Desde bem criança achei que livros fossem objetos interessantes. Não tive dúvidas de que não davam em árvores nem achei que caíam do céu. De alguma maneira, o que eu ainda não percebia bem é que eles eram feitos por pessoas e chegavam às livrarias ou às bibliotecas. Naquela época eu diferenciava pouco essas duas coisas. Eu também sabia que os textos escritos em cadernos, a lápis ou a caneta, não chegavam a ser livros, por mais que eu desejasse que fossem. E quando tentava imaginar uma fábrica de exemplares, ela não se parecia em nada com as fábricas de chocolate dos filmes ou com uma montadora de carros. Essa curiosidade ou preocupação costuravam entre os meus pensamentos um desejo: o de aprender a fazer livros, onde quer que isso acontecesse. Eu, sem herança, sem grandes especialidades, sem poderes mágicos.
Máquinas
Uma vez, já adolescente, pedi emprestada ao meu pai uma máquina de escrever. Ela fazia letras de forma, diferentes da minha instável caligrafia, o que talvez – apenas talvez – fosse suficiente para transformar meus versos num livro de poesia. Batuquei todos os meus poemas de fundo de caderno, durante semanas, em folhas brancas de papel ofício. Fiz barulho na madrugada, perturbei o sono dos irmãos, bati, bati, usei error ex, diagramei, de alguma maneira, aquelas estrofes com jeito de tentativa.
Terminado o trabalho de datilografar tudo, ainda assim não me convenci de que tinha um livro. Tinha um pré-livro, um material em letra batida, já distante do meu gesto manuscrito, mas ainda pouco parecido com um volume em offsete. Dei-me conta então de que seria necessário reunir aquelas folhas soltas, costurá-las, literalmente, juntá-las de um dos lados, a fim de que compusessem um volume único, uma sequência demarcada, um fio de papel ou um trilho que tocasse um leitor pelas mãos e o conduzisse até o último verso.
Desci a pé a rua íngreme da casa dos meus pais, abraçada a uma pasta polionda azul ou amarela, talvez vermelha, com os elásticos provavelmente frouxos, em direção a uma papelaria que unisse meus poemas por uma espiral de plástico. Minutos e minutos de paciência assistindo ao trabalho mecânico do atendente, que reunia minhas folhas em conjuntos mais finos, enfiava na máquina de furar, pressionava uma alavanca, furava, juntava esse pequeno bloco aos demais, até que o material estivesse recomposto novamente. Na sequência, o conjunto de folhas empilhadas era alinhavado por uma espiral preta, arrematada com uma dobra do arame ao final. Enquanto isso, meu coração aos pulos, ansioso, sentinela em cada gesto do encadernador, com medo de que ele errasse a mão, pusesse folhas de cabeça para baixo ou tirasse os poemas da ordem, o que afinal, seria, no máximo, reordenar o que estava quase apenas justaposto.
Subi a rua abraçada ao volume, fora da pasta, apaixonada por um objeto que, embora já fosse, sim, uma intenção, ainda não era um livro. Li e reli aquele conjunto de textos centenas de vezes, sem mostrá-lo a ninguém. E dali? Qual era ainda o caminho para o livro?
Devassada
O moço espiralador havia sido aventura e tanto. Fora, sem saber, a primeira pessoa a ter contato direto com meu conjunto de poemas reunidos, mais ou menos organizados. Um sentimento ambíguo me tomava enquanto ele trabalhava: a vergonha de que ele lesse meus versos, ainda que despistadamente; e a tristeza grande por seu desinteresse, que sequer queria saber o que estava encadernando. De todo modo, a apatia dele me deixava mais tranquila.
Desse episódio até o lançamento de meu primeiro livro, que de resto levava poucos daqueles poemas antes espiralados, passaram-se alguns anos, talvez quatro ou cinco. O que entendi, depois disso, foi que além da forma que um livro precisava ganhar ou de um certo aspecto arquitetônico a que chamamos livro, era preciso aprender a compor uma obra noutros pontos. Não era suficiente juntar poemas, empilhá-los e costurá-los de um lado. Era preciso fazer deles um conjunto pulsante, animado, encorajador. E isso só aprendi muito mais tempo depois.
Edição
Eu, sem herança, sem grandes especialidades, sem poderes mágicos, sou cria do meu tempo. Moça finissecular, vi a tecnologia digital chegar e me aproximar de uma possibilidade de duas facetas: projetar um livro em sua intencionalidade e dar a ele uma arquitetura explicitada. Neste século, há editores em variadas combinações, das quais duas são mais extremas: os que empilham arbitrariamente textos e dão a eles uma forma a que chamamos livro; e os que sabem compor conjuntos, mas que não ganham arquiteturas de livro. Meu desejo, como autora, é encontrar dos ou das que andam pelo meio dessa trilha. E esta é outra possibilidade manifesta em meu tempo: mulheres têm feito isso muito bem.
Há alguns anos, com coragem desabrida, telefono a uma editora ou a um editor e digo: tenho cá um livro de poemas – foi o que fiz com a Relicário, por exemplo. Sei que ele é, já, um livro, num aspecto composicional interno, uma liga projetada, um esforço de construção que pode ser percebido por leitores e leitoras atentos, às vezes mesmo por desatentos. De lá, editor ou editora comandam outro processo: o de dar forma ao que já é impulso, não é uma massa amorfa ainda por modelar. Não comigo.
Sigo abraçada aos livros-semente, descendo ou subindo ladeiras, contando com a parceria de editoras e editores que me ajudam a chegar àquela satisfação que eu queria sentir, desde menina: isto, sim, é meu livro. A rigor, um livro nosso.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
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COLUNA MARCA PÁGINA
SEMENTE, POESIA, LIVRO
por Ana Elisa Ribeiro
Desde bem criança achei que livros fossem objetos interessantes. Não tive dúvidas de que não davam em árvores nem achei que caíam do céu. De alguma maneira, o que eu ainda não percebia bem é que eles eram feitos por pessoas e chegavam às livrarias ou às bibliotecas. Naquela época eu diferenciava pouco essas duas coisas. Eu também sabia que os textos escritos em cadernos, a lápis ou a caneta, não chegavam a ser livros, por mais que eu desejasse que fossem. E quando tentava imaginar uma fábrica de exemplares, ela não se parecia em nada com as fábricas de chocolate dos filmes ou com uma montadora de carros. Essa curiosidade ou preocupação costuravam entre os meus pensamentos um desejo: o de aprender a fazer livros, onde quer que isso acontecesse. Eu, sem herança, sem grandes especialidades, sem poderes mágicos.
Máquinas
Uma vez, já adolescente, pedi emprestada ao meu pai uma máquina de escrever. Ela fazia letras de forma, diferentes da minha instável caligrafia, o que talvez – apenas talvez – fosse suficiente para transformar meus versos num livro de poesia. Batuquei todos os meus poemas de fundo de caderno, durante semanas, em folhas brancas de papel ofício. Fiz barulho na madrugada, perturbei o sono dos irmãos, bati, bati, usei error ex, diagramei, de alguma maneira, aquelas estrofes com jeito de tentativa.
Terminado o trabalho de datilografar tudo, ainda assim não me convenci de que tinha um livro. Tinha um pré-livro, um material em letra batida, já distante do meu gesto manuscrito, mas ainda pouco parecido com um volume em offsete. Dei-me conta então de que seria necessário reunir aquelas folhas soltas, costurá-las, literalmente, juntá-las de um dos lados, a fim de que compusessem um volume único, uma sequência demarcada, um fio de papel ou um trilho que tocasse um leitor pelas mãos e o conduzisse até o último verso.
Desci a pé a rua íngreme da casa dos meus pais, abraçada a uma pasta polionda azul ou amarela, talvez vermelha, com os elásticos provavelmente frouxos, em direção a uma papelaria que unisse meus poemas por uma espiral de plástico. Minutos e minutos de paciência assistindo ao trabalho mecânico do atendente, que reunia minhas folhas em conjuntos mais finos, enfiava na máquina de furar, pressionava uma alavanca, furava, juntava esse pequeno bloco aos demais, até que o material estivesse recomposto novamente. Na sequência, o conjunto de folhas empilhadas era alinhavado por uma espiral preta, arrematada com uma dobra do arame ao final. Enquanto isso, meu coração aos pulos, ansioso, sentinela em cada gesto do encadernador, com medo de que ele errasse a mão, pusesse folhas de cabeça para baixo ou tirasse os poemas da ordem, o que afinal, seria, no máximo, reordenar o que estava quase apenas justaposto.
Subi a rua abraçada ao volume, fora da pasta, apaixonada por um objeto que, embora já fosse, sim, uma intenção, ainda não era um livro. Li e reli aquele conjunto de textos centenas de vezes, sem mostrá-lo a ninguém. E dali? Qual era ainda o caminho para o livro?
Devassada
O moço espiralador havia sido aventura e tanto. Fora, sem saber, a primeira pessoa a ter contato direto com meu conjunto de poemas reunidos, mais ou menos organizados. Um sentimento ambíguo me tomava enquanto ele trabalhava: a vergonha de que ele lesse meus versos, ainda que despistadamente; e a tristeza grande por seu desinteresse, que sequer queria saber o que estava encadernando. De todo modo, a apatia dele me deixava mais tranquila.
Desse episódio até o lançamento de meu primeiro livro, que de resto levava poucos daqueles poemas antes espiralados, passaram-se alguns anos, talvez quatro ou cinco. O que entendi, depois disso, foi que além da forma que um livro precisava ganhar ou de um certo aspecto arquitetônico a que chamamos livro, era preciso aprender a compor uma obra noutros pontos. Não era suficiente juntar poemas, empilhá-los e costurá-los de um lado. Era preciso fazer deles um conjunto pulsante, animado, encorajador. E isso só aprendi muito mais tempo depois.
Edição
Eu, sem herança, sem grandes especialidades, sem poderes mágicos, sou cria do meu tempo. Moça finissecular, vi a tecnologia digital chegar e me aproximar de uma possibilidade de duas facetas: projetar um livro em sua intencionalidade e dar a ele uma arquitetura explicitada. Neste século, há editores em variadas combinações, das quais duas são mais extremas: os que empilham arbitrariamente textos e dão a eles uma forma a que chamamos livro; e os que sabem compor conjuntos, mas que não ganham arquiteturas de livro. Meu desejo, como autora, é encontrar dos ou das que andam pelo meio dessa trilha. E esta é outra possibilidade manifesta em meu tempo: mulheres têm feito isso muito bem.
Há alguns anos, com coragem desabrida, telefono a uma editora ou a um editor e digo: tenho cá um livro de poemas – foi o que fiz com a Relicário, por exemplo. Sei que ele é, já, um livro, num aspecto composicional interno, uma liga projetada, um esforço de construção que pode ser percebido por leitores e leitoras atentos, às vezes mesmo por desatentos. De lá, editor ou editora comandam outro processo: o de dar forma ao que já é impulso, não é uma massa amorfa ainda por modelar. Não comigo.
Sigo abraçada aos livros-semente, descendo ou subindo ladeiras, contando com a parceria de editoras e editores que me ajudam a chegar àquela satisfação que eu queria sentir, desde menina: isto, sim, é meu livro. A rigor, um livro nosso.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
2 respostas para “COLUNA MARCA PÁGINA”
Tania Aires
Muito lindo o texto!!!
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