Tem sido difícil escrever. Não há uma Grande Guerra em curso, ninguém que eu amo foi tirado de mim, nem tenho sido presa de algum vício, mas ainda assim tem sido difícil escrever. Provavelmente, por viver tempos nos quais a ameaça à vida se tornou equivalente à de uma guerra, por ter subtraída de mim uma parte que parecia imprescindível, por ter se tornado toda a linguagem do mundo uma espécie de vício (com suas reiterações incessantes, as quais, ao mesmo tempo, levam-na ao excesso e ao esvaziamento – paradoxo que é a fundação de todo vício).
Reabro o Escrever, que a Relicário publicou em 2021. Não sei exatamente o que procuro ali. Alguma luz na escrita de Marguerite Duras. Caio na página 64, a última do ensaio. Nervoso por não saber o que vou escrever, leio: “Se soubéssemos alguma coisa daquilo que vamos escrever antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos”. Continua: “Escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever – só ficamos sabendo depois – antes, é a pergunta mais perigosa que podemos nos fazer. Mas também é a mais comum”.
Sei que frases como essas podem, facilmente, tornarem-se mero fetiche: citações que repetimos, fotografamos e postamos nas redes sociais, respondemos com um “que bonito isso”, como se fossem enfeites, apetrechos para comoção breve. Há valor nisso, não quero soar amargo. Mas é que replicar algo como a já famosa trinca: escrever/não podemos/ e escrevemos, enquanto se continua a tocar o mesmo velho barco, a escrever como se fazia antes, é um pouco diferente de realmente não poder escrever. Perder de si, por alguma razão, aquela parte que escrevia. E não se tratar só de algo que vai passar (a ser dito em voz de avó). Que só precisa de uma volta no parque, de músicas ou filmes que recuperem a inspiração. Da dose generosa de uma substância ou outra.
Conheço pouco da Duras, acredito, mas sei que não foi fácil para ela tampouco. O texto de Escrever é um confronto direto com a composição de histórias e a vida, mas muito da ficção dela também impõe – e impõe-se – embate similar entre a palavra, a narrativa, e seus efeitos, suas relações com o mundo. Penso, especialmente, em roteiros para o cinema como Hiroshima, meu amor ou Le camion. Romances como O amante e O amante da China da Norte, os quais demandam muitas formas de coragem para serem escritos, inclusive a de retomar a mesma história, para compor outra (uma história contada de outra forma torna-se outra história).
Recorri ao Escrever para encontrar alguma luz, me deparei com as muitas menções de Duras à noite. A escrita como uma espécie de escuridão a ser atravessada, não uma luz. Penso que uma das maiores lições (ou influências) que ela oferece é essa: uma forma de coragem para a escrita. Não necessariamente a coragem de expor (ou transformar) eventos da própria biografia em sua criação, de abordar tabus ou de desafiar tradições literárias e editoriais. Tudo isso pode ser muito proveitoso, mas antes de um fim específico para a coragem (ou de delimitá-la a tal), quero destacar essa bravura na origem, essa coragem que para cada escritor ou escritora será diferente, singular.
Cada um sabe – ou precisa descobrir – o que há para ser quebrado, ou refeito, entre si e a palavra. Que noite terá de ser atravessada e como. Tentaremos sempre.
(E eu imaginava outro teor de texto para essa publicação, mas só agora que escrevi soube o que iria escrever. Obrigado por mais essa, Duras.)
Rafael Gallo nasceu em São Paulo, em 1981. É autor de Rebentar (2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Réveillon e outros dias (2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, ambos publicados pela Record. Tem textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.
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COLUNA LIVRE
UMA FORMA DE CORAGEM PARA A ESCRITA
por Rafael Gallo
Tem sido difícil escrever. Não há uma Grande Guerra em curso, ninguém que eu amo foi tirado de mim, nem tenho sido presa de algum vício, mas ainda assim tem sido difícil escrever. Provavelmente, por viver tempos nos quais a ameaça à vida se tornou equivalente à de uma guerra, por ter subtraída de mim uma parte que parecia imprescindível, por ter se tornado toda a linguagem do mundo uma espécie de vício (com suas reiterações incessantes, as quais, ao mesmo tempo, levam-na ao excesso e ao esvaziamento – paradoxo que é a fundação de todo vício).
Reabro o Escrever, que a Relicário publicou em 2021. Não sei exatamente o que procuro ali. Alguma luz na escrita de Marguerite Duras. Caio na página 64, a última do ensaio. Nervoso por não saber o que vou escrever, leio: “Se soubéssemos alguma coisa daquilo que vamos escrever antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos”. Continua: “Escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever – só ficamos sabendo depois – antes, é a pergunta mais perigosa que podemos nos fazer. Mas também é a mais comum”.
Sei que frases como essas podem, facilmente, tornarem-se mero fetiche: citações que repetimos, fotografamos e postamos nas redes sociais, respondemos com um “que bonito isso”, como se fossem enfeites, apetrechos para comoção breve. Há valor nisso, não quero soar amargo. Mas é que replicar algo como a já famosa trinca: escrever/não podemos/ e escrevemos, enquanto se continua a tocar o mesmo velho barco, a escrever como se fazia antes, é um pouco diferente de realmente não poder escrever. Perder de si, por alguma razão, aquela parte que escrevia. E não se tratar só de algo que vai passar (a ser dito em voz de avó). Que só precisa de uma volta no parque, de músicas ou filmes que recuperem a inspiração. Da dose generosa de uma substância ou outra.
Conheço pouco da Duras, acredito, mas sei que não foi fácil para ela tampouco. O texto de Escrever é um confronto direto com a composição de histórias e a vida, mas muito da ficção dela também impõe – e impõe-se – embate similar entre a palavra, a narrativa, e seus efeitos, suas relações com o mundo. Penso, especialmente, em roteiros para o cinema como Hiroshima, meu amor ou Le camion. Romances como O amante e O amante da China da Norte, os quais demandam muitas formas de coragem para serem escritos, inclusive a de retomar a mesma história, para compor outra (uma história contada de outra forma torna-se outra história).
Recorri ao Escrever para encontrar alguma luz, me deparei com as muitas menções de Duras à noite. A escrita como uma espécie de escuridão a ser atravessada, não uma luz. Penso que uma das maiores lições (ou influências) que ela oferece é essa: uma forma de coragem para a escrita. Não necessariamente a coragem de expor (ou transformar) eventos da própria biografia em sua criação, de abordar tabus ou de desafiar tradições literárias e editoriais. Tudo isso pode ser muito proveitoso, mas antes de um fim específico para a coragem (ou de delimitá-la a tal), quero destacar essa bravura na origem, essa coragem que para cada escritor ou escritora será diferente, singular.
Cada um sabe – ou precisa descobrir – o que há para ser quebrado, ou refeito, entre si e a palavra. Que noite terá de ser atravessada e como. Tentaremos sempre.
(E eu imaginava outro teor de texto para essa publicação, mas só agora que escrevi soube o que iria escrever. Obrigado por mais essa, Duras.)
Rafael Gallo nasceu em São Paulo, em 1981. É autor de Rebentar (2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Réveillon e outros dias (2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, ambos publicados pela Record. Tem textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.
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