Vem da Presidência da República finalmente um assunto digno e benigno para a reflexão de todos os brasileiros. Na verdade, da República Argentina. Pois lá o mandatário Alberto Fernández verbalizou, em uma conferência com o primeiro-ministro espanhol, em Buenos Aires, um ditado portenho ainda pouco conhecido entre nós, tupiniquins. Com clara ideia de bajular seu convidado europeu, afirmou: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos de barco”. Nos tempos ásperos em que vivemos, logo a afirmação se transformou em munição para acusações de menosprezo e racismo. Algumas manchetes de sites e jornais cravaram: “Presidente da Argentina fala mal do Brasil” ou “Alberto Fernández causa mal-estar com frase sobre brasileiros”.
Eu diria, ao que parece, que o presidente da Argentina conhece mais sobre o Brasil do que muitos brasileiros. Esses nacionais talvez não saibam, mas ao nascer nessa pátria, a menos que sejam filhos de imigração recente de pai e mãe, em alguma medida, todos descendem da “selva”, ou seja, dos homens e mulheres originários que aqui habitavam antes da chegada dos “barcos”, em comunhão com as florestas do Brasil. Não existe mal-estar em ser o que se é.
DNA indígena
Existem pesquisas genéticas que apontam, se considerados apenas nossos bisavós, que mais de 80% dos brasileiros guardam em seu DNA traços indígenas. Daí a afirmação engenhosa do antropólogo Viveiros de Castro que diz: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Tal consciência deve ser motivo de orgulho, uma vez que somos um povo no mundo com DNA próprio, e não importado, transplantado de outro continente. É justamente essa característica da nossa mistura com os povos da “selva” que transforma os brasileiros naquilo que uma vez Darcy Ribeiro batizou de: o “povo novo”, ou melhor, o povo brasileiro. Nós não viemos para cá de barco, graças a Maíra.
Queria escrever um samba
O presidente da Argentina, Alberto Fernández se desculpou – com os argentinos. Disse se orgulhar da diversidade de seu povo. Afinal, também por lá grande parte não veio de barco, ainda que alguns se considerem europeus exilados. Em seu socorro, o presidente afirmou que fazia referência a um pensamento do escritor mexicano Octavio Paz, que certa vez escreveu: “Os mexicanos descendem dos astecas; os peruanos, dos incas; e os argentinos, dos barcos”. Na verdade, Paz é inspiração do verdadeiro criador de tal ditado na cultura argentina. Seu nome é Litto Nebbia, cantor de rock dos anos setenta que foi perseguido pela ditadura argentina. Ele teria tido contato com a obra de Octavio Paz durante seu exílio no México e compôs uma linda canção fazendo referência direta à declaração do escritor mexicano.
Litto Nebbia
A gravação original dessa música emociona. Dá vontade de agradecer ao presidente da Argentina a oportunidade de conhecê-la. Quem enxergar ali qualquer menosprezo ou racismo é ruim da cabeça ou doente do pé. O trecho onde ele diz que gostaria de escrever um samba soa como uma homenagem aos brasileiros. Melancolicamente, a letra também faz uma ironia ao sentimento argentino de ser europeizado. É uma reflexão sobre as origens latino-americanas e, sobretudo, argentina. Permitam-me mostrar parte da letra da canção, em tradução própria:
Queria escrever um samba Que não fosse igual a outros sambas Porque os sambas mais lindos Já foram escritos
Queria que fosse um samba Que explicasse um pouco de onde viemos E assim seria mais simples Saber onde vamos
Os brasileiros saíram da selva Os mexicanos vieram dos índios Mas, nós, os argentinos Chegamos nos barcos
E é Litto Nebbia, considerado um dos fundadores do rock argentino e que fez sucesso com a sua banda Los Gatos, que vai acabar com essa falsa polêmica. Seria o caso de o presidente da Argentina completar a letra da música em suas próximas citações. Assim, o “mal-estar” se transformaria de todo em encantamento e erudição.
Queria que fosse um samba Que fale de nós E esta terra que amamos É mistura de todos (os povos).
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
ROUPA, MEMÓRIA por Ana Elisa Ribeiro Era uma blusa de frio com listas azuis e marrons. Lembro que tinha um toque meio seco, mas era de lã ou coisa parecida, aquecia bem, e eu só a usava entre junho e julho, no inverno de Belo Horizonte. Em agosto já parecia demais. Na foto, eu …
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DOIS DE CADA por Ana Elisa Ribeiro Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes …
OLHOS NOS OLHOS por Adriana Lisboa Nestes tempos de isolamento social, muitas pessoas respondem, quando indagadas a respeito do que mais sentem falta: do abraço. Claro, negacionistas nunca deixaram de se abraçar a torto e a direito. Para os demais, porém, após mais de um ano de videoconferências, lives, aulas virtuais e reuniões familiares …
COLUNA PINDORAMA
NÓS VIEMOS DA SELVA
por Rafael Freitas da Silva
Gravura de Jean-Baptiste Debret
Vem da Presidência da República finalmente um assunto digno e benigno para a reflexão de todos os brasileiros. Na verdade, da República Argentina. Pois lá o mandatário Alberto Fernández verbalizou, em uma conferência com o primeiro-ministro espanhol, em Buenos Aires, um ditado portenho ainda pouco conhecido entre nós, tupiniquins. Com clara ideia de bajular seu convidado europeu, afirmou: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos de barco”. Nos tempos ásperos em que vivemos, logo a afirmação se transformou em munição para acusações de menosprezo e racismo. Algumas manchetes de sites e jornais cravaram: “Presidente da Argentina fala mal do Brasil” ou “Alberto Fernández causa mal-estar com frase sobre brasileiros”.
Eu diria, ao que parece, que o presidente da Argentina conhece mais sobre o Brasil do que muitos brasileiros. Esses nacionais talvez não saibam, mas ao nascer nessa pátria, a menos que sejam filhos de imigração recente de pai e mãe, em alguma medida, todos descendem da “selva”, ou seja, dos homens e mulheres originários que aqui habitavam antes da chegada dos “barcos”, em comunhão com as florestas do Brasil. Não existe mal-estar em ser o que se é.
DNA indígena
Existem pesquisas genéticas que apontam, se considerados apenas nossos bisavós, que mais de 80% dos brasileiros guardam em seu DNA traços indígenas. Daí a afirmação engenhosa do antropólogo Viveiros de Castro que diz: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Tal consciência deve ser motivo de orgulho, uma vez que somos um povo no mundo com DNA próprio, e não importado, transplantado de outro continente. É justamente essa característica da nossa mistura com os povos da “selva” que transforma os brasileiros naquilo que uma vez Darcy Ribeiro batizou de: o “povo novo”, ou melhor, o povo brasileiro. Nós não viemos para cá de barco, graças a Maíra.
Queria escrever um samba
O presidente da Argentina, Alberto Fernández se desculpou – com os argentinos. Disse se orgulhar da diversidade de seu povo. Afinal, também por lá grande parte não veio de barco, ainda que alguns se considerem europeus exilados. Em seu socorro, o presidente afirmou que fazia referência a um pensamento do escritor mexicano Octavio Paz, que certa vez escreveu: “Os mexicanos descendem dos astecas; os peruanos, dos incas; e os argentinos, dos barcos”. Na verdade, Paz é inspiração do verdadeiro criador de tal ditado na cultura argentina. Seu nome é Litto Nebbia, cantor de rock dos anos setenta que foi perseguido pela ditadura argentina. Ele teria tido contato com a obra de Octavio Paz durante seu exílio no México e compôs uma linda canção fazendo referência direta à declaração do escritor mexicano.
Litto Nebbia
A gravação original dessa música emociona. Dá vontade de agradecer ao presidente da Argentina a oportunidade de conhecê-la. Quem enxergar ali qualquer menosprezo ou racismo é ruim da cabeça ou doente do pé. O trecho onde ele diz que gostaria de escrever um samba soa como uma homenagem aos brasileiros. Melancolicamente, a letra também faz uma ironia ao sentimento argentino de ser europeizado. É uma reflexão sobre as origens latino-americanas e, sobretudo, argentina. Permitam-me mostrar parte da letra da canção, em tradução própria:
Queria escrever um samba
Que não fosse igual a outros sambas
Porque os sambas mais lindos
Já foram escritos
Queria que fosse um samba
Que explicasse um pouco de onde viemos
E assim seria mais simples
Saber onde vamos
Os brasileiros saíram da selva
Os mexicanos vieram dos índios
Mas, nós, os argentinos
Chegamos nos barcos
E é Litto Nebbia, considerado um dos fundadores do rock argentino e que fez sucesso com a sua banda Los Gatos, que vai acabar com essa falsa polêmica. Seria o caso de o presidente da Argentina completar a letra da música em suas próximas citações. Assim, o “mal-estar” se transformaria de todo em encantamento e erudição.
Queria que fosse um samba
Que fale de nós
E esta terra que amamos
É mistura de todos (os povos).
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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