‘A OBRA DE BENJAMIN NÃO CESSA DE EXPERIMENTAR NOVAS FORMAS DE APRESENTAÇÃO PARA O PENSAMENTO’
Entrevista com Patrícia Lavelle
Inovador e debruçado sobre aspectos poucos explorados da obra de um dos pensadores mais instigantes e debatidos em estudos contemporâneos, Walter Benjamin metacrítico: uma poética do pensamento, novo livro da professora e poeta Patrícia Lavelle, uma coedição da Relicário e da editora PUC-Rio, lança luz sobre a noção de infância em Benjamin, relacionada a alegorias e personagens femininas, e o lugar do feminino na literatura e filosofia benjaminiana.
Nascido em Berlim, o jovem Walter Benjamin peregrinou por universidades na Alemanha e na Suíça, onde realizou doutorado em filosofia durante a Primeira Guerra Mundial. Nos anos 1920, Benjamin teve estadias na Rússia, na Itália, além do período de exílio durante o regime nazista, que o levou a transitar entre Espanha, Dinamarca e, sobretudo, França. Não à toa a tônica sobre trânsitos, passagens, encruzilhadas, bem como reflexões em torno de linguagens, leituras, construções metafóricas são tão presentes em seus textos.
Nessa entrevista, Lavelle faz um recorte da poética do pensamento em Benjamin, bem como ressalta traços de sua biobibliografia, numa contribuição ímpar para o debate da filosofia, estética e estudos literários atuais sobre o filósofo alemão, que em 2022 completaria 130 anos.
Nesta quinta, 28 de abril, às 19h, haverá uma conversa on-line pelo lançamento do livro de Patrícia Lavelle. Parte da série de eventos Relicário na Travessa, a live Uma Poética do Pensamento terá a participação das convidadas Katia Muricy e Susana Kampff Lages, além de mediação do professor e filósofo Pedro Hussak. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Relicário: Em que momento você identifica o desenvolvimento de uma “metacrítica” no pensamento de Walter Benjamin?
Patrícia Lavelle: Em um curriculum vitae redigido aos 20 anos, em 1912, Benjamin afirmava não saber ainda se seus estudos o levariam à literatura ou à filosofia. Transitando entre esses dois interesses, sua formação universitária foi marcada pelo rigor sistemático do neokantismo – corrente filosófica dominante na universidade alemã dos anos 1910 – e pela emergência da fenomenologia, mas também pela militância no movimento de juventude e por intensas leituras e frequentações literárias. É nesse contexto de formação que situo a orientação metacrítica de seu pensamento. Penso aqui em “Sobre o programa da filosofia por vir”, texto programático escrito entre 1917 e 1918 no qual, a partir do criticismo kantiano, Benjamin se propõe a pensar um “conceito superior de experiência” capaz de abarcar “religião” e “história”. Tal projeto pressupunha a “metacrítica” da filosofia crítica de Kant proposta por seu contemporâneo e amigo Hamann, que já no século XVIII chamava a atenção para a questão da linguagem e para a materialidade linguística do próprio saber filosófico. Entretanto, durante uma estadia em Ibiza nos anos 1930, Benjamin ainda escreveu sobre a linguagem – seus textos que se inscrevem nessa perspectiva.
Relicário: Como esse projeto “metacrítico” se configura na produção ensaística de Benjamin?
Patrícia Lavelle: Os textos de Benjamin sobre a linguagem retomam temas já presentes em “Sobre a linguagem humana e sobre a linguagem em geral”, de 1916, que também citava o “metacrítico” Hamann. Na década de 1930, essa temática se desdobrou numa instigante reflexão sobre a faculdade de produzir “semelhanças não sensíveis”. Esses textos, que abordam a produção de semelhanças em práticas mágicas ou nas brincadeiras infantis, foram pouco discutidos e mal compreendidos pela recepção do autor. Mas aqui encontramos um instigante desenvolvimento do problema da semelhança metafórica, já apontado por Aristóteles e evocado também pelo próprio Kant, ao tematizar a apresentação simbólica das Ideias na Crítica da faculdade de julgar.
Incidindo sobre relações que podemos estabelecer entre objetos concretos e abstratos, e não sobre a percepção sensível que temos das coisas, tais “semelhanças não sensíveis” atuam nessas construções discursivas complexas que podemos chamar de metáforas. Embora o próprio Benjamin não use o termo, encontro afinidades entre sua reflexão sobre a faculdade mimética e teorias contemporâneas da metáfora, como a de Paul Ricoeur ou a de Hans Blumenberg. Desenvolvo essa proposição de leitura para a teoria das semelhanças de Benjamin no livro Walter Benjamin metacrítico: uma poética do pensamento, associando a posição metacrítica também à reflexão sobre o papel das construções metafóricas na escrita teórica.
Relicário: “A vida que aparece nessas memórias torna-se assim um conjunto descontínuo, não cronológico, de construções alegóricas no qual essas personagens femininas constituem figuras da completude da vida no presente. De certo modo, todas remetem à Mummerehlen, alegoria da experiência infantil de um presente pleno em que as dualidades se dissolvem no encantamento das semelhanças.”
Nessa passagem, como em outras do seu livro, percebemos que a noção de infância em Benjamin está relacionada a alegorias e personagens femininas. Na sua visão, qual o lugar do feminino na literatura e filosofia benjaminiana?
Patrícia Lavelle: Procurei destacar na obra de Benjamin todo um complexo metafórico que associa imagens femininas à própria faculdade mimética. Construções metafórico-conceituais que ligam representações do feminino à pura imaginação, entendida como uma esfera arcaica da experiência, relacionada à noção de infância e ao universo onírico. Essas representações ganham uma forma alegórica em Infância berlinense por volta de 1900, cristalizando-se em torno da Mummerehlen e de outras figuras femininas.
No capítulo sobre a Mummerehlen, Benjamin opera poeticamente com a historicidade do material linguístico, projetando sentidos neste nome inventado a partir da palavra alemã “Muhme”; isto é, avó, tia, uma parenta do lado materno, ou simplesmente uma mulher idosa e solitária. Em “Sobre a Mummerehlen, quero te contar”, proponho uma leitura detalhada deste trecho, chamando a atenção para a materialidade de seu tecido textual em suas múltiplas camadas de significação.
Esse tipo de construção alegórica também aparece em “Após a conclusão”, prosa curta da série das “imagens de pensamento”, que comento em “Eros, crítica e criação”. Nela, Benjamin apresenta sua compreensão da criação artística numa imagem erótica que distingue os elementos “feminino” e “masculino” do processo de formação artística. Esta alegoria mobiliza representações sobre as relações entre os sexos que constituem o material sociocultural, historicamente determinado, a partir do qual o neokantiano H. Rickert (professor de Benjamin em 1913) elaborou conceitualmente o seu sistema. Proponho, assim, a reconstrução desta e de outras fontes que alimentam imagens femininas de Benjamin, mas também problematizo tais representações. Que imagens da mulher e de seu papel social se cristalizam nesses usos metafóricos do feminino? Como clichês de época sobre a feminilidade se projetam nestas alegorias? Tais questões indicam passagens possíveis entre uma poética do pensamento e a esfera ética e política da reflexão sobre as relações de gênero.
Relicário: Que formas e personagens habitam o entrelugar da filosofia e da poesia em Benjamin?
Patrícia Lavelle: Além de ensaios críticos e especulativos, Benjamin escreveu aforismos, relatos autobiográficos, narrativas oníricas, cartas e até mesmo contos. Sua obra não cessa de experimentar novas formas de apresentação para o pensamento, tensiona as fronteiras entre os gêneros textuais e se inscreve num entrelugar entre filosofia e poesia. Numa carta que comento no livro, Benjamin associa a própria noção de crítica a esse espaço de trânsito entre invenção literária e sistematização filosófica.
O autor também coloca em cena figuras que funcionam como verdadeiros personagens teóricos – é o caso do contador de histórias. Benjamin procura situar historicamente e circunscrever conceitualmente tal figura no ensaio crítico sobre o contista russo Leskov, mas o contador de histórias aparece também em seus contos como personagem de ficção. Nesses textos ficcionais, ele contracena com um narrador personagem em primeira pessoa, abrindo narrativas dentro de outras. Daí a necessidade de se distinguir a figura do contador de histórias do narrador entendido como instância interna à estruturação das narrativas.
Patrícia Lavelle é poeta e professora do Departamento de Letras da PUC-Rio. Doutora em Filosofia na École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde também lecionou, foi professora convidada na École Normale Supérieure de Paris em 2019. Publicou, traduziu e organizou livros de ensaios no Brasil e na França, entre os quais sua tese de doutorado, Religion et histoire: sur le concept d’experience chez Walter Benjamin (Cerf, 2008). Realizou pesquisas pós-doutorais no Walter Benjamin-Archiv de Berlim, cujos resultados foram apresentados em ensaios incluídos no aparato crítico de duas edições francesas da Infância berlinense por volta de 1900 (L’Herne, 2012, e Hermann, 2014). Para a série francesa “Cahiers de l’Herne”, organizou o volume Walter Benjamin, que reúne textos inéditos do autor e de especialistas (L’Herne, 2013). Publicou O contador de histórias e outros textos (Hedra, 2018), os poemas de Bye bye Babel (7Letras, 2018, menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2016), a plaquete Migalhas metacríticas (7Letras, 2017) e co-organizou ONervo do poema. Antologia para Orides Fontela (Relicário, 2018).
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
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Entrevista com Patrícia Lavelle
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Nascido em Berlim, o jovem Walter Benjamin peregrinou por universidades na Alemanha e na Suíça, onde realizou doutorado em filosofia durante a Primeira Guerra Mundial. Nos anos 1920, Benjamin teve estadias na Rússia, na Itália, além do período de exílio durante o regime nazista, que o levou a transitar entre Espanha, Dinamarca e, sobretudo, França. Não à toa a tônica sobre trânsitos, passagens, encruzilhadas, bem como reflexões em torno de linguagens, leituras, construções metafóricas são tão presentes em seus textos.
Nessa entrevista, Lavelle faz um recorte da poética do pensamento em Benjamin, bem como ressalta traços de sua biobibliografia, numa contribuição ímpar para o debate da filosofia, estética e estudos literários atuais sobre o filósofo alemão, que em 2022 completaria 130 anos.
Nesta quinta, 28 de abril, às 19h, haverá uma conversa on-line pelo lançamento do livro de Patrícia Lavelle. Parte da série de eventos Relicário na Travessa, a live Uma Poética do Pensamento terá a participação das convidadas Katia Muricy e Susana Kampff Lages, além de mediação do professor e filósofo Pedro Hussak. O evento é gratuito, basta acessar este link.
Relicário: Em que momento você identifica o desenvolvimento de uma “metacrítica” no pensamento de Walter Benjamin?
Patrícia Lavelle: Em um curriculum vitae redigido aos 20 anos, em 1912, Benjamin afirmava não saber ainda se seus estudos o levariam à literatura ou à filosofia. Transitando entre esses dois interesses, sua formação universitária foi marcada pelo rigor sistemático do neokantismo – corrente filosófica dominante na universidade alemã dos anos 1910 – e pela emergência da fenomenologia, mas também pela militância no movimento de juventude e por intensas leituras e frequentações literárias. É nesse contexto de formação que situo a orientação metacrítica de seu pensamento. Penso aqui em “Sobre o programa da filosofia por vir”, texto programático escrito entre 1917 e 1918 no qual, a partir do criticismo kantiano, Benjamin se propõe a pensar um “conceito superior de experiência” capaz de abarcar “religião” e “história”. Tal projeto pressupunha a “metacrítica” da filosofia crítica de Kant proposta por seu contemporâneo e amigo Hamann, que já no século XVIII chamava a atenção para a questão da linguagem e para a materialidade linguística do próprio saber filosófico. Entretanto, durante uma estadia em Ibiza nos anos 1930, Benjamin ainda escreveu sobre a linguagem – seus textos que se inscrevem nessa perspectiva.
Relicário: Como esse projeto “metacrítico” se configura na produção ensaística de Benjamin?
Patrícia Lavelle: Os textos de Benjamin sobre a linguagem retomam temas já presentes em “Sobre a linguagem humana e sobre a linguagem em geral”, de 1916, que também citava o “metacrítico” Hamann. Na década de 1930, essa temática se desdobrou numa instigante reflexão sobre a faculdade de produzir “semelhanças não sensíveis”. Esses textos, que abordam a produção de semelhanças em práticas mágicas ou nas brincadeiras infantis, foram pouco discutidos e mal compreendidos pela recepção do autor. Mas aqui encontramos um instigante desenvolvimento do problema da semelhança metafórica, já apontado por Aristóteles e evocado também pelo próprio Kant, ao tematizar a apresentação simbólica das Ideias na Crítica da faculdade de julgar.
Incidindo sobre relações que podemos estabelecer entre objetos concretos e abstratos, e não sobre a percepção sensível que temos das coisas, tais “semelhanças não sensíveis” atuam nessas construções discursivas complexas que podemos chamar de metáforas. Embora o próprio Benjamin não use o termo, encontro afinidades entre sua reflexão sobre a faculdade mimética e teorias contemporâneas da metáfora, como a de Paul Ricoeur ou a de Hans Blumenberg. Desenvolvo essa proposição de leitura para a teoria das semelhanças de Benjamin no livro Walter Benjamin metacrítico: uma poética do pensamento, associando a posição metacrítica também à reflexão sobre o papel das construções metafóricas na escrita teórica.
Relicário: “A vida que aparece nessas memórias torna-se assim um conjunto descontínuo, não cronológico, de construções alegóricas no qual essas personagens femininas constituem figuras da completude da vida no presente. De certo modo, todas remetem à Mummerehlen, alegoria da experiência infantil de um presente pleno em que as dualidades se dissolvem no encantamento das semelhanças.”
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Esse tipo de construção alegórica também aparece em “Após a conclusão”, prosa curta da série das “imagens de pensamento”, que comento em “Eros, crítica e criação”. Nela, Benjamin apresenta sua compreensão da criação artística numa imagem erótica que distingue os elementos “feminino” e “masculino” do processo de formação artística. Esta alegoria mobiliza representações sobre as relações entre os sexos que constituem o material sociocultural, historicamente determinado, a partir do qual o neokantiano H. Rickert (professor de Benjamin em 1913) elaborou conceitualmente o seu sistema. Proponho, assim, a reconstrução desta e de outras fontes que alimentam imagens femininas de Benjamin, mas também problematizo tais representações. Que imagens da mulher e de seu papel social se cristalizam nesses usos metafóricos do feminino? Como clichês de época sobre a feminilidade se projetam nestas alegorias? Tais questões indicam passagens possíveis entre uma poética do pensamento e a esfera ética e política da reflexão sobre as relações de gênero.
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Patrícia Lavelle: Além de ensaios críticos e especulativos, Benjamin escreveu aforismos, relatos autobiográficos, narrativas oníricas, cartas e até mesmo contos. Sua obra não cessa de experimentar novas formas de apresentação para o pensamento, tensiona as fronteiras entre os gêneros textuais e se inscreve num entrelugar entre filosofia e poesia. Numa carta que comento no livro, Benjamin associa a própria noção de crítica a esse espaço de trânsito entre invenção literária e sistematização filosófica.
O autor também coloca em cena figuras que funcionam como verdadeiros personagens teóricos – é o caso do contador de histórias. Benjamin procura situar historicamente e circunscrever conceitualmente tal figura no ensaio crítico sobre o contista russo Leskov, mas o contador de histórias aparece também em seus contos como personagem de ficção. Nesses textos ficcionais, ele contracena com um narrador personagem em primeira pessoa, abrindo narrativas dentro de outras. Daí a necessidade de se distinguir a figura do contador de histórias do narrador entendido como instância interna à estruturação das narrativas.
Patrícia Lavelle é poeta e professora do Departamento de Letras da PUC-Rio. Doutora em Filosofia na École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde também lecionou, foi professora convidada na École Normale Supérieure de Paris em 2019. Publicou, traduziu e organizou livros de ensaios no Brasil e na França, entre os quais sua tese de doutorado, Religion et histoire: sur le concept d’experience chez Walter Benjamin (Cerf, 2008). Realizou pesquisas pós-doutorais no Walter Benjamin-Archiv de Berlim, cujos resultados foram apresentados em ensaios incluídos no aparato crítico de duas edições francesas da Infância berlinense por volta de 1900 (L’Herne, 2012, e Hermann, 2014). Para a série francesa “Cahiers de l’Herne”, organizou o volume Walter Benjamin, que reúne textos inéditos do autor e de especialistas (L’Herne, 2013). Publicou O contador de histórias e outros textos (Hedra, 2018), os poemas de Bye bye Babel (7Letras, 2018, menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2016), a plaquete Migalhas metacríticas (7Letras, 2017) e co-organizou O Nervo do poema. Antologia para Orides Fontela (Relicário, 2018).
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