Uma notícia recente me chamou atenção: o ator Rodrigo Santoro irá interpretar o navegador português Fernão de Magalhães para uma série ficcional produzida pela Amazon Prime. A produção pretende estrear em 2022 para coincidir com os quinhentos anos do término da primeira viagem de circum-navegação do planeta. Logo me vieram à cabeça as crônicas de quando essa expedição passou pela Guanabara no ano de 1519 e também a escassez de filmes sobre o Rio de Janeiro quinhentista.
“Como era gostoso o meu francês”
Existem apenas duas tentativas de abordagem desse período, ainda assim de modo transversal e limitado. Clássico do Cinema Novo, “Como era gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1971. Apesar dos méritos em tentar reproduzir a indumentária e a língua tupi em algumas cenas, hoje já está um tanto quanto datado. O roteiro se inspira, sobretudo, nas crônicas do alemão Hans Staden, preso por tupinambás da baía de Angra do Reis em janeiro de 1554. O aclamado diretor e ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes por “O Pagador de Promessas” fez uma licença poética e trocou a nacionalidade do personagem principal transformando-o num francês. O que por si só já torna o filme inverossímil do ponto de vista histórico, assim como excessivamente centrado no personagem europeu, que, ao contrário de Hans Staden, no filme, acaba devorado pelos tupis.
“Hans Staden”
A segunda tentativa é mais recente, de 1999, também baseada nas crônicas do alemão. Filme do diretor paulista Luiz Alberto Pereira com ótima reprodução dos diálogos em tupi e caracterização dos personagens, “Hans Staden” merece ser visto. Pereira acerta no realismo da reprodução histórica do cativeiro do europeu entre os tupinambás, com boas cenas dos costumes indígenas. Embora eu considere o filme mais interessante do ponto de vista antropológico, mais uma vez, trata-se de uma história centrada no personagem europeu e que se passa distante dos acontecimentos da Guanabara na mesma época.
“Brasil Vermelho”
Superprodução internacional, inspirada em livro de mesmo nome do escritor francês Jean-Christophe Rufin, que veio a público em 2014. Obra baseada nos acontecimentos da França Antártica, a tentativa de colonização francesa da Baía de Guanabara em 1555, tanto o romance quanto o filme pecam no eurocentrismo, principalmente na idealização heroica do vice-almirante Nicolas Villegagnon, líder da expedição, a ponto de, ao final, o filme mostrar que Villegagnon perde a batalha pelo forte Coligny – na verdade ele volta à França antes. Em termos de realismo histórico e caracterização dos indígenas, o filme também é um fracasso. A única personagem nativa é uma mulher tupinambá que se relaciona com um francês, o que diz muito sobre a produção europeia.
“A Guanabara de Fernão de Magalhães”
Ainda faltam, portanto, produções que possam melhor representar os acontecimentos daqueles tempos iniciais da colonização “carioca”, das suas batalhas e heróis, que tão bem renderiam dezenas de filmes, séries e programas. Talvez Rodrigo Santoro e seu Fernão de Magalhães possam ajudar.
Uma série sobre aquela expedição bem que poderia render um capítulo inteiro dos intensos contatos e trocas feitas pela tripulação daquela expedição e os tupis da Guanabara. Assim que as caravelas entraram na baía em 1519, os tripulantes viram surgirem de todos os lados canoas, trazendo peixes, frutas, raízes, oferecendo hospitalidade. As trocas impressionaram os europeus pela fartura de alimentos que eram oferecidos pelos tupis em troca até de cartas de baralho. Também os indígenas se sentiam atraídos por objetos que nunca haviam visto. Principal cronista da expedição, o italiano Pigaffeta conta a história de uma bela tupi que sobe num dos barcos à procura de objetos, pega um prego e desaparece ao mergulhar e volta ao mar. A expedição trazia como um de seus pilotos o português João Lopes Carvalho, um dos primeiros europeus a terem morado na Guanabara quinhentista. Ele retornou dessa viagem com o objetivo expresso de resgatar um filho de uns 7 anos de idade que teve com uma indígena local e que fez questão de levar consigo para o restante daquela odisseia. Seriam dois bons personagens para os produtores de “Sem Limites”, título da série sobre Fernão de Magalhães. Os tupinambás cortaram pau-brasil e construíram uma cabana para convidar os estrangeiros a ficar mais tempo, mas a visita durou apenas quinze dias, para a tristeza de muitos.
Apesar de ser celebrado como o capitão da primeira circum-navegação terrestre, Fernão de Magalhães na verdade não completou o percurso. Ele morreu vítima de seu próprio ego, ainda no meio da viagem, ao tentar subjugar tribos filipinas da Ilha de Mactán. Foi massacrado ao tentar impor a submissão dos nativos à força. Lapu-lapu, líder que o enfrentou, é herói nacional das Filipinas, tem estátua por lá e já foi tema de inúmeros documentários e filmes naquele país. Veja só como estamos atrasados. Seria um personagem muito mais interessante para o Rodrigo Santoro.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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COLUNA PINDORAMA
TALVEZ RODRIGO SANTORO POSSA AJUDAR
por Rafael Freitas da Silva
Mapa Terra Brasilis, de Lopo Homem, 1515–1519
Uma notícia recente me chamou atenção: o ator Rodrigo Santoro irá interpretar o navegador português Fernão de Magalhães para uma série ficcional produzida pela Amazon Prime. A produção pretende estrear em 2022 para coincidir com os quinhentos anos do término da primeira viagem de circum-navegação do planeta. Logo me vieram à cabeça as crônicas de quando essa expedição passou pela Guanabara no ano de 1519 e também a escassez de filmes sobre o Rio de Janeiro quinhentista.
“Como era gostoso o meu francês”
Existem apenas duas tentativas de abordagem desse período, ainda assim de modo transversal e limitado. Clássico do Cinema Novo, “Como era gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1971. Apesar dos méritos em tentar reproduzir a indumentária e a língua tupi em algumas cenas, hoje já está um tanto quanto datado. O roteiro se inspira, sobretudo, nas crônicas do alemão Hans Staden, preso por tupinambás da baía de Angra do Reis em janeiro de 1554. O aclamado diretor e ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes por “O Pagador de Promessas” fez uma licença poética e trocou a nacionalidade do personagem principal transformando-o num francês. O que por si só já torna o filme inverossímil do ponto de vista histórico, assim como excessivamente centrado no personagem europeu, que, ao contrário de Hans Staden, no filme, acaba devorado pelos tupis.
“Hans Staden”
A segunda tentativa é mais recente, de 1999, também baseada nas crônicas do alemão. Filme do diretor paulista Luiz Alberto Pereira com ótima reprodução dos diálogos em tupi e caracterização dos personagens, “Hans Staden” merece ser visto. Pereira acerta no realismo da reprodução histórica do cativeiro do europeu entre os tupinambás, com boas cenas dos costumes indígenas. Embora eu considere o filme mais interessante do ponto de vista antropológico, mais uma vez, trata-se de uma história centrada no personagem europeu e que se passa distante dos acontecimentos da Guanabara na mesma época.
“Brasil Vermelho”
Superprodução internacional, inspirada em livro de mesmo nome do escritor francês Jean-Christophe Rufin, que veio a público em 2014. Obra baseada nos acontecimentos da França Antártica, a tentativa de colonização francesa da Baía de Guanabara em 1555, tanto o romance quanto o filme pecam no eurocentrismo, principalmente na idealização heroica do vice-almirante Nicolas Villegagnon, líder da expedição, a ponto de, ao final, o filme mostrar que Villegagnon perde a batalha pelo forte Coligny – na verdade ele volta à França antes. Em termos de realismo histórico e caracterização dos indígenas, o filme também é um fracasso. A única personagem nativa é uma mulher tupinambá que se relaciona com um francês, o que diz muito sobre a produção europeia.
“A Guanabara de Fernão de Magalhães”
Ainda faltam, portanto, produções que possam melhor representar os acontecimentos daqueles tempos iniciais da colonização “carioca”, das suas batalhas e heróis, que tão bem renderiam dezenas de filmes, séries e programas. Talvez Rodrigo Santoro e seu Fernão de Magalhães possam ajudar.
Uma série sobre aquela expedição bem que poderia render um capítulo inteiro dos intensos contatos e trocas feitas pela tripulação daquela expedição e os tupis da Guanabara. Assim que as caravelas entraram na baía em 1519, os tripulantes viram surgirem de todos os lados canoas, trazendo peixes, frutas, raízes, oferecendo hospitalidade. As trocas impressionaram os europeus pela fartura de alimentos que eram oferecidos pelos tupis em troca até de cartas de baralho. Também os indígenas se sentiam atraídos por objetos que nunca haviam visto. Principal cronista da expedição, o italiano Pigaffeta conta a história de uma bela tupi que sobe num dos barcos à procura de objetos, pega um prego e desaparece ao mergulhar e volta ao mar. A expedição trazia como um de seus pilotos o português João Lopes Carvalho, um dos primeiros europeus a terem morado na Guanabara quinhentista. Ele retornou dessa viagem com o objetivo expresso de resgatar um filho de uns 7 anos de idade que teve com uma indígena local e que fez questão de levar consigo para o restante daquela odisseia. Seriam dois bons personagens para os produtores de “Sem Limites”, título da série sobre Fernão de Magalhães. Os tupinambás cortaram pau-brasil e construíram uma cabana para convidar os estrangeiros a ficar mais tempo, mas a visita durou apenas quinze dias, para a tristeza de muitos.
Apesar de ser celebrado como o capitão da primeira circum-navegação terrestre, Fernão de Magalhães na verdade não completou o percurso. Ele morreu vítima de seu próprio ego, ainda no meio da viagem, ao tentar subjugar tribos filipinas da Ilha de Mactán. Foi massacrado ao tentar impor a submissão dos nativos à força. Lapu-lapu, líder que o enfrentou, é herói nacional das Filipinas, tem estátua por lá e já foi tema de inúmeros documentários e filmes naquele país. Veja só como estamos atrasados. Seria um personagem muito mais interessante para o Rodrigo Santoro.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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