Perde-se a conta de quantas vezes a palavra “gênio” aparece na biografia de Leonardo da Vinci publicada por Walter Isaacson em 2017. O historiador e autor best-seller afirma que Leonardo foi “o mais criativo gênio da história”. Ao longo das seiscentas páginas do livro, pairam alguns fascinantes enigmas sobre a autoria de determinadas obras e muitas sombras misteriosas sobre a arte, a vida íntima e a sociedade do artista. A pergunta que não vemos o suficiente, porém, nesse livro de resto tão minucioso, é: o que diabos estavam as mulheres fazendo naquela bela e fértil Renascença além de posar para retratos e morrer de complicações do parto aos quinze anos de idade? Por que não conhecemos o nome das pintoras e poetas renascentistas?
De Leonardo, passemos a uma artista do século XVIII, a veneziana Rosalba Carriera, representante do licencioso e ultraornamentado estilo rococó. Ela foi uma retratista imensamente popular (e bem paga) à sua época. Um de seus trabalhos mais famosos é um sofisticado retrato em pastel chamado Jovem dama com papagaio, que mostra uma moça branca de faces rosadas ricamente vestida e com um decote que lhe chega quase ao umbigo. Um papagaio pousado em sua mão esquerda ajuda a puxar o decote mais para o lado. A moça olha, altiva e segura, diretamente para nós.
Se Carriera se ateve aos materiais considerados apropriados às mulheres artistas de sua época (ela também pintava miniaturas em marfim), sua técnica lhe permitiu prosperar numa fatia do mercado europeu que despertava pouco interesse nos homens pintores de então. Ela foi eleita, aos 22 anos, para a mais prestigiosa academia de arte de seu tempo, a Accademia di San Luca, em Roma. Mais tarde, foi também recebida nas academias de Paris e Bolonha. Segundo a historiadora da arte Angela Oberer, Carriera – que nunca se casou – parece ter sido a primeira mulher artista de renome internacional a se arriscar a realizar trabalhos de cunho erótico.
Outra acadêmica, Allyson Healey, dedica um episódio de seu popular podcast Art History for All a Rosalba Carriera, e lança a pergunta: “Você talvez esteja pensando – se Carriera era tão popular e fazia tanto sucesso, como nunca ouvi falar dela?”. Com isso, remete-nos ao capital ensaio “Why There Have Been No Great Women Artists?” (“Por que nunca houve grandes artistas mulheres?”), de Linda Nochlin, publicado em 1971. Nesse texto, dois argumentos comuns são citados, na busca de uma resposta: um deles é o de que seria necessário exumar as mulheres soterradas pela história oficial da arte e alçá-las ao pedestal que lhes é de direito. O segundo argumento propõe que talvez haja um tipo diferente de “grandeza” quando se trata de arte feita por mulheres – um estilo feminino, distinto e reconhecível.
Porém, Nochlin conclui, a própria pergunta “por que nunca houve grandes artistas mulheres?” é, em si, problemática. Que critérios, para começo de conversa, determinam a “grandiosidade” de um(a) artista? “Grande”, “genial”, “mestre” – essas são qualificações formuladas, concedidas e solidificadas pela história oficial. Allyson Healey recorda:
A história da arte nunca esteve imune à misoginia, ao racismo e à homofobia que afetaram outras disciplinas e outros aspectos da vida moderna. Como Nochlin argumenta, a omissão das mulheres na narrativa da história da arte é um problema estrutural, um problema tanto da disciplina de história da arte quanto das estruturas de produção e ensino de arte que ela estuda. As mulheres não podiam ser “grandes”, não podiam operar no mesmo nível que os homens, porque era institucionalmente impossível para elas, dadas as estruturas sociais e artísticas nas quais eram obrigadas a trabalhar.
Recordemos que o ensaio de Linda Nochlin foi publicado há cinquenta anos, mas soa estranhamente atual. O grupo Guerrilla Girls continua batendo na mesma tecla: “Menos de 5% dos artistas na seção de Arte Moderna [do Metropolitan Museum, em Nova York] são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.
Poderíamos nos perguntar se não caberia, no âmbito da arte, da literatura e da vida, uma verdadeira mudança de foco. Não se trataria de alçar à ribalta quem foi excluído dentro dos critérios vigentes, mas de questionar os mesmos critérios – e, de resto, a estrutura que os originou e que eles sustentam mesmo quando fazem “concessões”. Do contrário, estaremos repetindo modelos e reiterando a sinédoque costumeira que toma a narrativa da parte pela história do todo.
Walter Isaacson narra com emoção o momento em que teve acesso privado ao magnífico Homem vitruviano, de Leonardo – obra raramente exibida, dada a sensibilidade dos materiais à luz. “Tive a estranha e íntima sensação de ver a mão do mestre trabalhando, mais de cinco séculos antes.” Lendo a biografia, compartilhamos dessa emoção. Mas se Isaacson, um respeitado historiador e professor universitário, afirma que o Homem vitruviano simboliza um ideal de existência humana, fruto de um momento em que “as mentes mortais” investigam “questões atemporais sobre quem somos e como nos situamos na grande ordem do universo”, ele não parece julgar necessário definir o sujeito desses verbos. Para Isaacson, dentro do círculo e do quadrado em que se inscreve, em toda sua absoluta perfeição estética, o Homem vitruviano, podemos ver “a essência de nós mesmos, nus na interseção do terreno e do mundano”.
Às mulheres restaria, talvez – como à Mona Lisa, ou como à sedutora Jovem dama com papagaio –, sorrir.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
A escrita como vício, conversa realizada em 23 de novembro de 2021, por ocasião do Circuito Marguerite Duras, teve entre os convidados/as a pesquisadora Isabela Bosi, que nos brindou com a leitura de um texto cheio de rigor e profundidade, o qual, a pedidos, reproduzimos aqui no Blog da Relicário, por ocasião da chegada de …
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COLUNA ALFAIATARIA
GÊNIOS
por Adriana Lisboa
Perde-se a conta de quantas vezes a palavra “gênio” aparece na biografia de Leonardo da Vinci publicada por Walter Isaacson em 2017. O historiador e autor best-seller afirma que Leonardo foi “o mais criativo gênio da história”. Ao longo das seiscentas páginas do livro, pairam alguns fascinantes enigmas sobre a autoria de determinadas obras e muitas sombras misteriosas sobre a arte, a vida íntima e a sociedade do artista. A pergunta que não vemos o suficiente, porém, nesse livro de resto tão minucioso, é: o que diabos estavam as mulheres fazendo naquela bela e fértil Renascença além de posar para retratos e morrer de complicações do parto aos quinze anos de idade? Por que não conhecemos o nome das pintoras e poetas renascentistas?
De Leonardo, passemos a uma artista do século XVIII, a veneziana Rosalba Carriera, representante do licencioso e ultraornamentado estilo rococó. Ela foi uma retratista imensamente popular (e bem paga) à sua época. Um de seus trabalhos mais famosos é um sofisticado retrato em pastel chamado Jovem dama com papagaio, que mostra uma moça branca de faces rosadas ricamente vestida e com um decote que lhe chega quase ao umbigo. Um papagaio pousado em sua mão esquerda ajuda a puxar o decote mais para o lado. A moça olha, altiva e segura, diretamente para nós.
Se Carriera se ateve aos materiais considerados apropriados às mulheres artistas de sua época (ela também pintava miniaturas em marfim), sua técnica lhe permitiu prosperar numa fatia do mercado europeu que despertava pouco interesse nos homens pintores de então. Ela foi eleita, aos 22 anos, para a mais prestigiosa academia de arte de seu tempo, a Accademia di San Luca, em Roma. Mais tarde, foi também recebida nas academias de Paris e Bolonha. Segundo a historiadora da arte Angela Oberer, Carriera – que nunca se casou – parece ter sido a primeira mulher artista de renome internacional a se arriscar a realizar trabalhos de cunho erótico.
Outra acadêmica, Allyson Healey, dedica um episódio de seu popular podcast Art History for All a Rosalba Carriera, e lança a pergunta: “Você talvez esteja pensando – se Carriera era tão popular e fazia tanto sucesso, como nunca ouvi falar dela?”. Com isso, remete-nos ao capital ensaio “Why There Have Been No Great Women Artists?” (“Por que nunca houve grandes artistas mulheres?”), de Linda Nochlin, publicado em 1971. Nesse texto, dois argumentos comuns são citados, na busca de uma resposta: um deles é o de que seria necessário exumar as mulheres soterradas pela história oficial da arte e alçá-las ao pedestal que lhes é de direito. O segundo argumento propõe que talvez haja um tipo diferente de “grandeza” quando se trata de arte feita por mulheres – um estilo feminino, distinto e reconhecível.
Porém, Nochlin conclui, a própria pergunta “por que nunca houve grandes artistas mulheres?” é, em si, problemática. Que critérios, para começo de conversa, determinam a “grandiosidade” de um(a) artista? “Grande”, “genial”, “mestre” – essas são qualificações formuladas, concedidas e solidificadas pela história oficial. Allyson Healey recorda:
A história da arte nunca esteve imune à misoginia, ao racismo e à homofobia que afetaram outras disciplinas e outros aspectos da vida moderna. Como Nochlin argumenta, a omissão das mulheres na narrativa da história da arte é um problema estrutural, um problema tanto da disciplina de história da arte quanto das estruturas de produção e ensino de arte que ela estuda. As mulheres não podiam ser “grandes”, não podiam operar no mesmo nível que os homens, porque era institucionalmente impossível para elas, dadas as estruturas sociais e artísticas nas quais eram obrigadas a trabalhar.
Recordemos que o ensaio de Linda Nochlin foi publicado há cinquenta anos, mas soa estranhamente atual. O grupo Guerrilla Girls continua batendo na mesma tecla: “Menos de 5% dos artistas na seção de Arte Moderna [do Metropolitan Museum, em Nova York] são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.
Poderíamos nos perguntar se não caberia, no âmbito da arte, da literatura e da vida, uma verdadeira mudança de foco. Não se trataria de alçar à ribalta quem foi excluído dentro dos critérios vigentes, mas de questionar os mesmos critérios – e, de resto, a estrutura que os originou e que eles sustentam mesmo quando fazem “concessões”. Do contrário, estaremos repetindo modelos e reiterando a sinédoque costumeira que toma a narrativa da parte pela história do todo.
Walter Isaacson narra com emoção o momento em que teve acesso privado ao magnífico Homem vitruviano, de Leonardo – obra raramente exibida, dada a sensibilidade dos materiais à luz. “Tive a estranha e íntima sensação de ver a mão do mestre trabalhando, mais de cinco séculos antes.” Lendo a biografia, compartilhamos dessa emoção. Mas se Isaacson, um respeitado historiador e professor universitário, afirma que o Homem vitruviano simboliza um ideal de existência humana, fruto de um momento em que “as mentes mortais” investigam “questões atemporais sobre quem somos e como nos situamos na grande ordem do universo”, ele não parece julgar necessário definir o sujeito desses verbos. Para Isaacson, dentro do círculo e do quadrado em que se inscreve, em toda sua absoluta perfeição estética, o Homem vitruviano, podemos ver “a essência de nós mesmos, nus na interseção do terreno e do mundano”.
Às mulheres restaria, talvez – como à Mona Lisa, ou como à sedutora Jovem dama com papagaio –, sorrir.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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