Em nosso último encontro aqui na Pindorama, prometi que faria uma série de colunas como uma espécie de “guia do presente”, para se encontrar as sensações de um Rio antes do Rio perdido por aí. Gosto de fazer uma analogia desta experiência sensorial quando me deparo com uma abelha da terra carioca, a pretinha, chamada de abelha cachorro. Ela é linda, não pica e, se você oferecer a mão, pousa em você e passeia por onde se deixar. Um ser ancestral, se é que você me entende. Está por aqui desde sempre. Para os não experimentados é apenas mais uma incômoda mosca a escapar de safanões, mas, quando ela me visita, sinto uma sensação boa, como se o próprio eirámirî (abelha pequena) quisesse se comunicar. Tem dias que rezo para aparecer uma delas. Confesso que muitas vezes até a procuro, com um copo de mate na mão servindo de água açucarada. E fico na esperança que ela pouse em mim carregando um pouco do néctar das matas e dos encantados.
Os tupinambás adoravam seu mel, que tinha diversas utilidades. E conheciam não só ela, mas um sem-número de espécies de abelhas e seus derivados. Tomaram para si seus nomes, como o popularizado nome da grande batalha conquistadora de 1567. A mesma conexão me trazem também os gritos das maritacas da Tijuca e os macacos-pregos do Corcovado.
Não só os animais, mas também o relevo, os rios, as lagoas, a “baía como o mar”, as praias e as montanhas – tudo nos leva a um imenso Rio antes do Rio entre nós, que está aí para ser redescoberto.
Aldeia Karióca
A aldeia que deu nome à cidade quase não é lembrada, ainda que se possa identificar no Google Earth seu local. Desde sempre se ensina nas escolas para as crianças de São Sebastião que elas são “cariocas” e que esse nome vem de uma casa de pedra construída por um dos primeiros portugueses que chegaram ao território depois de 1500. Dizem até que foi um navegador, Martim Afonso de Sousa, que mandou construí-la em 1531. Outros sugerem que foi um tal Gonçalo Coelho em 1503 – ao que me parece, não se tem notícia dessa viagem.
A ladainha é a mesma desde que Visconde de Porto Seguro escreveu sua História Geral do Brasil a partir dos anos 1850. Dizia ele que essa tal casa de pedra, a primeira por essas bandas, foi chamada de “Carioca” pelos ignorantes locais. Certamente um tupi imaginário traduziria a palavra como a “casa do homem branco” e tudo estaria nos conformes. Era tão esquisita aquela pedraria que o projeto arquitetônico medieval acabou emprestando seu nome ao próprio rio que demarcava o terreno edificado, conjecturou.
Absurdos históricos como esses são reproduzidos ainda hoje em livros, documentários e sites de história. Outros preferem explicar o nome “carioca” com teorias etimológicas, descartando fontes primárias, que só posso delegar ao fruto de má pesquisa ou desconhecimento.
O rio Carioca
Foz do Rio Carioca.
Ele ainda pode ser visto em vários cantos da cidade, sobretudo na Floresta da Tijuca, no vale do Cosme Velho e Laranjeiras. Carioca não era o seu nome em 1500. Os rios e “águas” levavam o característico som de y do tupi antigo. Como em Piraí, Iguaçu, Sarapuí e tantos outros nomes que vêm dos rios deste Rio. O nome era da aldeia, conhecida dos colonizadores por marcar a guarda do rio de água potável.
Para achar essa aldeia Karióca é preciso percorrer o rio desde a sua foz, na Guanabara. Sinto enorme tristeza ao visitar o local, pouco sinalizado, apesar da beleza da paisagem. Escondido e poluído, o rio ainda corre em direção ao mar, por baixo de um deque entre uma churrascaria e a praia do Flamengo, cenário de fotos de formatura e casamentos, emolduradas pelo Pão de Açúcar e pela entrada da baía. Pouca gente sabe que ali corre o Carioca, que outrora tinha águas rejuvenescedoras, como no Guajupiá, que Estácio não teve o prazer de experimentar. Neste deque é possível sentir a presença da aldeia, olhar para os arredores de seus terrenos, hortas e locais de pesca. A visão que se tem desse lugar se assemelha à que os nativos tinham quando procuravam canoas e barcos na baía.
A foz principal permanece relativamente na mesma altura da baía em relação à época da aldeia. Tirando os aterros modernos, precisamos imaginar que a foz desse rio era como um estuário e tinha dois pontos principais de deságue. Um braço que corria para o mar bem próximo da atual estátua de José de Alencar entre o Flamengo e o Largo do Machado e outro que corria em direção à rua do Catete, antes chamada “Da Vala”, porque era rasa e terminava atrás do Outeiro da Glória. Por isso existia ali uma grande ilha do rio “Carioca”, cujo primeiros moradores portugueses logo se veriam em apuros com as enchentes quinhentistas.
A ilha da Carioca não era lugar de aldeia. Os tupinambás sabiam muito bem os azares de seus domínios. Assim, quando achamos o rio Carioca temos uma área que vai da Praça São Salvador, passando pelo Parque Guinle e Largo do Machado até as escarpas da Glória, como área de influência dessa ancestralidade. A aldeia, ou os lugares das aldeias que perfaziam o ajuntamento maior e principal da Karióca, estavam em área plana e mais alta, próxima a algum dos pontos desse estuário.
Eirámirî vive
A batalha de Uruçumirim, de 1567, na qual Estácio perdeu a vida por uma flecha certeira, tem como ponto principal a resistência no Outeiro da Glória. Lugar da paliçada fortificada com canhões franceses e muita artilharia indígena. Os lusos se arriscaram para escalar esse ponto. Posicionaram os muitos navios na margem e mandaram ver os balaços de canhão. Depauperaram por tempos as grossas madeiras dos tupis dos navios. Depois desceram cavalos e seus indígenas aliados. Os tamoios resistiram bravamente, muitos recuando para Paranapucu, na Ilha do Governador.
O Outeiro marca o local do massacre tupinambá e de normandos aculturados, que, segundo alguns cronistas, foram empalados. Local estratégico para a defesa das aldeias do ecossistema tupi quinhentista. Se o Outeiro da Glória defendia a aldeia e o povo que nela vivia, ela deveria estar atrás dessas defesas e perto do rio a um raio de mais ou menos 1 quilômetro em direção ao interior da terra, como outras medições de aldeias da Guanabara quinhentista constataram.
As igaçabas estão por ali, falta uma abelha pousar para se perceber. Dizem que a praça do Outeiro, de onde se vê a paliçada, hoje batizada com o nome de Luís de Camões, um dia irá se chamar Uruçumirim.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que se encontra na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
ADRIENNE RICH & ANNE SEXTON Presença e poesia Nascida em 16 de maio de 1929, Adrienne Cecile Rich foi uma poeta, ensaísta e ativista feminista americana. Recebeu diversos prêmios literários, como o National Book Award, e foi reconhecida como uma das autoras mais influentes da segunda metade do século XX – dando voz à luta …
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COLUNA PINDORAMA
GUIA TURÍSTICO DE ‘O RIO ANTES DO RIO’ (parte 2)
por Rafael Freitas da Silva
Em nosso último encontro aqui na Pindorama, prometi que faria uma série de colunas como uma espécie de “guia do presente”, para se encontrar as sensações de um Rio antes do Rio perdido por aí. Gosto de fazer uma analogia desta experiência sensorial quando me deparo com uma abelha da terra carioca, a pretinha, chamada de abelha cachorro. Ela é linda, não pica e, se você oferecer a mão, pousa em você e passeia por onde se deixar. Um ser ancestral, se é que você me entende. Está por aqui desde sempre. Para os não experimentados é apenas mais uma incômoda mosca a escapar de safanões, mas, quando ela me visita, sinto uma sensação boa, como se o próprio eirámirî (abelha pequena) quisesse se comunicar. Tem dias que rezo para aparecer uma delas. Confesso que muitas vezes até a procuro, com um copo de mate na mão servindo de água açucarada. E fico na esperança que ela pouse em mim carregando um pouco do néctar das matas e dos encantados.
Os tupinambás adoravam seu mel, que tinha diversas utilidades. E conheciam não só ela, mas um sem-número de espécies de abelhas e seus derivados. Tomaram para si seus nomes, como o popularizado nome da grande batalha conquistadora de 1567. A mesma conexão me trazem também os gritos das maritacas da Tijuca e os macacos-pregos do Corcovado.
Não só os animais, mas também o relevo, os rios, as lagoas, a “baía como o mar”, as praias e as montanhas – tudo nos leva a um imenso Rio antes do Rio entre nós, que está aí para ser redescoberto.
Aldeia Karióca
A aldeia que deu nome à cidade quase não é lembrada, ainda que se possa identificar no Google Earth seu local. Desde sempre se ensina nas escolas para as crianças de São Sebastião que elas são “cariocas” e que esse nome vem de uma casa de pedra construída por um dos primeiros portugueses que chegaram ao território depois de 1500. Dizem até que foi um navegador, Martim Afonso de Sousa, que mandou construí-la em 1531. Outros sugerem que foi um tal Gonçalo Coelho em 1503 – ao que me parece, não se tem notícia dessa viagem.
A ladainha é a mesma desde que Visconde de Porto Seguro escreveu sua História Geral do Brasil a partir dos anos 1850. Dizia ele que essa tal casa de pedra, a primeira por essas bandas, foi chamada de “Carioca” pelos ignorantes locais. Certamente um tupi imaginário traduziria a palavra como a “casa do homem branco” e tudo estaria nos conformes. Era tão esquisita aquela pedraria que o projeto arquitetônico medieval acabou emprestando seu nome ao próprio rio que demarcava o terreno edificado, conjecturou.
Absurdos históricos como esses são reproduzidos ainda hoje em livros, documentários e sites de história. Outros preferem explicar o nome “carioca” com teorias etimológicas, descartando fontes primárias, que só posso delegar ao fruto de má pesquisa ou desconhecimento.
O rio Carioca
Foz do Rio Carioca.
Ele ainda pode ser visto em vários cantos da cidade, sobretudo na Floresta da Tijuca, no vale do Cosme Velho e Laranjeiras. Carioca não era o seu nome em 1500. Os rios e “águas” levavam o característico som de y do tupi antigo. Como em Piraí, Iguaçu, Sarapuí e tantos outros nomes que vêm dos rios deste Rio. O nome era da aldeia, conhecida dos colonizadores por marcar a guarda do rio de água potável.
Para achar essa aldeia Karióca é preciso percorrer o rio desde a sua foz, na Guanabara. Sinto enorme tristeza ao visitar o local, pouco sinalizado, apesar da beleza da paisagem. Escondido e poluído, o rio ainda corre em direção ao mar, por baixo de um deque entre uma churrascaria e a praia do Flamengo, cenário de fotos de formatura e casamentos, emolduradas pelo Pão de Açúcar e pela entrada da baía. Pouca gente sabe que ali corre o Carioca, que outrora tinha águas rejuvenescedoras, como no Guajupiá, que Estácio não teve o prazer de experimentar. Neste deque é possível sentir a presença da aldeia, olhar para os arredores de seus terrenos, hortas e locais de pesca. A visão que se tem desse lugar se assemelha à que os nativos tinham quando procuravam canoas e barcos na baía.
A foz principal permanece relativamente na mesma altura da baía em relação à época da aldeia. Tirando os aterros modernos, precisamos imaginar que a foz desse rio era como um estuário e tinha dois pontos principais de deságue. Um braço que corria para o mar bem próximo da atual estátua de José de Alencar entre o Flamengo e o Largo do Machado e outro que corria em direção à rua do Catete, antes chamada “Da Vala”, porque era rasa e terminava atrás do Outeiro da Glória. Por isso existia ali uma grande ilha do rio “Carioca”, cujo primeiros moradores portugueses logo se veriam em apuros com as enchentes quinhentistas.
A ilha da Carioca não era lugar de aldeia. Os tupinambás sabiam muito bem os azares de seus domínios. Assim, quando achamos o rio Carioca temos uma área que vai da Praça São Salvador, passando pelo Parque Guinle e Largo do Machado até as escarpas da Glória, como área de influência dessa ancestralidade. A aldeia, ou os lugares das aldeias que perfaziam o ajuntamento maior e principal da Karióca, estavam em área plana e mais alta, próxima a algum dos pontos desse estuário.
Eirámirî vive
A batalha de Uruçumirim, de 1567, na qual Estácio perdeu a vida por uma flecha certeira, tem como ponto principal a resistência no Outeiro da Glória. Lugar da paliçada fortificada com canhões franceses e muita artilharia indígena. Os lusos se arriscaram para escalar esse ponto. Posicionaram os muitos navios na margem e mandaram ver os balaços de canhão. Depauperaram por tempos as grossas madeiras dos tupis dos navios. Depois desceram cavalos e seus indígenas aliados. Os tamoios resistiram bravamente, muitos recuando para Paranapucu, na Ilha do Governador.
O Outeiro marca o local do massacre tupinambá e de normandos aculturados, que, segundo alguns cronistas, foram empalados. Local estratégico para a defesa das aldeias do ecossistema tupi quinhentista. Se o Outeiro da Glória defendia a aldeia e o povo que nela vivia, ela deveria estar atrás dessas defesas e perto do rio a um raio de mais ou menos 1 quilômetro em direção ao interior da terra, como outras medições de aldeias da Guanabara quinhentista constataram.
As igaçabas estão por ali, falta uma abelha pousar para se perceber. Dizem que a praça do Outeiro, de onde se vê a paliçada, hoje batizada com o nome de Luís de Camões, um dia irá se chamar Uruçumirim.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que se encontra na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
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