Não sei mais se era uma agenda ou um diário. Acho que não tinha cadeado. Eu me lembro da capa dura com o desenho do Garfield, que adorava e com quem me solidarizava no ódio às segundas-feiras. Isso passou. Hoje tenho mais horror aos domingos. E, às vezes, à paradeza das sextas. Naquela brochura com pautas, não sei se cheguei a anotar essas singularidades. Nem se escondi o objeto, a fim de dar a ele maior aura de segredo. O que sei é que, um dia, minha mãe o leu. Sem a minha permissão.
Como alguém descobre que foi devassado? Quando outra pessoa expõe, em alguma oportunidade, a nossa intimidade. Nem que seja para nós mesmos. Nem que estejamos apenas os dois ou as duas numa sala fechada. De repente, a nudez forçada, a declaração de culpa, o julgamento. Como pudemos ser tão ingênuos? Escrever segredos em um caderno sem cadeado? Escrever segredos? Tornar o íntimo tão vulnerável. Como pudemos?
Ela entrou em meu quarto com a cara fechada, iniciou, sem negociar, uma conversa em tom duro, acusando minha tia de umas coisas que eu nem saberia entender, e me dando conselhos que eu ainda não estava preparada para escutar. Dez, onze, doze anos, era minha idade, talvez. Minha cara perplexa, as interrogações pululando, o que é isso? Em pouco tempo, ela admitiu: li seu diário. Se era agenda ou diário, pouco importa. Importa é que o que eu fazia lá era escrever minha intimidade; narrar o dia a dia de uma adolescente, contar sobre amigas, inimigas, escola, meninos, possíveis beijos, prováveis namoros, mas tudo ainda sem começar. A vida era uma espécie de desencontro – ainda é?, as outras meninas eram sempre as preferidas, ainda não era possível saber ao certo onde meu desejo ia dar. Mas ela leu meu diário e devassou tudo. Pior que isso: vingou-se.
A questão era um beijo. Um garoto da rua de lá me pedira um beijo. Corri para casa, dizendo a ele que ia pensar. Noutro dia daria resposta. Beijo suspenso. Beijo quase. Beijo talvez. Num tempo-idade em que ainda existiam essas categorias. Ainda por calcular como era beijar. E a primeira coisa que devo ter feito, diante desse dilema, poderoso para uma menina tão menina, foi escrever em meu diário.
Em seguida, procurei alguém com quem falar sobre a situação, sobre um possível beijo, sobre a importância ou desimportância disso, sobre iniciações. E essa pessoa era uma tia apenas onze anos mais velha. Uma tia que já beijava, já abraçava, já namorava e talvez algo mais que eu ainda não pudesse saber. A tia, muito mais jovem do que minha mãe, deve ter dito qualquer coisa como: se você achar que quer, deixe que ele a beije. Ou: beije para ver se gosta. Ou: você gosta dele? De repente, veja como é.
Afora a técnica do beijo, que ainda era desconhecida da minha meninice protegida, a ideia de beijar já soava uma enorme transgressão. Eu ainda considerava o que fazer, pedindo conselho de tia e confessando ao diário minhas dúvidas e meus desejos ainda indefinidos. No entanto, abruptamente, fui invadida. E como se não bastasse a invasão, o escancaramento dos meus pensamentos ao julgamento da mãe de pouco diálogo, tive de lidar ainda com o afastamento da tia, proibida do contato comigo, má influência, mau caminho, maus passos, pervertida. Foi aí que minha escrita deu as mãos à solidão.
O menino continuava querendo o beijo, que eu ainda não sabia se daria; meu coração ainda não sabia o que sentir, enquanto a curiosidade fazia festa em minha pele. A tia estava banida; o diário já não era confiável. Com quem contar então?
Sem escrita, sem tia, sem falar, sem ouvir, fui me esconder na sozinhez e no silêncio, até ter coragem de aprender por mim; mas gostaria de ter tido abraço, em vez de punição.
Não se lê um diário de menina, nem se ele repousar escancarado sobre um tampo de mesa.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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COLUNA MARCA PÁGINA
LI SEU DIÁRIO
por Ana Elisa Ribeiro
Não sei mais se era uma agenda ou um diário. Acho que não tinha cadeado. Eu me lembro da capa dura com o desenho do Garfield, que adorava e com quem me solidarizava no ódio às segundas-feiras. Isso passou. Hoje tenho mais horror aos domingos. E, às vezes, à paradeza das sextas. Naquela brochura com pautas, não sei se cheguei a anotar essas singularidades. Nem se escondi o objeto, a fim de dar a ele maior aura de segredo. O que sei é que, um dia, minha mãe o leu. Sem a minha permissão.
Como alguém descobre que foi devassado? Quando outra pessoa expõe, em alguma oportunidade, a nossa intimidade. Nem que seja para nós mesmos. Nem que estejamos apenas os dois ou as duas numa sala fechada. De repente, a nudez forçada, a declaração de culpa, o julgamento. Como pudemos ser tão ingênuos? Escrever segredos em um caderno sem cadeado? Escrever segredos? Tornar o íntimo tão vulnerável. Como pudemos?
Ela entrou em meu quarto com a cara fechada, iniciou, sem negociar, uma conversa em tom duro, acusando minha tia de umas coisas que eu nem saberia entender, e me dando conselhos que eu ainda não estava preparada para escutar. Dez, onze, doze anos, era minha idade, talvez. Minha cara perplexa, as interrogações pululando, o que é isso? Em pouco tempo, ela admitiu: li seu diário. Se era agenda ou diário, pouco importa. Importa é que o que eu fazia lá era escrever minha intimidade; narrar o dia a dia de uma adolescente, contar sobre amigas, inimigas, escola, meninos, possíveis beijos, prováveis namoros, mas tudo ainda sem começar. A vida era uma espécie de desencontro – ainda é?, as outras meninas eram sempre as preferidas, ainda não era possível saber ao certo onde meu desejo ia dar. Mas ela leu meu diário e devassou tudo. Pior que isso: vingou-se.
A questão era um beijo. Um garoto da rua de lá me pedira um beijo. Corri para casa, dizendo a ele que ia pensar. Noutro dia daria resposta. Beijo suspenso. Beijo quase. Beijo talvez. Num tempo-idade em que ainda existiam essas categorias. Ainda por calcular como era beijar. E a primeira coisa que devo ter feito, diante desse dilema, poderoso para uma menina tão menina, foi escrever em meu diário.
Em seguida, procurei alguém com quem falar sobre a situação, sobre um possível beijo, sobre a importância ou desimportância disso, sobre iniciações. E essa pessoa era uma tia apenas onze anos mais velha. Uma tia que já beijava, já abraçava, já namorava e talvez algo mais que eu ainda não pudesse saber. A tia, muito mais jovem do que minha mãe, deve ter dito qualquer coisa como: se você achar que quer, deixe que ele a beije. Ou: beije para ver se gosta. Ou: você gosta dele? De repente, veja como é.
Afora a técnica do beijo, que ainda era desconhecida da minha meninice protegida, a ideia de beijar já soava uma enorme transgressão. Eu ainda considerava o que fazer, pedindo conselho de tia e confessando ao diário minhas dúvidas e meus desejos ainda indefinidos. No entanto, abruptamente, fui invadida. E como se não bastasse a invasão, o escancaramento dos meus pensamentos ao julgamento da mãe de pouco diálogo, tive de lidar ainda com o afastamento da tia, proibida do contato comigo, má influência, mau caminho, maus passos, pervertida. Foi aí que minha escrita deu as mãos à solidão.
O menino continuava querendo o beijo, que eu ainda não sabia se daria; meu coração ainda não sabia o que sentir, enquanto a curiosidade fazia festa em minha pele. A tia estava banida; o diário já não era confiável. Com quem contar então?
Sem escrita, sem tia, sem falar, sem ouvir, fui me esconder na sozinhez e no silêncio, até ter coragem de aprender por mim; mas gostaria de ter tido abraço, em vez de punição.
Não se lê um diário de menina, nem se ele repousar escancarado sobre um tampo de mesa.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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