Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário:
Rel. Caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados. 2. Caixa ou baú onde se guardam objetos de grande valor afetivo. 3. Bolsinha com relíquias que alguns fiéis trazem no pescoço em demonstração de devoção. 4. Coisa preciosa, de grande preço e valor.
Na oscilação entre o plano religioso (definições 1 e 3) e o secular (2 e 4), salta uma pergunta: é um santo graal o que buscamos nos livros, ou um objeto que interessa apenas a nós mesmos, quando muito a um pequeno grupo?
Abrir um livro é sempre uma forma de buscar algo precioso. Mas o “valor” nunca é fixo, ainda mais no plano da economia afetiva. Quando compramos um objeto, em geral sabemos o que esperar dele. Já um livro é uma mercadoria-surpresa, pequena aposta que fazemos na gigantesca feira das letras. “Este aqui! Vamos ver o que traz…” A mercadoria-surpresa será logo depositada na estante, que é uma espécie de cofre a céu aberto. E lá ficará, para ser lida e relida. Ou talvez a estadia entre os outros livros se prolongue indefinidamente, sem qualquer visita, como um relicário que fosse abandonado.
Menina de apenas oito anos de idade, a Relicário tem um catálogo invejável. Fiquei me perguntando como poderia homenageá-la no seu aniversário e cheguei à conclusão de que valia a pena falar de um livro especial, cujo valor parece se confirmar no seu uso. Ah, acho que era isso que eu estava tentando dizer: o livro só se torna o que é quando se faz valor de uso, não de troca.
Escolhi Jamais o fogo nunca, da chilena Diamela Eltit, e não o fiz por acaso. Em primeiro lugar, ele revela um lado importante do continente-Relicário: sua fronteira ampla e inteligente com a literatura latino-americana de língua espanhola. Em segundo lugar, gosto muito de Diamela, pessoalmente e como autora. Sinto também que minha própria história de leituras se cruza, por linhas indiretas, com o gosto de Maíra Nassif pelas literaturas hermanas.
Conheci Diamela há mais de uma década, quando estivemos juntos no júri do Premio FIL de Literatura, da Feira do Livro de Guadalajara. O ambiente era austero, um tanto opressivo em meio à solenidade tão típica de certas elites mexicanas. Mas logo formamos um pequeno núcleo de resistência com as mulheres do júri, o que deu a nossas deliberações um caráter mais solto, respeitando o fluxo dos afetos e das impressões. Trocamos a pompa e a circunstância pelo diálogo.
Escolhemos premiar, naquele ano, Margo Glantz, que depois viria a entrar na coleção Nos.Otras junto a Sylvia Molloy, Carola Saavedra e Lina Meruane. O círculo se alarga tão pronto lembro que a Relicário me foi apresentada por outro editor querido: Tiago Ferro, em cuja E-galáxia editamos, com Ricardo Lísias, a série Peixe-elétrico Ensaios, para a qual traduzi Diamela Eltit, num livro que foi prefaciado e co-organizado por meu colega venezuelano Javier Guerrero. Círculo de amizades e diálogo que se completa quando recordo que a própria Diamela recebeu o Premio FIL este ano, como se um último ponto fosse dado nesse largo tecido afetivo.
Mas falo de um livro único, marcado pelo manuseio, com uma história que não pode ser reproduzida. Testemunho de mais um círculo de amizades e diálogo, trata-se de um exemplar de Jamais o fogo nunca que foi lido e relido aqui em casa. São tantas as marcas e os post-its que fica difícil imaginar como terá sido o percurso de leitura de Andréa de Castro Melloni, minha colega e companheira que foi convidada por Javier Guerrero a ler um trecho do romance em público, da última vez que Diamela nos visitou em Princeton. O efeito estava dado: a língua original cedeu à versão de Julián Fuks, e a edição brasileira soou na sala em Princeton.
Gosto das fotos que uma estudante tirou, em parte porque são precárias, tomadas à distância e sem luz adequada. Inadvertidamente, elas lembram como pode ser difícil “reproduzir” um momento único.
Os exemplares de Jamais o fogo nunca são múltiplos, mas um deles viajou do Brasil aos Estados Unidos e pousou na nossa estante, começando ali uma história que o enlaçaria àqueles círculos da memória que nos unem a partir de um livro na sua singularidade: Diamela, Andréa, Javier, Maíra, Tiago, eu…
O romance é uma história da derrota da militância clandestina, mas é também uma interpelação dos limites de seus sonhos generosos e não raro violentos, incapazes de compreender os corpos e o desejo difuso ou compulsivo que os toma. Com a narradora por vezes mirando a parede nua colada à sua cama, mergulhamos na “célula” da resistência política para rastrear a miséria que, engolida a seco, sequer permite sentir o amargo das vidas entregues a uma “causa” superior. Trata-se de uma releitura do fracasso de um desejo coletivo, sem nenhum ressentimento, mas ainda assim avassaladora.
Andréa escolheu, para a leitura em Princeton, uma passagem do romance em que um aborto conduz ao desamparo, explicitando a lógica que transforma os corpos em máquinas:
A “dissonância vital” — como a nomeou Ana Cecilia Olmos na orelha da edição brasileira — teima em ser vista, resistindo na forma do corpo do bebê “agonizante, ansioso e agonizante, macilento e agonizante, amado e agonizante”.
A agonia dispara o alarme do absurdo daquela prisão voluntária. No entanto, para evitar detonar a morte em cascata das demais “células”, o casal deve permanecer calado, distante do hospital ou da funerária. Mas o que fazer com o corpo que estremece?
Aguda, a pergunta atravessa toda a ficção de Diamela Eltit. Aguda, ela ressoou para nós, em Princeton, a partir de uma constelação que envolveu pessoas e corpos determinados interagindo sob a luz do auditório, embora ali estivéssemos num ambiente acolhedor, sob a marca do espanto crítico e da amizade intelectual. Seja como for, naquela tarde brilhou em Princeton um belo exemplar, novo e já surrado pelo uso, de Jamais o fogo nunca.
Não deixa de ser irônico que, naquele momento, nos movêssemos e pensássemos em torno de um livro publicado por uma editora chamada Relicário. Para encerrar esta homenagem em círculos, regresso às definições iniciais: bolsinha com relíquias, coisa preciosa, valor afetivo, objetos que foram tocados por outrem.
Assim o livro, assim a sua história. Única. Marcada, ao fim e ao cabo — e como não poderia deixar de ser —, pelo carinho e pelo agradecimento.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
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COLUNA ASA DA PALAVRA
RELICÁRIO EM CÍRCULOS
por Pedro Meira Monteiro
Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário:
Na oscilação entre o plano religioso (definições 1 e 3) e o secular (2 e 4), salta uma pergunta: é um santo graal o que buscamos nos livros, ou um objeto que interessa apenas a nós mesmos, quando muito a um pequeno grupo?
Abrir um livro é sempre uma forma de buscar algo precioso. Mas o “valor” nunca é fixo, ainda mais no plano da economia afetiva. Quando compramos um objeto, em geral sabemos o que esperar dele. Já um livro é uma mercadoria-surpresa, pequena aposta que fazemos na gigantesca feira das letras. “Este aqui! Vamos ver o que traz…” A mercadoria-surpresa será logo depositada na estante, que é uma espécie de cofre a céu aberto. E lá ficará, para ser lida e relida. Ou talvez a estadia entre os outros livros se prolongue indefinidamente, sem qualquer visita, como um relicário que fosse abandonado.
Menina de apenas oito anos de idade, a Relicário tem um catálogo invejável. Fiquei me perguntando como poderia homenageá-la no seu aniversário e cheguei à conclusão de que valia a pena falar de um livro especial, cujo valor parece se confirmar no seu uso. Ah, acho que era isso que eu estava tentando dizer: o livro só se torna o que é quando se faz valor de uso, não de troca.
Escolhi Jamais o fogo nunca, da chilena Diamela Eltit, e não o fiz por acaso. Em primeiro lugar, ele revela um lado importante do continente-Relicário: sua fronteira ampla e inteligente com a literatura latino-americana de língua espanhola. Em segundo lugar, gosto muito de Diamela, pessoalmente e como autora. Sinto também que minha própria história de leituras se cruza, por linhas indiretas, com o gosto de Maíra Nassif pelas literaturas hermanas.
Conheci Diamela há mais de uma década, quando estivemos juntos no júri do Premio FIL de Literatura, da Feira do Livro de Guadalajara. O ambiente era austero, um tanto opressivo em meio à solenidade tão típica de certas elites mexicanas. Mas logo formamos um pequeno núcleo de resistência com as mulheres do júri, o que deu a nossas deliberações um caráter mais solto, respeitando o fluxo dos afetos e das impressões. Trocamos a pompa e a circunstância pelo diálogo.
Escolhemos premiar, naquele ano, Margo Glantz, que depois viria a entrar na coleção Nos.Otras junto a Sylvia Molloy, Carola Saavedra e Lina Meruane. O círculo se alarga tão pronto lembro que a Relicário me foi apresentada por outro editor querido: Tiago Ferro, em cuja E-galáxia editamos, com Ricardo Lísias, a série Peixe-elétrico Ensaios, para a qual traduzi Diamela Eltit, num livro que foi prefaciado e co-organizado por meu colega venezuelano Javier Guerrero. Círculo de amizades e diálogo que se completa quando recordo que a própria Diamela recebeu o Premio FIL este ano, como se um último ponto fosse dado nesse largo tecido afetivo.
Mas falo de um livro único, marcado pelo manuseio, com uma história que não pode ser reproduzida. Testemunho de mais um círculo de amizades e diálogo, trata-se de um exemplar de Jamais o fogo nunca que foi lido e relido aqui em casa. São tantas as marcas e os post-its que fica difícil imaginar como terá sido o percurso de leitura de Andréa de Castro Melloni, minha colega e companheira que foi convidada por Javier Guerrero a ler um trecho do romance em público, da última vez que Diamela nos visitou em Princeton. O efeito estava dado: a língua original cedeu à versão de Julián Fuks, e a edição brasileira soou na sala em Princeton.
Gosto das fotos que uma estudante tirou, em parte porque são precárias, tomadas à distância e sem luz adequada. Inadvertidamente, elas lembram como pode ser difícil “reproduzir” um momento único.
Os exemplares de Jamais o fogo nunca são múltiplos, mas um deles viajou do Brasil aos Estados Unidos e pousou na nossa estante, começando ali uma história que o enlaçaria àqueles círculos da memória que nos unem a partir de um livro na sua singularidade: Diamela, Andréa, Javier, Maíra, Tiago, eu…
O romance é uma história da derrota da militância clandestina, mas é também uma interpelação dos limites de seus sonhos generosos e não raro violentos, incapazes de compreender os corpos e o desejo difuso ou compulsivo que os toma. Com a narradora por vezes mirando a parede nua colada à sua cama, mergulhamos na “célula” da resistência política para rastrear a miséria que, engolida a seco, sequer permite sentir o amargo das vidas entregues a uma “causa” superior. Trata-se de uma releitura do fracasso de um desejo coletivo, sem nenhum ressentimento, mas ainda assim avassaladora.
Andréa escolheu, para a leitura em Princeton, uma passagem do romance em que um aborto conduz ao desamparo, explicitando a lógica que transforma os corpos em máquinas:
A “dissonância vital” — como a nomeou Ana Cecilia Olmos na orelha da edição brasileira — teima em ser vista, resistindo na forma do corpo do bebê “agonizante, ansioso e agonizante, macilento e agonizante, amado e agonizante”.
A agonia dispara o alarme do absurdo daquela prisão voluntária. No entanto, para evitar detonar a morte em cascata das demais “células”, o casal deve permanecer calado, distante do hospital ou da funerária. Mas o que fazer com o corpo que estremece?
Aguda, a pergunta atravessa toda a ficção de Diamela Eltit. Aguda, ela ressoou para nós, em Princeton, a partir de uma constelação que envolveu pessoas e corpos determinados interagindo sob a luz do auditório, embora ali estivéssemos num ambiente acolhedor, sob a marca do espanto crítico e da amizade intelectual. Seja como for, naquela tarde brilhou em Princeton um belo exemplar, novo e já surrado pelo uso, de Jamais o fogo nunca.
Não deixa de ser irônico que, naquele momento, nos movêssemos e pensássemos em torno de um livro publicado por uma editora chamada Relicário. Para encerrar esta homenagem em círculos, regresso às definições iniciais: bolsinha com relíquias, coisa preciosa, valor afetivo, objetos que foram tocados por outrem.
Assim o livro, assim a sua história. Única. Marcada, ao fim e ao cabo — e como não poderia deixar de ser —, pelo carinho e pelo agradecimento.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
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