Outro dia saí só para sair de casa; para tomar um ar; para subir e descer umas ruas; para alimentar a alma; para tomar uma água mineral sem gás; para sentir calor fora do quarto; para rever uma amiga; para ouvir a voz de outrem; para andar de carro para o centro da cidade; para comprar um pão de queijo não assado no meu forno; para ver uma novidade qualquer; para saber que as pessoas ainda estão aí e zanzam; para ver gente sem máscara, tomando chope como se ainda fosse 2019; para rir amplamente; para sentir vento no cabelo pela janela de um carro que não é meu; para rever e reexperimentar um engarrafamento; para confirmar do que gosto e do que não gosto; para sentir saudade de uma ou duas coisas e logo deixar de sentir; para sentir falta da minha casa de novo e confirmar: é onde fico bem.
Achados onde o vento faz a curva
Ao zanzar pelos corredores do Mercado Novo, que, afinal, é um velho mercado bem acabado, estranho, torto, convicto de sua quase ruína, mas que vem sendo reocupado por um novo público e que resguarda uma parte das coisas que já poderiam ter sido extintas do mundo: uma lojinha de conserto e manutenção de instrumentos de corda, outra de carimbos de madeira, uma clicheria, um ateliê de joias artesanais, um bar de sushis veganos, um marceneiro, talvez um alfaiate ou um consertador de ventiladores de metal. Lá atrás, depois da curva do vento, encontrei um tipoeta. Eu nem esperava vê-lo, mas ele veio nos receber à porta, com um sorriso, eu sei, atrás da máscara. Os cumprimentos dos poetas são outros e nós falamos de poesia, claro, mas de tipografia e de revistas, pensando em novos projetos e em promessas que nunca se cumprem. Mas parece que, desta vez, se realizarão. Vi o futuro nas pupilas dele enquanto resistia a comprar todos, todos, todos os caderninhos artesanais que estavam em cima das bancadas. Nas paredes, cartazes em tipografia estampavam poemas de Pessoa, letras de música popular brasileira, partes de palavras que podem ter vindo de qualquer lugar, mas que ali são o que são: poemas possíveis. Cores, combinações delas, paletas improváveis, composições inesperadas que mesclam serifas, formas interrompidas e letras inteiras, em especial A e E, as duas que me fazem gamar. As paredes forradas de cartazes em chassis especiais para o caso, as bancadas com coleções de blocos especiais, em papéis amarelados e capas mordidas pelos tipos de metal que o poeta maneja. O caixa, o balcão da frente, os quadros pelo chão, minha curiosidade, atenta feito um cão de guarda.
Saímos de lá, eu e minha amiga, certas de que um passeio desses abre o apetite e alivia a alma. É cansativo sair comigo a passear sem rumo, onde eu encontro lances das poucas coisas que amo na vida. Olhei pelos cobogós do prédio antigo e lá fora chovia feito uma cortina translúcida. Ventava e quase molhei meu cabelo. O dia só era cinza para quem não estava ali, dentro daquela loja de tipoemas.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
O REVÉS DE UM PARTO Por Cláudia Lamego Escrito em prosa poética, Brilha como vida pode ser lido como um romance de formação em estilhaços. Da poeta que escreve, no internato, “palavras como alavancas, martelos, flechas apontadas contra algo que vibra e não tem nome ou palavra” à escritora que encontra nas palavras a …
GÊNIOS por Adriana Lisboa Perde-se a conta de quantas vezes a palavra “gênio” aparece na biografia de Leonardo da Vinci publicada por Walter Isaacson em 2017. O historiador e autor best-seller afirma que Leonardo foi “o mais criativo gênio da história”. Ao longo das seiscentas páginas do livro, pairam alguns fascinantes enigmas sobre a …
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COLUNA MARCA PÁGINA
TIPOETAS
por Ana Elisa Ribeiro
Outro dia saí só para sair de casa; para tomar um ar; para subir e descer umas ruas; para alimentar a alma; para tomar uma água mineral sem gás; para sentir calor fora do quarto; para rever uma amiga; para ouvir a voz de outrem; para andar de carro para o centro da cidade; para comprar um pão de queijo não assado no meu forno; para ver uma novidade qualquer; para saber que as pessoas ainda estão aí e zanzam; para ver gente sem máscara, tomando chope como se ainda fosse 2019; para rir amplamente; para sentir vento no cabelo pela janela de um carro que não é meu; para rever e reexperimentar um engarrafamento; para confirmar do que gosto e do que não gosto; para sentir saudade de uma ou duas coisas e logo deixar de sentir; para sentir falta da minha casa de novo e confirmar: é onde fico bem.
Achados onde o vento faz a curva
Ao zanzar pelos corredores do Mercado Novo, que, afinal, é um velho mercado bem acabado, estranho, torto, convicto de sua quase ruína, mas que vem sendo reocupado por um novo público e que resguarda uma parte das coisas que já poderiam ter sido extintas do mundo: uma lojinha de conserto e manutenção de instrumentos de corda, outra de carimbos de madeira, uma clicheria, um ateliê de joias artesanais, um bar de sushis veganos, um marceneiro, talvez um alfaiate ou um consertador de ventiladores de metal. Lá atrás, depois da curva do vento, encontrei um tipoeta. Eu nem esperava vê-lo, mas ele veio nos receber à porta, com um sorriso, eu sei, atrás da máscara. Os cumprimentos dos poetas são outros e nós falamos de poesia, claro, mas de tipografia e de revistas, pensando em novos projetos e em promessas que nunca se cumprem. Mas parece que, desta vez, se realizarão. Vi o futuro nas pupilas dele enquanto resistia a comprar todos, todos, todos os caderninhos artesanais que estavam em cima das bancadas. Nas paredes, cartazes em tipografia estampavam poemas de Pessoa, letras de música popular brasileira, partes de palavras que podem ter vindo de qualquer lugar, mas que ali são o que são: poemas possíveis. Cores, combinações delas, paletas improváveis, composições inesperadas que mesclam serifas, formas interrompidas e letras inteiras, em especial A e E, as duas que me fazem gamar. As paredes forradas de cartazes em chassis especiais para o caso, as bancadas com coleções de blocos especiais, em papéis amarelados e capas mordidas pelos tipos de metal que o poeta maneja. O caixa, o balcão da frente, os quadros pelo chão, minha curiosidade, atenta feito um cão de guarda.
Saímos de lá, eu e minha amiga, certas de que um passeio desses abre o apetite e alivia a alma. É cansativo sair comigo a passear sem rumo, onde eu encontro lances das poucas coisas que amo na vida. Olhei pelos cobogós do prédio antigo e lá fora chovia feito uma cortina translúcida. Ventava e quase molhei meu cabelo. O dia só era cinza para quem não estava ali, dentro daquela loja de tipoemas.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
Um comentário em “COLUNA MARCA PÁGINA”
Nathalia Campos
É como diria o E.T.: “Minha casa…”
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