Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes é muito difícil resistir, em especial quando o amigo se dispõe, dá a ideia, sem que a gente diga nada. Como negar uma chance dessas? Na secura de viagens em que andamos, na abstinência de passeios planetários, particularmente na fome de andanças por livrarias boas de outras plagas, fica complicadíssimo dizer “não, imagina! pode deixar, não precisa” a alguém que pode trazer um ou dois volumes, dos grandes.
Obrigada, Paulo, por procurar os livros e trazê-los, atravessando o Atlântico e me deixando numa alegria infantil, eu e meus brinquedos. E sem me perguntar nada. Eu é que perguntei sua chave pix para deixar logo pagos meus momentos de felicidade que se seguem à abertura da sacolinha de libros de alguma loja espanhola. Até a sacola vou guardar.
Depois da oferta de trazer algo que me interessasse, mandei umas imagens de capas e esperei pelas notícias. É claro que não foi fácil. Pagar livros em euros não é exatamente tranquilo. Mas até nisso o amigo foi gentil, procurando um dos títulos em sebos, por preços menos escorchantes em reais. Que felicidade! Infelizmente, não se pode dizer que ela não tenha preço. Tem.
À medida que o amigo encontrava os livros (que não eram raros nem nada), ia dando notícias com fotos que me deixavam em êxtase. Na chegada ao Brasil, tratamos logo de combinar a entrega. Não pude conter minha intensa alegria ao tocar os volumes com as palmas das mãos, passar-lhes os dedos, abri-los reparando na folha de rosto, em partes do texto, aberturas de capítulo, colofões. Obrigada, de novo. Jamais será suficiente dizer obrigada, gracias.
Tem, mas acabou
Bom, como sabemos, meu amigo, esses dois livros volumosos que ocuparam sua mala por milhares de quilômetros já estavam no meu Kindle há tempos. Foram comprados assim por falta de outra opção. Relutei, mas tive de pedi-los, pagando em reais um preço razoável, mas ficando com a sensação, funda no peito, de que não os tinha de fato como gostaria de ter. Há livros que não saciam; ou há tipos deles que não saciam. Por mais que cheguem e que apareçam nas telas que acessamos, dão certo ar de ausência difícil de explicar. Dorme-se e acorda-se como se eles estivessem por um fio, não existissem direito. Lendo-os, temos a possibilidade do conhecimento, do uso, do consumo, mas não a da posse, que costuma fazer diferença em certos tipos de produto. Mas isso não vale para todo livro. É como se, dentro de nós (e isso é bem particular), elegêssemos livros que podem ser só digitais (e isso fosse um tipo de insuficiência), enquanto outros têm de ser impressos, materiais de outra forma, acessíveis na estante, e não apenas num dispositivo projetor.
O que fiz? É como se eu chegasse à livraria e dissesse ao livreiro ou à livreira: me dá um de cada. Não se trata de excluir ou de necessariamente escolher. Ninguém a isso me obriga. O que acontece é que, embora eu tenha minhas preferências, como todo mundo, sinto que algumas obras não me pertencem se estiverem apenas num dispositivo de tecnologia digital e eletrônica.
Livros abraçáveis
Tecnologias somem. Elas existem depois de um on, depois se apagam no off, no risco enorme do sem bateria ou na obsolescência. Existem sem existir. É certa fé na leitura, como em Fahrenheit 451: o livro está ali para ser lido, incorporado aos nossos conhecimentos, à nossa memória (frágil), e não poderá desaparecer na bruma, evaporar-se. Não. Há livros que não. Eles podem estar em nós, em tornar-se parte do nosso corpo e da nossa existência, mas não basta. Um de cada, por favor, porque os quero na estante, de pé, lombadas à mostra entre outros de mesmo assunto, se é assim que os organizo. Não basta que sejam projeções; precisam ser abraçáveis. Relê-los é uma espécie de ritual material, desde as manchas até meus rabiscos e comentários; não me contento com a espécie de fantasmagoria que é ler algo importante num objeto traiçoeiro e infiel, tal como são os “leitores” eletrônicos, sejam eles e-readers ou celulares. Todos são livros, é certo, mas alguns são mais. Pronto, falei.
Agora, sim. Expostas na estante estão as lombadas cobiçadas há meses. Viajaram longamente, chegaram aqui e agora são duplos mais palpáveis dos textos que andei lendo no Kindle. Sei o que dizem. Mas não é só isso. É algo mais. Uma boa promiscuidade, que me perdoem as grandes empresas de tecnologia e seus discursos predadores.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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COLUNA MARCA PÁGINA
DOIS DE CADA
por Ana Elisa Ribeiro
Obrigada, Paulo, por procurar os livros e trazê-los, atravessando o Atlântico e me deixando numa alegria infantil, eu e meus brinquedos. E sem me perguntar nada. Eu é que perguntei sua chave pix para deixar logo pagos meus momentos de felicidade que se seguem à abertura da sacolinha de libros de alguma loja espanhola. Até a sacola vou guardar.
Depois da oferta de trazer algo que me interessasse, mandei umas imagens de capas e esperei pelas notícias. É claro que não foi fácil. Pagar livros em euros não é exatamente tranquilo. Mas até nisso o amigo foi gentil, procurando um dos títulos em sebos, por preços menos escorchantes em reais. Que felicidade! Infelizmente, não se pode dizer que ela não tenha preço. Tem.
À medida que o amigo encontrava os livros (que não eram raros nem nada), ia dando notícias com fotos que me deixavam em êxtase. Na chegada ao Brasil, tratamos logo de combinar a entrega. Não pude conter minha intensa alegria ao tocar os volumes com as palmas das mãos, passar-lhes os dedos, abri-los reparando na folha de rosto, em partes do texto, aberturas de capítulo, colofões. Obrigada, de novo. Jamais será suficiente dizer obrigada, gracias.
Tem, mas acabou
Bom, como sabemos, meu amigo, esses dois livros volumosos que ocuparam sua mala por milhares de quilômetros já estavam no meu Kindle há tempos. Foram comprados assim por falta de outra opção. Relutei, mas tive de pedi-los, pagando em reais um preço razoável, mas ficando com a sensação, funda no peito, de que não os tinha de fato como gostaria de ter. Há livros que não saciam; ou há tipos deles que não saciam. Por mais que cheguem e que apareçam nas telas que acessamos, dão certo ar de ausência difícil de explicar. Dorme-se e acorda-se como se eles estivessem por um fio, não existissem direito. Lendo-os, temos a possibilidade do conhecimento, do uso, do consumo, mas não a da posse, que costuma fazer diferença em certos tipos de produto. Mas isso não vale para todo livro. É como se, dentro de nós (e isso é bem particular), elegêssemos livros que podem ser só digitais (e isso fosse um tipo de insuficiência), enquanto outros têm de ser impressos, materiais de outra forma, acessíveis na estante, e não apenas num dispositivo projetor.
O que fiz? É como se eu chegasse à livraria e dissesse ao livreiro ou à livreira: me dá um de cada. Não se trata de excluir ou de necessariamente escolher. Ninguém a isso me obriga. O que acontece é que, embora eu tenha minhas preferências, como todo mundo, sinto que algumas obras não me pertencem se estiverem apenas num dispositivo de tecnologia digital e eletrônica.
Livros abraçáveis
Tecnologias somem. Elas existem depois de um on, depois se apagam no off, no risco enorme do sem bateria ou na obsolescência. Existem sem existir. É certa fé na leitura, como em Fahrenheit 451: o livro está ali para ser lido, incorporado aos nossos conhecimentos, à nossa memória (frágil), e não poderá desaparecer na bruma, evaporar-se. Não. Há livros que não. Eles podem estar em nós, em tornar-se parte do nosso corpo e da nossa existência, mas não basta. Um de cada, por favor, porque os quero na estante, de pé, lombadas à mostra entre outros de mesmo assunto, se é assim que os organizo. Não basta que sejam projeções; precisam ser abraçáveis. Relê-los é uma espécie de ritual material, desde as manchas até meus rabiscos e comentários; não me contento com a espécie de fantasmagoria que é ler algo importante num objeto traiçoeiro e infiel, tal como são os “leitores” eletrônicos, sejam eles e-readers ou celulares. Todos são livros, é certo, mas alguns são mais. Pronto, falei.
Agora, sim. Expostas na estante estão as lombadas cobiçadas há meses. Viajaram longamente, chegaram aqui e agora são duplos mais palpáveis dos textos que andei lendo no Kindle. Sei o que dizem. Mas não é só isso. É algo mais. Uma boa promiscuidade, que me perdoem as grandes empresas de tecnologia e seus discursos predadores.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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