A Praia do Russel e o Outeiro da Glória. Autor desconhecido. Arquivo Nacional, 1903.
Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade carioca. Trata-se de uma simples nomeação de uma praça, que até hoje por incrível que pareça jazia sem nome por aí. E que agora, se o prefeito quiser, como por providência dos espíritos ancestrais, terá o nome da presença histórica de “Uruçumirim”.
A iniciativa partiu inicialmente de um grupo de moradores do bairro da Glória e que depois se estendeu a um coletivo de intelectuais que se mobilizaram pela causa. Inspirados no reconhecimento e valorização do Cais do Valongo na construção da identidade da cidade, agora a praça Uruçumirim poderá fazer o mesmo por nossas raízes tupínicas.
Trata-se do nome da grande fortaleza tamoia de resistência à conquista colonial portuguesa da Guanabara. Durante mais de trinta anos os portugueses não puderem colocar os pés no Rio de Janeiro. Não eram bem-vindos. E Uruçumirim simbolizava aquela aversão. Era uma grande paliçada de madeira e pedras que cercava o morro do atual Outeiro da Glória e que, na época, ficava junto à costa da baía. Por ali, ao lado, corria uma das antigas saídas do rio da aldeia Karióca, a original, dos tupinambás, tal qual relataram Jean de Léry e José de Anchieta.
Trincheira
Ponto estratégico de defesa das aldeias originárias do Rio antes do Rio. Muitos anos antes de 1567, tupinambás se entrincheiraram ali para defender-se e manter o domínio da costa do Rio de Janeiro. Do alto daquele morro podiam vizualizar os inimigos e acertá-los com suas potentes flechas. Além disso, com a ajuda dos seus genros normandos, possuíam canhões e muita artilharia a pólvora posicionados naquele topo, o que levava os conquistadores lusos, sempre em menor número, a permanecerem bem longe. Ficavam restritos a uma estreita várzea na entrada da baía, no sopé do Pão de Açúcar, protegidos pelas montanhas e longe das aldeias tupinambás. Estácio de Sá chegou à Guanabara em março de 1565 e estava nesse mesmo lugar em janeiro de 1567. Uruçumirim resistia e também os intimidava. Para vencê-la, só com muitos reforços.
Vencer Uruçumirim era uma necessidade dos governantes lusos, uma imposição da coroa portuguesa, que para isso havia enviado uma esquadra de Lisboa. Não existia mais batalha contra os franceses, eles já tinham sido derrotados em 1560 quando da destruição do forte de Villegagnon. A guerra agora era principalmente contra os indígenas, o grande obstáculo à conquista da Guanabara. A última resistência era a fortaleza tamoia. Para isso, o próprio governador-geral tomou a frente da questão e mobilizou os esforços coloniais de todas as partes da costa e também cooptou os aliados indígenas de que dispôs e partiu para a Guanabara.
A armada de Mem de Sá chegou ao Rio de Janeiro em 18 de janeiro de 1567 e o ataque à fortaleza de Uruçumirim ocorreu praticamente de imediato. Não porque era dia de São Sebastião, mas sim porque urgia não deixar que os tupinambás convocassem os guerreiros de outras aldeias da costa, do interior e de outras partes do seus país. Um dia a mais de espera para o ataque e talvez hoje estivéssemos contando outra história. Podemos imaginar o desespero dos tupinambás do lado de dentro da paliçada e correria dos guerreiros a convocar as aldeias mais próximas assim que avistaram a grande quantidade de barcos entrar pela baía.
Solo de combate
A única fonte disponível para tudo o que aconteceu naqueles dias é um documento do próprio governador Mem de Sá, chamado de “Instrumentos de Serviços”, datado de 1570 (Anais da Biblioteca Nacional, 1905, p. 135). Depois ainda anexou a esse documento testemunhos de outras pessoas, a fim de dar valor a seu próprio relato. Por esse documento temos que Mem de Sá, que havia chegado ao Rio de Janeiro doente, mandou dar combate a fortaleza que chamou de “Biraoaçu Merin” por causa de seu “grande principal e muito guerreiro o qual estava em um paço muito alto e fragoso com muitos franceses e artilharia”. O nome é do líder que comandava aquela fortificação – certamente Mem de Sá sabia disso por Arariboia. Diz ele que a fortificação foi combatida com ânimo, mas “com muitos mortos e feridos dos cristãos” que mesmo assim lutaram com fervor tanto no “cabo que no começo” da batalha. Da vitória escreveu apenas duas linhas, nas quais relatou que “cativaram nove ou dez franceses, (e) mataram outros” e que na ocasião dessa batalha “Estácio foi ferido de uma flechada do que morreu”.
Não se sabe quantos portugueses morreram nos combates, mas pelo relato do governador não foram poucos os que deram a vida para expulsar os tamoios de sua terra ancestral e em número superior os tupis deram sua vida por essa terra. Defenderam-na até o fim, ante a escravização colonial. Não se deixaram subjugar. É o sangue dos indígenas, que escorreu pelo granito do Outeiro da Glória, o batismo e a fundação de verdade da cidade de São Sebastião. Só a partir do massacre de Uruçumirim é que a cidade portuguesa começa a ser erguida no antigo Morro do Castelo, o começo de tudo. O Rio foi fundado numa guerra contra seus moradores iniciais. Para que ela pudesse existir, eles precisavam ser expulsos e submetidos pela força num processo que começa com a derrota de Uruçumirim e vai levar mais de cem anos de usurpação das terras das aldeias tupis, até alcançar as serras e o interior. Assim também aconteceu com a origem dos bairros do Rio de Janeiro e suas áreas de expansão. Nossos nomes próprios – Irajá, Taquara, Carioca e tantos mais, tão tupis, tão brasileiros, são a resistência do nosso povo e de onde viemos.
A assinatura de um prefeito e Uruçumirim viverá de novo, e agora para sempre. E com a praça a ser ocupada por nossa identidade fundamental indígena poderemos recontar a história de luta e resistência dos confederados tamoios, de Aimberê e Paranapucu, incorporados na construção da nossa própria resistência como país livre e independente, da nossa cidadania e pertencimento para uma cidade e nação mais consciente de suas origens e sua história, e daquilo que queremos para o futuro.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que se encontra na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
LI SEU DIÁRIO por Ana Elisa Ribeiro Não sei mais se era uma agenda ou um diário. Acho que não tinha cadeado. Eu me lembro da capa dura com o desenho do Garfield, que adorava e com quem me solidarizava no ódio às segundas-feiras. Isso passou. Hoje tenho mais horror aos domingos. E, às …
Nesta coluna Alfaiataria de outubro, Adriana Lisboa nos surpreende com um belo presente de aniversário pelos 8 anos da Relicário! Ela nos brinda com poesia inédita –– um verdadeiro deleite –– e divide conosco seu sentimento por fazer parte de nossa história e de nosso catálogo, já por incríveis três anos: dois livros de poesia, …
MORO AQUI por Nara Vidal Parece fumaça, mas é o reflexo do sol na água que balança. Mergulho um dos pés e logo minhas unhas pintadas de vermelho começam a se ondular. A informação é de que a temperatura da água é sempre de vinte e sete graus. Parece-me muito mais fria, quase gelada. …
“VAI, ADAUTO, SER LIVREIRO NA VIDA” por Adauto Leva, da Livraria Cabeceira Quando me perguntam por que eu abri uma livraria, eu respondo que foi para trabalhar com o produto que eu mais gosto na minha vida. Primeiro de tudo, sou um leitor, foi assim que a vida fez sentido para mim e é …
COLUNA PINDORAMA
URUÇUMIRIM VIVE
por Rafael Freitas da Silva
A Praia do Russel e o Outeiro da Glória. Autor desconhecido. Arquivo Nacional, 1903.
Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade carioca. Trata-se de uma simples nomeação de uma praça, que até hoje por incrível que pareça jazia sem nome por aí. E que agora, se o prefeito quiser, como por providência dos espíritos ancestrais, terá o nome da presença histórica de “Uruçumirim”.
A iniciativa partiu inicialmente de um grupo de moradores do bairro da Glória e que depois se estendeu a um coletivo de intelectuais que se mobilizaram pela causa. Inspirados no reconhecimento e valorização do Cais do Valongo na construção da identidade da cidade, agora a praça Uruçumirim poderá fazer o mesmo por nossas raízes tupínicas.
Trata-se do nome da grande fortaleza tamoia de resistência à conquista colonial portuguesa da Guanabara. Durante mais de trinta anos os portugueses não puderem colocar os pés no Rio de Janeiro. Não eram bem-vindos. E Uruçumirim simbolizava aquela aversão. Era uma grande paliçada de madeira e pedras que cercava o morro do atual Outeiro da Glória e que, na época, ficava junto à costa da baía. Por ali, ao lado, corria uma das antigas saídas do rio da aldeia Karióca, a original, dos tupinambás, tal qual relataram Jean de Léry e José de Anchieta.
Trincheira
Ponto estratégico de defesa das aldeias originárias do Rio antes do Rio. Muitos anos antes de 1567, tupinambás se entrincheiraram ali para defender-se e manter o domínio da costa do Rio de Janeiro. Do alto daquele morro podiam vizualizar os inimigos e acertá-los com suas potentes flechas. Além disso, com a ajuda dos seus genros normandos, possuíam canhões e muita artilharia a pólvora posicionados naquele topo, o que levava os conquistadores lusos, sempre em menor número, a permanecerem bem longe. Ficavam restritos a uma estreita várzea na entrada da baía, no sopé do Pão de Açúcar, protegidos pelas montanhas e longe das aldeias tupinambás. Estácio de Sá chegou à Guanabara em março de 1565 e estava nesse mesmo lugar em janeiro de 1567. Uruçumirim resistia e também os intimidava. Para vencê-la, só com muitos reforços.
Vencer Uruçumirim era uma necessidade dos governantes lusos, uma imposição da coroa portuguesa, que para isso havia enviado uma esquadra de Lisboa. Não existia mais batalha contra os franceses, eles já tinham sido derrotados em 1560 quando da destruição do forte de Villegagnon. A guerra agora era principalmente contra os indígenas, o grande obstáculo à conquista da Guanabara. A última resistência era a fortaleza tamoia. Para isso, o próprio governador-geral tomou a frente da questão e mobilizou os esforços coloniais de todas as partes da costa e também cooptou os aliados indígenas de que dispôs e partiu para a Guanabara.
A armada de Mem de Sá chegou ao Rio de Janeiro em 18 de janeiro de 1567 e o ataque à fortaleza de Uruçumirim ocorreu praticamente de imediato. Não porque era dia de São Sebastião, mas sim porque urgia não deixar que os tupinambás convocassem os guerreiros de outras aldeias da costa, do interior e de outras partes do seus país. Um dia a mais de espera para o ataque e talvez hoje estivéssemos contando outra história. Podemos imaginar o desespero dos tupinambás do lado de dentro da paliçada e correria dos guerreiros a convocar as aldeias mais próximas assim que avistaram a grande quantidade de barcos entrar pela baía.
Solo de combate
A única fonte disponível para tudo o que aconteceu naqueles dias é um documento do próprio governador Mem de Sá, chamado de “Instrumentos de Serviços”, datado de 1570 (Anais da Biblioteca Nacional, 1905, p. 135). Depois ainda anexou a esse documento testemunhos de outras pessoas, a fim de dar valor a seu próprio relato. Por esse documento temos que Mem de Sá, que havia chegado ao Rio de Janeiro doente, mandou dar combate a fortaleza que chamou de “Biraoaçu Merin” por causa de seu “grande principal e muito guerreiro o qual estava em um paço muito alto e fragoso com muitos franceses e artilharia”. O nome é do líder que comandava aquela fortificação – certamente Mem de Sá sabia disso por Arariboia. Diz ele que a fortificação foi combatida com ânimo, mas “com muitos mortos e feridos dos cristãos” que mesmo assim lutaram com fervor tanto no “cabo que no começo” da batalha. Da vitória escreveu apenas duas linhas, nas quais relatou que “cativaram nove ou dez franceses, (e) mataram outros” e que na ocasião dessa batalha “Estácio foi ferido de uma flechada do que morreu”.
Não se sabe quantos portugueses morreram nos combates, mas pelo relato do governador não foram poucos os que deram a vida para expulsar os tamoios de sua terra ancestral e em número superior os tupis deram sua vida por essa terra. Defenderam-na até o fim, ante a escravização colonial. Não se deixaram subjugar. É o sangue dos indígenas, que escorreu pelo granito do Outeiro da Glória, o batismo e a fundação de verdade da cidade de São Sebastião. Só a partir do massacre de Uruçumirim é que a cidade portuguesa começa a ser erguida no antigo Morro do Castelo, o começo de tudo. O Rio foi fundado numa guerra contra seus moradores iniciais. Para que ela pudesse existir, eles precisavam ser expulsos e submetidos pela força num processo que começa com a derrota de Uruçumirim e vai levar mais de cem anos de usurpação das terras das aldeias tupis, até alcançar as serras e o interior. Assim também aconteceu com a origem dos bairros do Rio de Janeiro e suas áreas de expansão. Nossos nomes próprios – Irajá, Taquara, Carioca e tantos mais, tão tupis, tão brasileiros, são a resistência do nosso povo e de onde viemos.
A assinatura de um prefeito e Uruçumirim viverá de novo, e agora para sempre. E com a praça a ser ocupada por nossa identidade fundamental indígena poderemos recontar a história de luta e resistência dos confederados tamoios, de Aimberê e Paranapucu, incorporados na construção da nossa própria resistência como país livre e independente, da nossa cidadania e pertencimento para uma cidade e nação mais consciente de suas origens e sua história, e daquilo que queremos para o futuro.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que se encontra na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
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