Em entrevista para o Blog da Relicário, o escritor e crítico Julián Fuks comenta características da narrativa da chilena Diamela Eltit, que ele descreve como “uma das mais inventivas e inquietas autoras da literatura mundial”.Dia 7 de julho (quarta-feira), às 19h, haverá o lançamento de Forças especiais, de Diamela Eltit. Na ocasião, Diamela conversa ao vivo no YouTube da Livraria Megafauna e Facebook da Relicário com o escritor Julián Fuks, responsável pela tradução de sua obra. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Por Michelle Strzoda
O arrebatamento de Julián pela literatura de Diamela se deu na universidade, logo que teve contato com a obra da escritora. De imediato, iniciou uma empreitada para traduzir a autora por aqui. Após quase uma década de recusas em editoras brasileiras, eis a vez de Diamela ter não só um, mas dois livros publicados pela Relicário. Em 2017, a autora esteve na Flip como convidada da programação oficial, onde lançou o romance Jamais o fogo nunca. Agora é a vez de Forças especiais, ambos em tradução de Julián Fuks.
“Que assunto poderia ser mais urgente e pertinente no Brasil de hoje do que o impacto atroz do autoritarismo, das milícias, da violência policial em seu racismo e sua seletividade? Tudo isso está em Diamela, de maneira cristalina e chocante”, afirma Fuks. Os jogos semânticos e sintáticos, o olhar impiedoso, a (des)construção de laços, nuances, ambiguidades, multiplicidades estão presentes não só no processo de tradução – um grande desafio para Julián –, que ressalta o compromisso da editora com o projeto gráfico-editorial dos livros como um todo.
Qual o lugar da literatura de Diamela Eltit hoje?
Julián Fuks: Já há algumas décadas Diamela Eltit é uma das mais inventivas e inquietas autoras da literatura mundial. Desde os anos 1980, tem desempenhado um papel fundamental de renovação do romance, transgredindo a lógica mercadológica da produção de livros sempre iguais, conhecidos, domesticados. Diamela produz obras muito singulares, únicas, irrepetíveis, e consegue renovar a sua própria forma ao longo dos anos. Muito mais que fazer parte da história de uma literatura libertária, ela a desempenha hoje, com originalidade impressionante.
Como e quando você descobriu o trabalho da autora?
JF: Como os livros de Diamela tendem a ser difíceis, não cumprindo os anseios mais banais dos leitores, o lugar que sua obra tem ocupado com mais constância é a academia. Foi na universidade que eu a conheci, há quinze anos, num curso sobre o romance contemporâneo latino-americano. Desde então acompanho seu trabalho com máxima atenção, aprendendo muito com suas múltiplas formas de desafiar os leitores e os limites da própria literatura.
Quando a autora foi publicada no Brasil pela primeira vez, em 2017, ocasião em que foi convidada da programação oficial da Flip, houve manifestação de jornalistas e críticos em relação ao fato de Diamela ter demorado tanto a ser editada no Brasil. Ao mesmo tempo, talvez os temas com os quais a autora trabalha em suas narrativas não sejam tão chocantes, se compararmos ao momento turbulento pelo qual passamos hoje, com semelhanças até distópicas. Qual sua opinião a respeito?
JF: A autora demorou para alcançar uma boa receptividade do mercado editorial brasileiro. Batalhei por uma década para que ela fosse publicada no Brasil, apresentei sua obra a diversas editoras e recebia as mesmas respostas: a autora é impressionante, tem imensa qualidade, mas é difícil, pouco vendável. Por sorte, ou melhor, pela existência de editoras como a Relicário, a situação agora é outra e é possível trazer aos leitores essa autora poderosa. Diamela é uma escritora sempre disposta a observar o presente em suas contradições e opressões. Muito do que somos hoje está presente em sua obra. Que assunto poderia ser mais urgente e pertinente no Brasil de hoje do que o impacto atroz do autoritarismo, das milícias, da violência policial em seu racismo e sua seletividade? Tudo isso está em Diamela, de maneira cristalina e chocante.
No prólogo de Jamais o fogo nunca, você diz que, na literatura de Diamela Eltit, há “um discurso que parte do interior do corpo e em nada o excede, e que no entanto nos atinge a todos implacavelmente. Literatura de intervenção nos corpos e nos tempos, literatura a perturbar a ordem dos silêncios”. É possível fazer essa mesma analogia em relação a Forças especiais?
JF: Sim, há novidade neste romance mais recente, mas há também permanência, coerência do olhar. A obra de Diamela tende a ser muito marcada pela presença dos corpos, sensorialmente, e pela denúncia do exercício do poder voltado contra os corpos. Isso está em ambos os romances que traduzi para a Relicário. Em Jamais o fogo nunca, o foco recai sobre o indivíduo dilacerado, sobre um histórico de dores e de traumas que repercutem o trauma coletivo de um povo. Em Forças especiais, a atenção está centrada justamente nesse povo, num coletivo periférico, no modo como a força policial dilacera toda uma população, incide sobre cada um de seus corpos e os destrói, os abate, os cala, querendo relegá-los à inexistência.
Se analisarmos o campo semântico de Jamais o fogo nunca e Forças especiais, termos como ditadura, fascismo, delírio, desalento, demolição, doença, brutalidade, repressão, desgraça se contrapõem com dignidade, democracia, lucidez, energia, resistência, desejo, entre outros. Esse jogo semântico já começa nos títulos dos romances, em que possíveis acepções são criadas. É uma característica da narrativa de Diamela?
JF: Sim, a construção de campos semânticos muito coesos, que se reafirmam continuamente e vão se reiterando ao longo das obras, é uma das marcas mais evidentes da escrita de Diamela e um dos seus pontos fortes. A linguagem nunca é arbitrária, não se perde em voos prescindíveis – é exata e necessária. Tudo se subordina a um olhar rigoroso e complexo, atento aos detalhes. Nesses títulos algo disso se manifesta, de fato. “Forças especiais” se refere de imediato à presença aterrorizante das polícias na comunidade pobre, a polícia escalada para subjugar a população, e não para protegê-la. Mas há já nessa expressão a alusão a esse outro campo mais positivo, a afirmação da necessidade de forças especiais exercidas pela própria população subjugada, pessoas que, ainda nas piores circunstâncias, são capazes de preservar sua lucidez, seu desejo, sua resistência.
Em Forças especiais, o cenário é um conjunto de blocos habitacionais sitiado pelo aparato policial e a protagonista é uma jovem de um bairro periférico que se prostitui numa lan house, em meio a uma vida de desgraças familiares. As cenas poderiam se passar em muitas cidades latino-americanas hoje. Para você, onde reside a força dessa história?
JF: É um livro duro, que nos desespera, que nos cala até os ossos. Nada escapa ao olhar impiedoso de Diamela: nossa sociedade ali se revela em toda sua atrocidade. A cada página nos vemos afetados pelo abuso policial, pelo abuso sexual, pela situação de miséria humana, pela dissolução dos laços familiares, pela destruição paulatina e sistemática de uma comunidade. Há força nessa dureza, não se pode negar: diante dela ninguém, nenhuma ingenuidade, está a salvo, já não podemos retornar às mensagens fáceis e apaziguadoras que nos acalmam. E, no entanto, não é total a vitória da negatividade. Ao fim, talvez se afirme a resistência, a ânsia de sobrevivência, e a possibilidade de constituição de laços de afeto e solidariedade, mesmo nas condições mais improváveis.
Esses dois romances de Diamela Eltit são curtos, porém bastante inquietantes. O projeto gráfico vai ao encontro dessa vocação anárquica na linguagem, que sugere aos leitores montarem seu próprio quebra-cabeça tipográfico com as peças e pistas que a autora sugere. Além de tradutor, você também é escritor. Como percebe essa engenhosidade da prosa de Diamela na trama, nos personagens e nos temas?
JF: Traduzir Diamela é um grande desafio. As palavras nunca estão fora de lugar, ocupam posições cambiáveis, sempre retornam modificadas, acrescidas de nuances, exploradas em todas as suas ambiguidades, em sua multiplicidade inacabável. Eis a sua máxima riqueza, que exige da tradução uma concentração plena e um constante exercício criativo, na busca por soluções que resguardem os sutis efeitos originais. Isso que talvez se descreva como engenhosidade vale para as palavras, mas também para a sintaxe tão atípica e para a composição dos personagens e da trama, tudo comprometido com a complexidade. Um compromisso desses a própria editora assume na configuração dos livros, e o leitor fica convidado a assumir também. Que tenha uma certeza: será uma experiência única e, possivelmente, inesquecível.
Julián Fuks (São Paulo, 1981) é escritor, crítico literário e tradutor. Autor de Procura do romance, Histórias de literatura e cegueira e A ocupação, romances finalistas dos principais prêmios literários brasileiros, e de A resistência, vencedor dos prêmios Jabuti, Oceanos, Saramago e Anna Seghers. Seus livros já foram traduzidos para dez línguas e publicados em diversos países. Mestre em literatura hispano-americana e doutor em teoria literária pela USP, é o tradutor responsável pelos romances Jamais o fogo nunca e Forças especiais, de Diamela Eltit, publicados pela Relicário.
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COLUNA LATINIDADES
‘EM DIAMELA, PALAVRAS NUNCA ESTÃO FORA DE LUGAR’
Convidado Julián Fuks
Em entrevista para o Blog da Relicário, o escritor e crítico Julián Fuks comenta características da narrativa da chilena Diamela Eltit, que ele descreve como “uma das mais inventivas e inquietas autoras da literatura mundial”. Dia 7 de julho (quarta-feira), às 19h, haverá o lançamento de Forças especiais, de Diamela Eltit. Na ocasião, Diamela conversa ao vivo no YouTube da Livraria Megafauna e Facebook da Relicário com o escritor Julián Fuks, responsável pela tradução de sua obra. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Por Michelle Strzoda
O arrebatamento de Julián pela literatura de Diamela se deu na universidade, logo que teve contato com a obra da escritora. De imediato, iniciou uma empreitada para traduzir a autora por aqui. Após quase uma década de recusas em editoras brasileiras, eis a vez de Diamela ter não só um, mas dois livros publicados pela Relicário. Em 2017, a autora esteve na Flip como convidada da programação oficial, onde lançou o romance Jamais o fogo nunca. Agora é a vez de Forças especiais, ambos em tradução de Julián Fuks.
“Que assunto poderia ser mais urgente e pertinente no Brasil de hoje do que o impacto atroz do autoritarismo, das milícias, da violência policial em seu racismo e sua seletividade? Tudo isso está em Diamela, de maneira cristalina e chocante”, afirma Fuks. Os jogos semânticos e sintáticos, o olhar impiedoso, a (des)construção de laços, nuances, ambiguidades, multiplicidades estão presentes não só no processo de tradução – um grande desafio para Julián –, que ressalta o compromisso da editora com o projeto gráfico-editorial dos livros como um todo.
Qual o lugar da literatura de Diamela Eltit hoje?
Julián Fuks: Já há algumas décadas Diamela Eltit é uma das mais inventivas e inquietas autoras da literatura mundial. Desde os anos 1980, tem desempenhado um papel fundamental de renovação do romance, transgredindo a lógica mercadológica da produção de livros sempre iguais, conhecidos, domesticados. Diamela produz obras muito singulares, únicas, irrepetíveis, e consegue renovar a sua própria forma ao longo dos anos. Muito mais que fazer parte da história de uma literatura libertária, ela a desempenha hoje, com originalidade impressionante.
Como e quando você descobriu o trabalho da autora?
JF: Como os livros de Diamela tendem a ser difíceis, não cumprindo os anseios mais banais dos leitores, o lugar que sua obra tem ocupado com mais constância é a academia. Foi na universidade que eu a conheci, há quinze anos, num curso sobre o romance contemporâneo latino-americano. Desde então acompanho seu trabalho com máxima atenção, aprendendo muito com suas múltiplas formas de desafiar os leitores e os limites da própria literatura.
Quando a autora foi publicada no Brasil pela primeira vez, em 2017, ocasião em que foi convidada da programação oficial da Flip, houve manifestação de jornalistas e críticos em relação ao fato de Diamela ter demorado tanto a ser editada no Brasil. Ao mesmo tempo, talvez os temas com os quais a autora trabalha em suas narrativas não sejam tão chocantes, se compararmos ao momento turbulento pelo qual passamos hoje, com semelhanças até distópicas. Qual sua opinião a respeito?
JF: A autora demorou para alcançar uma boa receptividade do mercado editorial brasileiro. Batalhei por uma década para que ela fosse publicada no Brasil, apresentei sua obra a diversas editoras e recebia as mesmas respostas: a autora é impressionante, tem imensa qualidade, mas é difícil, pouco vendável. Por sorte, ou melhor, pela existência de editoras como a Relicário, a situação agora é outra e é possível trazer aos leitores essa autora poderosa. Diamela é uma escritora sempre disposta a observar o presente em suas contradições e opressões. Muito do que somos hoje está presente em sua obra. Que assunto poderia ser mais urgente e pertinente no Brasil de hoje do que o impacto atroz do autoritarismo, das milícias, da violência policial em seu racismo e sua seletividade? Tudo isso está em Diamela, de maneira cristalina e chocante.
No prólogo de Jamais o fogo nunca, você diz que, na literatura de Diamela Eltit, há “um discurso que parte do interior do corpo e em nada o excede, e que no entanto nos atinge a todos implacavelmente. Literatura de intervenção nos corpos e nos tempos, literatura a perturbar a ordem dos silêncios”. É possível fazer essa mesma analogia em relação a Forças especiais?
JF: Sim, há novidade neste romance mais recente, mas há também permanência, coerência do olhar. A obra de Diamela tende a ser muito marcada pela presença dos corpos, sensorialmente, e pela denúncia do exercício do poder voltado contra os corpos. Isso está em ambos os romances que traduzi para a Relicário. Em Jamais o fogo nunca, o foco recai sobre o indivíduo dilacerado, sobre um histórico de dores e de traumas que repercutem o trauma coletivo de um povo. Em Forças especiais, a atenção está centrada justamente nesse povo, num coletivo periférico, no modo como a força policial dilacera toda uma população, incide sobre cada um de seus corpos e os destrói, os abate, os cala, querendo relegá-los à inexistência.
Se analisarmos o campo semântico de Jamais o fogo nunca e Forças especiais, termos como ditadura, fascismo, delírio, desalento, demolição, doença, brutalidade, repressão, desgraça se contrapõem com dignidade, democracia, lucidez, energia, resistência, desejo, entre outros. Esse jogo semântico já começa nos títulos dos romances, em que possíveis acepções são criadas. É uma característica da narrativa de Diamela?
JF: Sim, a construção de campos semânticos muito coesos, que se reafirmam continuamente e vão se reiterando ao longo das obras, é uma das marcas mais evidentes da escrita de Diamela e um dos seus pontos fortes. A linguagem nunca é arbitrária, não se perde em voos prescindíveis – é exata e necessária. Tudo se subordina a um olhar rigoroso e complexo, atento aos detalhes. Nesses títulos algo disso se manifesta, de fato. “Forças especiais” se refere de imediato à presença aterrorizante das polícias na comunidade pobre, a polícia escalada para subjugar a população, e não para protegê-la. Mas há já nessa expressão a alusão a esse outro campo mais positivo, a afirmação da necessidade de forças especiais exercidas pela própria população subjugada, pessoas que, ainda nas piores circunstâncias, são capazes de preservar sua lucidez, seu desejo, sua resistência.
Em Forças especiais, o cenário é um conjunto de blocos habitacionais sitiado pelo aparato policial e a protagonista é uma jovem de um bairro periférico que se prostitui numa lan house, em meio a uma vida de desgraças familiares. As cenas poderiam se passar em muitas cidades latino-americanas hoje. Para você, onde reside a força dessa história?
JF: É um livro duro, que nos desespera, que nos cala até os ossos. Nada escapa ao olhar impiedoso de Diamela: nossa sociedade ali se revela em toda sua atrocidade. A cada página nos vemos afetados pelo abuso policial, pelo abuso sexual, pela situação de miséria humana, pela dissolução dos laços familiares, pela destruição paulatina e sistemática de uma comunidade. Há força nessa dureza, não se pode negar: diante dela ninguém, nenhuma ingenuidade, está a salvo, já não podemos retornar às mensagens fáceis e apaziguadoras que nos acalmam. E, no entanto, não é total a vitória da negatividade. Ao fim, talvez se afirme a resistência, a ânsia de sobrevivência, e a possibilidade de constituição de laços de afeto e solidariedade, mesmo nas condições mais improváveis.
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