Em entrevista para o Blog da Relicário, a educadora e ensaísta Claudete Daflon disseca as dores de um país inflamado. Ao propor, sob a perspectiva decolonial, tornar a dor matéria-prima e linguagem, Claudete dialoga com um elenco de autoras, poetas, escritores, pensadores e experiências artísticas propondo uma costura autoral como prática de cuidado.
No 24 de fevereiro, às 19h, haverá uma live de lançamento do livro de Claudete Daflon. Parte da série de eventos Relicário na Travessa, a live Meu País é um Corpo que Dói terá a participação das convidadas Cláudia Lage, escritora, e Vera Lúcia Follain, pesquisadora e professora. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Por Michelle Strzoda
“A urgência em lidar com a minha dor pessoal e social me levou a escrever.” O que pode a dor destilada na escrita? O que pode um organismo – seja um corpo seja um país – machucado?
Claudete Daflon: Quando assisti ao filme libanês O insulto [dirigido por Ziad Doueiri], fiquei mobilizada pelo modo como nessa narrativa a dor e a humilhação geraram apenas mais dor e humilhação. O sofrimento mais intenso não necessariamente gera uma oposição ao que nos faz sofrer, pode nos tornar reprodutores cruéis da dor. Escrever, como ato criativo, é uma forma de transformar a dor. Se não a transformamos em sua própria negação, ela se intensifica e se desdobra. Como Rosana Paulino, quando diz que imagens podem curar, creio que a escrita pode fazê-lo, desde que enfrente o desafio de sair de si, de fazer da dor matéria-prima e linguagem. Num país machucado, criar é um ato de cura.
De que forma enxerga a descolonização do pensamento latino-americano em manifestações artísticas?
CD: A descolonização do pensamento passa por uma ética do cuidado, na medida em que se busca confrontar uma epistemologia comprometida com a segregação, o extrativismo e a destruição da vida. O cuidado é uma prática, importa dizer. Desestabilizar o caráter único e universal que se atribuiu hegemonicamente ao pensamento ocidental moderno exige mais que um processo de desconstrução crítica. A investigação estética e o investimento em materialidades e procedimentos possibilitam a construção de realidades implicadas em cosmovisões diversas, em contraposição a pontos de vista únicos. Mas isso não se dá ao largo da linguagem e do fazer, se dá exatamente aí. Precisamos de processos efetivos de construção e, nesse sentido, artistas têm um papel central. A superação de dicotomias entre fazer e pensar, corpo e mente, emoção e razão deixa de ser uma especulação para ser uma possibilidade efetiva. Obras de artistas contemporâneos na América Latina, seja Jaider Esbell – que propôs uma expressão visual para a cosmologia macuxi –, seja Rosana Paulino – com suturas, impressões e composições –, permitem tecer novas narrativas. Essas experiências tornam impraticáveis abordagens que incompatibilizem natureza e cultura, produção intelectual e trabalho artesanal.
Das várias referências culturais, literárias e artísticas que você cita e trabalha ao longo do livro, qual te impacta mais profundamente? Pode compartilhar alguma experiência?
CD: Fazer esse destaque é realmente muito difícil, porque minha sensibilidade é o tempo todo construída pelas experiências múltiplas que vivo. São muitas vozes e muitos sentires ao mesmo tempo. Isso me levou a compreender que não sei estar em outro lugar que não o da interseção, dos cruzamentos, das encruzilhadas… Posso, porém, dizer que a emoção que sinto está diretamente envolvida na minha reflexão. Por isso, tendo a responder, sobretudo, à linguagem como uma existência que aciona minha percepção sensorial e que se configura também como pensamento.
A dor biopolítica, a dor social, a dor da segregação, a dor física. Como a linguagem e a criação artística problematizam e redimensionam as humanidades atravessadas por acepções de natureza e pelo corpo feminino?
CD: A esse respeito, acredito ser interessante lembrar a contribuição das ecofeministas quando pensam criticamente a identificação da mulher à natureza. Penso que a criação artística muitas vezes enfrenta, quando se trata de pensar as mulheres na sociedade contemporânea ou mesmo na tradição, esse tipo de identificação. Esse, porém, não é apenas um tema, mas também uma questão própria à atividade de criação e à própria linguagem. Isso é evidente em trabalhos performáticos: neles, o corpo diz e é, revelando a implausibilidade da divisão natureza/cultura. A experiência pregressa de uma escritora como a chilena Diamela Eltit com a performance tem implicações na sua literatura. Não à toa em seu trabalho a linguagem performa e o corpo das personagens é uma realização linguística, inclusive em sua dor. Essa ligação corpo-linguagem está vinculada ao lugar dado ao fazer, uma vez que o trabalho manual, que costuma ser inferiorizado e associado ao feminino, passa a ser visto como um saber necessário que não se dissocia de operações mentais. Penso ainda em um trabalho como o de Ximena Garrido-Lecca, exibido na mais recente Bienal de Arte de São Paulo. Na instalação da artista peruana, pés de feijão são corpos vegetais e uma língua. Espécimes vivos não são corpos a serem representados, são eles mesmos linguagem. Essas experiências evidenciam os limites da divisão entre natureza e cultura, o que problematiza não só a distinção hierárquica entre seres vivos, como também a redução da natureza e dos corpos à condição de objetos úteis.
Ao citar Diamela Eltit, em um trecho lê-se: “O país, no romance, é um grande hospital, os enfermos são corpos de mulheres indígenas, adoecidos e mutilados. Os médicos, em sua autoridade profissional, desempenham ação de vida e morte, infligem dor e desespero”. Podemos transpor essa análise do romance de Diamela para o “Brasil pandêmico”?
CD: Acho quase inevitável não fazer essa associação, eu mesma fiz enquanto escrevia. Quando Diamela construiu sua narrativa há anos não se referia à pandemia, mas a uma realidade em que, em países como o Chile, ao poder se associa uma ordem médica. Não podemos esquecer como, desde o século XIX, a eugenia tem orientado práticas sanitárias e de saúde pública, legitimando ações inaceitáveis contra grupos humanos. Esse estado de coisa, que evoca a necropolítica de Achile Mbembe, tornou-se também evidente durante a pandemia em países latino-americanos. As desigualdades manifestas na assistência à população têm andado desde 2020 lado a lado com a desinformação deliberada, a falta de investimento na rede pública, a sujeição de parte da população a procedimentos e tratamentos experimentais com a anuência do Estado e todo um conjunto de medidas que levaram a crises como a que assistimos em Manaus.
Seja um corpo, seja um país – ambos encarados como territórios e repositórios – marcas do tempo, cicatrizes, desgaste, esgotamento podem ser implacáveis. Seu livro propõe uma ressignificação de ambos a partir de suturas dessas rusgas a partir de que perspectiva?
CD: De uma perspectiva que não seja única. A feição ensaística que busquei emprestar a meu texto tem muito a ver com isso. Há uma costura que aprendo de procedimentos artísticos, particularmente das obras com que proponho conversar. Essa costura ou sutura encerra a violência do esgarçamento que lhe é subjacente, mas ao mesmo tempo esse tipo de procedimento leva a propostas como a do cinema documental de Patricio Guzmán ou do pensamento-poesia de Édouard Glissant: compreender a realidade como um processo relacional dinâmico e complexo. Há muita poesia nisso. Diante de uma realidade muitas vezes precária, lacunar, esfacelada e de uma memória obliterada, o exercício da imaginação e a construção poética emergem como formas de conhecimento necessárias. Nesse sentido, vejo uma conversa entre a poesia de Edimilson de Almeida Pereira e um cinema chileno que se volta para os desaparecidos: indígenas, trabalhadores, militantes políticos. Para que eu possa circular em busca dessa dicção relacional no olhar sobre o mundo, preciso ser capaz de continuamente me movimentar por perspectivas. Por outro lado, existe uma motivação teórica e política que me fez escrever um livro durante um período tão difícil, apostar em uma formulação decolonial, querer transformar a dor em força de criação e vida.
Claudete Daflon nasceu na Baixada Fluminense (RJ) e construiu sua história profissional como educadora. Professora de Literatura Brasileira da UFF, cursou Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura pela Uerj, além de doutorado em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Com uma perspectiva artístico-cultural e interdisciplinar, realiza estudos e trabalhos sobre temas como literatura e ciência, natureza, viagem, formação intelectual, educação e interdisciplinaridade.
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
‘NUM PAÍS MACHUCADO, CRIAR É UM ATO DE CURA’
Convidada Claudete Daflon
Em entrevista para o Blog da Relicário, a educadora e ensaísta Claudete Daflon disseca as dores de um país inflamado. Ao propor, sob a perspectiva decolonial, tornar a dor matéria-prima e linguagem, Claudete dialoga com um elenco de autoras, poetas, escritores, pensadores e experiências artísticas propondo uma costura autoral como prática de cuidado.
No 24 de fevereiro, às 19h, haverá uma live de lançamento do livro de Claudete Daflon. Parte da série de eventos Relicário na Travessa, a live Meu País é um Corpo que Dói terá a participação das convidadas Cláudia Lage, escritora, e Vera Lúcia Follain, pesquisadora e professora. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Por Michelle Strzoda
“A urgência em lidar com a minha dor pessoal e social me levou a escrever.” O que pode a dor destilada na escrita? O que pode um organismo – seja um corpo seja um país – machucado?
Claudete Daflon: Quando assisti ao filme libanês O insulto [dirigido por Ziad Doueiri], fiquei mobilizada pelo modo como nessa narrativa a dor e a humilhação geraram apenas mais dor e humilhação. O sofrimento mais intenso não necessariamente gera uma oposição ao que nos faz sofrer, pode nos tornar reprodutores cruéis da dor. Escrever, como ato criativo, é uma forma de transformar a dor. Se não a transformamos em sua própria negação, ela se intensifica e se desdobra. Como Rosana Paulino, quando diz que imagens podem curar, creio que a escrita pode fazê-lo, desde que enfrente o desafio de sair de si, de fazer da dor matéria-prima e linguagem. Num país machucado, criar é um ato de cura.
De que forma enxerga a descolonização do pensamento latino-americano em manifestações artísticas?
CD: A descolonização do pensamento passa por uma ética do cuidado, na medida em que se busca confrontar uma epistemologia comprometida com a segregação, o extrativismo e a destruição da vida. O cuidado é uma prática, importa dizer. Desestabilizar o caráter único e universal que se atribuiu hegemonicamente ao pensamento ocidental moderno exige mais que um processo de desconstrução crítica. A investigação estética e o investimento em materialidades e procedimentos possibilitam a construção de realidades implicadas em cosmovisões diversas, em contraposição a pontos de vista únicos. Mas isso não se dá ao largo da linguagem e do fazer, se dá exatamente aí. Precisamos de processos efetivos de construção e, nesse sentido, artistas têm um papel central. A superação de dicotomias entre fazer e pensar, corpo e mente, emoção e razão deixa de ser uma especulação para ser uma possibilidade efetiva. Obras de artistas contemporâneos na América Latina, seja Jaider Esbell – que propôs uma expressão visual para a cosmologia macuxi –, seja Rosana Paulino – com suturas, impressões e composições –, permitem tecer novas narrativas. Essas experiências tornam impraticáveis abordagens que incompatibilizem natureza e cultura, produção intelectual e trabalho artesanal.
Das várias referências culturais, literárias e artísticas que você cita e trabalha ao longo do livro, qual te impacta mais profundamente? Pode compartilhar alguma experiência?
CD: Fazer esse destaque é realmente muito difícil, porque minha sensibilidade é o tempo todo construída pelas experiências múltiplas que vivo. São muitas vozes e muitos sentires ao mesmo tempo. Isso me levou a compreender que não sei estar em outro lugar que não o da interseção, dos cruzamentos, das encruzilhadas… Posso, porém, dizer que a emoção que sinto está diretamente envolvida na minha reflexão. Por isso, tendo a responder, sobretudo, à linguagem como uma existência que aciona minha percepção sensorial e que se configura também como pensamento.
A dor biopolítica, a dor social, a dor da segregação, a dor física. Como a linguagem e a criação artística problematizam e redimensionam as humanidades atravessadas por acepções de natureza e pelo corpo feminino?
CD: A esse respeito, acredito ser interessante lembrar a contribuição das ecofeministas quando pensam criticamente a identificação da mulher à natureza. Penso que a criação artística muitas vezes enfrenta, quando se trata de pensar as mulheres na sociedade contemporânea ou mesmo na tradição, esse tipo de identificação. Esse, porém, não é apenas um tema, mas também uma questão própria à atividade de criação e à própria linguagem. Isso é evidente em trabalhos performáticos: neles, o corpo diz e é, revelando a implausibilidade da divisão natureza/cultura. A experiência pregressa de uma escritora como a chilena Diamela Eltit com a performance tem implicações na sua literatura. Não à toa em seu trabalho a linguagem performa e o corpo das personagens é uma realização linguística, inclusive em sua dor. Essa ligação corpo-linguagem está vinculada ao lugar dado ao fazer, uma vez que o trabalho manual, que costuma ser inferiorizado e associado ao feminino, passa a ser visto como um saber necessário que não se dissocia de operações mentais. Penso ainda em um trabalho como o de Ximena Garrido-Lecca, exibido na mais recente Bienal de Arte de São Paulo. Na instalação da artista peruana, pés de feijão são corpos vegetais e uma língua. Espécimes vivos não são corpos a serem representados, são eles mesmos linguagem. Essas experiências evidenciam os limites da divisão entre natureza e cultura, o que problematiza não só a distinção hierárquica entre seres vivos, como também a redução da natureza e dos corpos à condição de objetos úteis.
Ao citar Diamela Eltit, em um trecho lê-se: “O país, no romance, é um grande hospital, os enfermos são corpos de mulheres indígenas, adoecidos e mutilados. Os médicos, em sua autoridade profissional, desempenham ação de vida e morte, infligem dor e desespero”. Podemos transpor essa análise do romance de Diamela para o “Brasil pandêmico”?
CD: Acho quase inevitável não fazer essa associação, eu mesma fiz enquanto escrevia. Quando Diamela construiu sua narrativa há anos não se referia à pandemia, mas a uma realidade em que, em países como o Chile, ao poder se associa uma ordem médica. Não podemos esquecer como, desde o século XIX, a eugenia tem orientado práticas sanitárias e de saúde pública, legitimando ações inaceitáveis contra grupos humanos. Esse estado de coisa, que evoca a necropolítica de Achile Mbembe, tornou-se também evidente durante a pandemia em países latino-americanos. As desigualdades manifestas na assistência à população têm andado desde 2020 lado a lado com a desinformação deliberada, a falta de investimento na rede pública, a sujeição de parte da população a procedimentos e tratamentos experimentais com a anuência do Estado e todo um conjunto de medidas que levaram a crises como a que assistimos em Manaus.
Seja um corpo, seja um país – ambos encarados como territórios e repositórios – marcas do tempo, cicatrizes, desgaste, esgotamento podem ser implacáveis. Seu livro propõe uma ressignificação de ambos a partir de suturas dessas rusgas a partir de que perspectiva?
CD: De uma perspectiva que não seja única. A feição ensaística que busquei emprestar a meu texto tem muito a ver com isso. Há uma costura que aprendo de procedimentos artísticos, particularmente das obras com que proponho conversar. Essa costura ou sutura encerra a violência do esgarçamento que lhe é subjacente, mas ao mesmo tempo esse tipo de procedimento leva a propostas como a do cinema documental de Patricio Guzmán ou do pensamento-poesia de Édouard Glissant: compreender a realidade como um processo relacional dinâmico e complexo. Há muita poesia nisso. Diante de uma realidade muitas vezes precária, lacunar, esfacelada e de uma memória obliterada, o exercício da imaginação e a construção poética emergem como formas de conhecimento necessárias. Nesse sentido, vejo uma conversa entre a poesia de Edimilson de Almeida Pereira e um cinema chileno que se volta para os desaparecidos: indígenas, trabalhadores, militantes políticos. Para que eu possa circular em busca dessa dicção relacional no olhar sobre o mundo, preciso ser capaz de continuamente me movimentar por perspectivas. Por outro lado, existe uma motivação teórica e política que me fez escrever um livro durante um período tão difícil, apostar em uma formulação decolonial, querer transformar a dor em força de criação e vida.
Claudete Daflon nasceu na Baixada Fluminense (RJ) e construiu sua história profissional como educadora. Professora de Literatura Brasileira da UFF, cursou Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura pela Uerj, além de doutorado em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Com uma perspectiva artístico-cultural e interdisciplinar, realiza estudos e trabalhos sobre temas como literatura e ciência, natureza, viagem, formação intelectual, educação e interdisciplinaridade.
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