um dos atos mais frequentes e secretos na história das mulheres. O livro é uma contribuição a respeito desse tema tabu, sobre o qual tão pouco se falou na literatura e que envolve interditos ligados ao corpo da mulher.
Nascida em Paris no ano de 1966, Colombe Schneck é uma das escritoras mais importantes de sua geração. No âmbito do Seminário Internacional de Literaturas Francófonas da Uerj, a escritora conversa com a professora da Uerj Laura Campos sobre a escrita, a questão da memória e do relato, além de comentar sobre os temas que norteiam sua obra.
A autora na Livraria da Travessa Ipanema, no Rio, em evento de lançamento e debate sobre os direitos da mulher
Laura, que assina a tradução de Dezessete anos em conjunto com Isadora Pontes, e esteve com Colombe no Rio e em Juiz de Fora, por conta da turnê da autora no Brasil em novembro e dezembro de 2023, participa do evento Por que traduzir?, um projeto de extensão do Selb no Instituto de Letras da Uerj, em 9 de maio (quinta-feira), às 18h30, com a palestra “Traduzir o indizível: Dezessete anos, de Colombe Schneck”. Evento gratuito, com inscrições no local e emissão de certificado.
A seguir, você acompanha a conversa entre Laura e Colombe.
Laura Campos (LC): Muito obrigada por ter aceitado o nosso convite, Colombe. É uma grande honra recebê-la nessa conversa. Você é jornalista, documentarista e autora de cerca de 15 romances. Foi laureada com importantes prêmios literários. Além disso, presidiu o júri do Prêmio Madame Figaro. Em relação à recepção da sua obra, como você lida com a crítica literária? Acha que o reconhecimento dos grandes prêmios interfere na escrita?
Colombe Schneck (CS): Eu que agradeço o convite, que me dá muita satisfação. Há 15 anos, quando comecei, não sabia que escrevia. Fiz o meu primeiro romance com certa inocência. Eu ia escrevendo sem pensar, não fazia ideia se aquilo seria um livro ou se não daria em nada. Seguia escrevendo e ao mesmo tempo me dizendo: “Vamos ver no que vai dar!”. Sempre fui uma grande leitora, mas escrever me parecia inacessível. Quando, depois de ter lido o meu primeiro manuscrito, o editor Jean-Marc Roberts me disse: “É um livro e haverá outros”, senti que algo havia se modificado na minha vida naquele momento e que eu continuaria escrevendo, mas não avaliava as consequências disso.
A recepção de um livro é importante. As boas críticas são relevantes, e as ruins, é claro, incomodam. Entretanto, aprendi também que, às vezes, as críticas negativas nos ensinam mais sobre o nosso trabalho – e sobre quem somos – do que nos mostra a avaliação positiva. Depois do meu primeiro livro, por exemplo, um jornalista disse que a minha escrita estava bloqueada e eu achei que ele tinha razão, estava mesmo. Se posso me manter escrevendo como atividade principal, é porque meus livros são lidos, porque houve uma recepção crítica, porque eles têm espaço nas livrarias e na imprensa. Portanto, é claro que isso é muito importante. Philip Roth dizia que pensava em um inimigo ao escrever, naquela pessoa que detestava seus livros e escrevia, então, para enfrentar essa pessoa.
Às vezes me dou conta, depois de começar um livro novo, após semanas ou meses, que o assunto é incômodo e que deveria ter ido por outro caminho, mas aí já é tarde demais. Escrever sobre a burguesia, por exemplo, não é um “bom tema”, é malvisto, não se espera que os escritores pertençam à burguesia. Na França, ser burguês é um insulto, mas tive que assumir a minha classe social, ser honesta sobre quem sou, caso contrário, não teria sentido escrever. Sou oriunda de uma elite burguesa e permaneço nessa posição social, apenas aprofundei meus privilégios, não há nada de nobre nem de louvável nesse fato, mas a burguesia é a minha paisagem e preciso assumir isso.
Quando escrevi sobre o aborto em Dezessete anos, a questão era considerada um tema menor, conforme Annie Ernaux explicou no momento da publicação de O acontecimento – livro que, apesar de fundamental, teve uma repercussão muito menor do que a habitual. As mulheres não contam sobre seus abortos, elas sentem vergonha, mas se não falarmos sobre isso, esse direito corre o risco de desaparecer. Escutei Annie Ernaux e não tive opção, precisei contar a história do meu aborto.
LC: L’incrévable Monsieur Schneck, seu primeiro livro, de 2006, traz uma investigação relacionada a seu avô. Como começou a escrevê-lo? Houve alguma situação desencadeadora?
CS: Houve múltiplos elementos desencadeadores, sendo o primeiro ponto o fato de que sou uma leitora. Se eu tivesse que escolher uma identidade, seria a de leitora. Quando se lê, fatalmente, em algum momento, pensa-se em escrever. Para mim, leitura e escrita são atividades interligadas. Leio e escrevo na mesma posição, na cama com o livro ou o computador sobre os joelhos, tenho a sensação de que se trata da mesma atividade.
LC: Há grandes intelectuais na sua família também…
CS: Sim, mas eu seria uma leitora de qualquer maneira. Independentemente da minha classe social de origem, ser leitora me constitui, essa é uma de minhas poucas certezas.
LC: Não obstante, você aguardou 40 anos para começar a escrever….
CS: Para escrever sim, mas não para ler. Quando criança, lia tudo que encontrava pela frente. Como muitos leitores, sempre pensei que eu não poderia escrever um livro ruim. O meu tio era um escritor admirado, eu não conseguia me imaginar escrevendo depois dele, parecia algo inacessível para mim. Houve, então, uma série de acasos. Primeiro, descobri que o meu avô havia sido assassinado. É um bom tema, não é? Em seguida, recebi uma proposta de trabalho em um jornal – na época eu trabalhava em televisão – e percebi o quanto eu gostava de escrever, ficava feliz escrevendo na cama.
LC: Sorte a nossa…
CS: Mais uma coisa que pode parecer bobagem: li o livro de um amigo que admiro muito, um bom crítico literário, mas considerei a publicação muito ruim, aliás, não fez o menor sucesso na época. Entendi, então, que o céu não cai sobre nossas cabeças, que escrever um livro ruim não era nada demais. De certa forma, esse caso me ajudou a iniciar o primeiro livro.
LC: L’increvable Monsieur Schneck apresenta o seguinte incipit: “Esta é a história de um segredo. Ela nunca deveria ter pertencido à cobiçada categoria dos segredos”. Essas primeiras linhas me parecem emblemáticas da totalidade da sua produção literária. Você concorda?
CS: Quando ouço essas frases novamente, lembro-me dos primeiros conselhos do excelente editor Raphael Sorin, dizendo para escrever com o máximo de contenção e para criar um suspense. Meus livros são sempre investigações e, quando os inicio, ignoro a resolução. Eu realmente só sei o desfecho depois de terminar de escrever. Acho que essas frases iniciais buscavam o suspense e despertar o desejo de continuar a leitura. Percebo que, desde o primeiro livro, essa questão está presente.
LC: Tenho a impressão de que, em todos os seus livros, há um trabalho muito pessoal sobre algo do âmbito do indizível.
CS: Sim, depois de terminar esse meu primeiro texto sobre o assassinato do meu avô, enviei-o a Jean-Marc Roberts, meu editor. Marc me disse ter gostado do livro, mas também disse: “Falta alma, falta você, Colombe”. Fiz, então, alguns acréscimos que são do âmbito do indizível e que estarão também presentes em publicações subsequentes. Descrevi minha mãe deitada em sua cama, fumando seu cigarro da marca Gitanes sem filtro, tirando pedacinhos de tabaco da boca enquanto telefonava para a mãe dela, algo que fazia todos os dias, mas que não era um momento agradável para ela. Era tenso, angustiante, mas ela persistia porque considerava um dever, porque era uma boa filha que telefonava para a mãe idosa. Entretanto, as duas não conseguiam se comunicar, porque o indizível estava entre elas. Acrescentei esse momento de tensão que permanecerá presente em todos os meus livros até La Réparation, de 2012.
LC: Antes de falar de La Réparation, gostaria de comentar um lindo relato de infância publicado em 2008, Val de Grâce. O título remete ao nome da rua de Paris onde você cresceu. Incialmente, temos a narrativa de uma infância envolta a mimos e proteção, até o momento em que surgem a doença, a morte e os traumas das gerações anteriores. É também uma narrativa centrada na figura materna. A memória da residência familiar é uma questão crucial, diz respeito ao luto do passado e ao luto da mãe?
CS: Nesse livro, existe a presença do indizível que mencionei, mas não de forma consciente. É um livro que trata, antes de mais nada, de um cenário. Eu quis descrever o apartamento onde morei até os 20 anos e que foi vendido depois da morte de minha mãe. O lugar permaneceu em mim, no meu corpo, do mínimo rangido de gavetas, até os cheiros. Eu quis descrevê-lo de forma material e humana. Esse apartamento é como um personagem que teria conhecido o esplendor e a decadência de uma vida quando acaba o dinheiro. Meu pai morreu e a vida foi se afastando desse apartamento, minha mãe faleceu lá. Eu ainda não tinha consciência da face mortífera dessa infância. Como meus pais tiveram uma infância terrível, procuraram nos mimar e nos proteger das feridas da vida real. Meus pais maquiaram a verdade e fabricaram um lindo cenário.
Pouco a pouco, à medida em que escrevia e contava essa infância de conto de fadas – uma invenção, porque eu passava a maior parte do tempo lendo no meu quarto e meus pais estavam frequentemente ausentes –, fui descobrindo o indizível dos meus pais, descobrindo o aspecto mortífero do passado e até mesmo da minha própria infância. Nasci em 1966, apenas 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Havia numerosos fantasmas habitando aquele apartamento escuro e lúgubre. Eu ficava muito tempo lendo o catálogo telefônico, procurando nomes e endereços e, sem me dar conta, estava buscando os desaparecidos e os fantasmas da minha família.
LC: Você é uma grande conservadora dos “Arquivos do íntimo”[1]?
CS: Um lindo título! Tento constantemente fazer descartes, doações e triagens, mas guardo óculos quebrados ou agendas antigas que não consigo jogar fora. Estou sempre me equilibrando entre o desejo de me libertar, de me afastar do passado e de seus fantasmas, ao mesmo tempo que me apego constantemente a ele.
LC: Em La Réparation, livro muito impactante, temos a história de parte de sua família materna e as circunstâncias da morte de alguns primos. Já o livro Les Guerres de mon père, de 2018, como indica o título, é centrado na figura paterna. Você mobiliza a memória familiar, capturando, a um só tempo, as dimensões biográfica e autobiográfica. Seria esse procedimento uma estratégia, um desvio, para falar de si?
CS: Sim, porque o passado nos constitui. Em grande medida, somos moldados pelo passado, então, é preciso conhecê-lo. Durante muito tempo, achei que estaria me libertando ao me recusar a olhar para trás, acreditava que ignorar esses fatos fosse algo benéfico, que seria a melhor maneira de crescer, de viver. Tanto na vida quanto nos livros, sempre tentei virar a página, porque eu tinha medo que o passado me “maculasse”, mas é impossível ignorá-lo. Graças a arquivos, viagens e entrevistas pude descobrir não apenas a história trágica de minha família, mas também a minha autobiografia – ao conhecer a minha história familiar, descobri também quem eu era. Escrevi vários livros sobre a minha história familiar e acho, ou espero, ter me livrado dela. Às vezes as pessoas se enganam ao mencionar o título do livro La Réparation [A Reparação] e dizem “a separação”. Eu gosto desse engano, é como se eu tivesse, enfim, me livrado do passado. Claro que é um engodo, o passado sempre volta a atacar.
Vou contar algo surpreendente que aconteceu comigo há semanas. Eu ia pegar um trem na Gare de l’Est, em Paris, para ir a um evento sobre o meu novo livro, na cidade de Mulhouse. A Gare de l’Est é a estação dos trens com destino ao leste, portanto em direção à Alemanha e à Polônia. Eu sempre tive o hábito de chegar cedo, mas nesse dia me atrasei e, subitamente, senti uma angústia irracional, um frio na barriga. Pensei que era uma bobagem porque havia trens de Paris para Mulhouse de hora em hora, portanto não era nada grave. Fiquei me sentindo boba por estar tão preocupada, mas quando cheguei na estação, me dei conta de que o trem que fazia o trajeto para Mulhouse era alemão. Lembrei então de uma piada que minha mãe contava, uma das raras que conseguia contar rindo. Ela dizia: “Agora temos que pagar passagem quando pegamos o trem para a Alemanha” – uma referência às deportações dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O fato é que, quando me sentei, confortavelmente, no trem alemão, a angústia já havia se dissipado, mas penso que meu corpo de mulher nascida em 1966 se alarmara ao interpretar a presença de um trem alemão como um eventual perigo. Por mais que eu queira, não posso ignorar o que aconteceu no passado.
LC: Que história impressionante. E você acha que a literatura tem um papel reparador?
CS: Não sei. David Grossman, que cito na epígrafe de La Réparation, diz que, quando o pior acontece conosco (e não aconteceu comigo, mas com a minha família) e descrevemos com nossas próprias palavras, não somos mais vítimas. Acho que a escrita permite estabelecer um enquadramento, não para reparar algo, mas para se apropriar dele, para domar a história.
LC: O jornal Le Monde des livres afirmou que Les Guerres de mon père seria o seu livro mais bem-sucedido. Você concorda?
CS: Antes e durante a escrita desse livro, senti uma grande liberdade. Fiquei em pé de igualdade com meu pai. Sendo adulta, não havia mais o dever de obediência. Não sei se é o meu livro mais bem-sucedido, mas tive a sensação de ter eliminado os freios e de ter ido realmente ao ponto.
LC: O seu pai nunca falou sobre a experiência de ter tido a infância marcada pela Segunda Guerra Mundial, tampouco sobre ter vivenciado, como médico, o trauma da Guerra da Argélia. Você constrói um texto em que o silenciamento dele é sintetizado na frase: “Não se deve falar sobre aquilo que chateia”, repetida insistentemente ao longo de diversos livros. Tenho a impressão de que esse silenciamento paterno dá origem a um sentimento de “des-herança”, de ausência na transmissão e com narradoras marcadas por uma fratura no continuum verbal. Podemos pensar um “mal de transmissão” em sua obra?
CS: Discordo de você em relação à ausência de transmissão. Não ocorreu a transmissão dos dramas, mas houve outro tipo de transmissão. Para começar, houve a presença do amor e da afeição do meu pai por seus filhos, mas ocorreu ainda a transmissão do belo. Ele era um homem que valorizava a beleza das coisas materiais, tinha muito bom gosto e gostava de compartilhar a beleza de forma generosa, oferecendo, por exemplo, presentes, viagens e através também da admiração que sentia pelo belo, seja uma obra de arte, por roupas, por paisagens ou por um lindo jardim. Portanto, a transmissão se realizou e foi muito importante. Não podemos negligenciar a transmissão do belo. Efetivamente, a transmissão não se deu integralmente, entretanto, se eu tivesse que optar entre essas duas formas, escolheria a transmissão da beleza e do amor.
LC: A repetição de certas cenas ou mesmos de algumas expressões dentro do espaço autobiográfico formado a partir de suas publicações cria uma sensação de cumplicidade nos leitores, há uma familiaridade que se instaura.
CS: Posso me transformar, mentir ou inventar, mas sempre conto a mesma história e, certamente, os leitores a reconhecem, o que talvez dê origem a esse sentimento de familiaridade.
LBC: Deux petites bourgeoises (2021) é um romance autobiográfico muito sensível, sobre a amizade das personagens Esther e Héloise. Você poderia falar um pouco mais sobre ele?
CS: É uma história inspirada em minha infância e em uma longa amizade iniciada na escola. Estudávamos em um colégio da elite intelectual parisiense. Não éramos garotas descoladas, mas compenetradas. Recebemos uma ótima formação, graças à escola e à família. Isso foi na década de 70 e início dos anos 80, fomos criadas por mães feministas e estávamos convencidas de que havíamos nos livrado das desigualdades de gênero, que tínhamos uma relação igualitária com os garotos. Pouco a pouco, a despeito da nossa posição social privilegiada, as amarras da condição feminina também nos atingiram. Gradativamente, nos estudos, no trabalho, na vida afetiva, conjugal e familiar, o espectro de gênero se abateu sobre nós. Eu quis falar sobre isso e, também, sobre amizade. Escreve-se muito sobre casais e sobre vida amorosa, como se isso estivesse no centro da vida das mulheres, mas a amizade, assim como a burguesia, é um tema pouco explorado. Percebi que, para mim, as relações de amizades eram mais bem-sucedidas que os relacionamentos amorosos e que elas também me proporcionam muito amor e ternura. Além de tudo isso, quis falar sobre morte porque perdi, subitamente, a minha amiga de infância. A morte também é um tema que costumamos evitar em conversas. Sempre evitamos falar sobre doença e morte e nos comportamos como se não fôssemos mortais, sobretudo diante de pessoas com um prognóstico fatal anunciado, então quis escrever sobre a morte.
LC: E você escreveu o livro durante o período de confinamento da Covid-19?
CS: Não, foi antes, mas revisei durante o confinamento. Escrevo rápido, mas reescrevo bastante. Procuro realizar uma escrita simples e isso demanda muito trabalho de reescrita. Efetivamente, à medida que eu trabalhava e que a morte nos rodeava, a narrativa tomou uma outra dimensão…
LC: Uma dimensão coletiva?
CS: Claro.
LC: Na primeira parte de Deux petites bourgeoises, além de uma narrativa de infância, o leitor acompanha a História da França em um determinado período, a emergência de novas classes sociais nos anos 70, como a esquerda burguesa intelectual. As personagens de Esther e de Héloise não conseguem escapar da condição de esposa e mãe, ou seja, não escapam da “dominação masculina”.
CS: Isso mesmo. Eu pensava que, por ter tido o privilégio de ter uma boa formação, poderia me considerar em posição de igualdade com os rapazes. Lembro que, aos 17 anos, quando engravidei, fiquei furiosa com o meu corpo, eu me senti traída por ele. Achava que, assim como os meninos, eu podia fazer sexo impunemente, mas não era bem assim, as garotas engravidam. Fiquei furiosa porque descobri que não tinha o mesmo corpo dos meninos e ninguém havia me ensinado isso. Tenho um útero e posso engravidar! Foi nesse período que comecei a me curvar um pouco. Nessa época, eu tinha características consideradas “pouco femininas”, às vezes eu era bruta, violenta e bastante esportiva. Passei a abaixar mais a cabeça, afinal, eu era apenas uma garota. Mais tarde, tive filhos e me casei. Fiz tudo aquilo que as mulheres costumam fazer em casa, além de trabalhar fora. Só comecei a me revoltar quando entrei na faixa dos 40 anos e foi apenas aos 50, na menopausa, que me senti, finalmente, em igualdade com os homens da minha idade. Em La tendresse du crawl (2019), conto como a natação me fez perceber o meu corpo de outra forma, sem ser inferior ao corpo dos meninos, nem mais frágil, nem mais suave, mas que simplesmente tem defeitos e qualidades.
LC: Esther é uma personagem presente também em Nuits d’été à Broklyn (2020). Parece uma espécie de alter ego, lembrando um pouco o Nathan Zuckerman, de Philip Roth. Quem são os escritores que inspiram você?
CS: Tive muita vontade de passar a fazer realmente ficção, um romance de imaginação. Tinha, enfim, me libertado da minha família, escrevera sobre meu avô, meu pai, minha mãe. Eu podia, enfim, seguir adiante. Morei em Nova York na juventude, criei, então, a personagem de Esther – que não sou eu, mas na qual inseri aspectos autobiográficos. Esther é a personagem ficcional que me libertou. Ela pôde assumir tudo o que eu não ousava dizer sobre mim mesma, sobre a burguesia ou sobre bons estudos, por exemplo. Preciso dizer que senti certo prazer escrevendo esse romance: imaginar, inventar, mentir! O romance é a arte de mentir, foi tão prazeroso. No entanto, quando terminei a primeira versão, percebi que estava faltando alguma coisa, havia uma lacuna no livro, eu precisava voltar para a Europa e retomar a Shoá. Eu me dei conta então de que não escaparia disso nunca e que era preciso que existisse essa história no passado de Esther. Fiquei surpresa, pois pensei que tivesse conseguido virar a página. Mesmo não estando tão livre quanto imaginara, Esther – personagem ficcional com aspectos autobiográficos – me ajudou muito, apesar de não ter conseguido me descolar completamente da minha história familiar.
No caso de Deux petites bourgeoises, escrevi uma primeira versão em primeira pessoa, mas achei que estava limitado, redutor. Quando passei para a terceira pessoa, retomei a personagem de Esther e gostei muito do resultado. Com uma personagem de ficção, pude ficar mais livre e até mais sincera, escrevendo aquilo que não conseguiria na primeira pessoa.
LC: Você considera que faz uma literatura “desconcertante”, no sentido atribuído pelo teórico Dominique Viart?
CS: Gosto quando a literatura me força a abrir portas que me davam medo, quando ela me permite enxergar o que eu recusava ver e quando ela me perturba. Ao mesmo tempo, a leitura é um consolo por sua beleza.
LC: Temas tabus ocupam um lugar central em sua obra: segredo de família, aborto, trauma. Eles aparecem também em seus documentários, abordando assuntos como a sexualidade na terceira idade ou ainda a opção pela não maternidade. Os temas que andam contra a corrente propulsionam a sua criação artística?
CS: Não é proposital, preferiria trabalhar sobre assuntos mais consoladores, mais leves ou suaves. Escolho quase de forma inconsciente, quando começo a trabalhar, e percebo que não são temas agradáveis. Mas escrever sobre essas questões me tranquiliza. Temas a priori difíceis, como aborto, mulheres sem filhos, sexualidade de mulheres idosas são, ao mesmo tempo, reconfortantes. Saber que se pode interromper uma gravidez, que temos a liberdade de fazê-lo – mesmo sendo algo difícil – ou que podemos optar pela não maternidade e sermos plenamente felizes, ou ainda que existe sexualidade depois dos 70 ou 80 anos, é reconfortante. Percebemos que não estamos sozinhas, que existem outras possibilidades. Escrever e ler me libertam de injunções sociais aprisionadoras.
Laura Campos é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Rouen, na França.
[1] A expressão faz referência ao livro Archives de l’intime: Yann Potin (org). Françoise Dolto. Archives de l’intime. Paris: Gallimard, 2008.
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