Dei à minha amiga – professora e poeta – uma minimáquina de costura. Duvidei um pouco de que o pequeno equipamento funcionasse a contento, mas comprei e entreguei, assim que a vi – a pessoa – diante de mim para um abraço. É uma maquininha que eu já tinha visto antes, em algum momento da vida, mas que me parecia extinta. Erro meu. Existe e pode costurar, a partir da colocação de uma linha e de uns gestos ritmados da mão. Lembra um grampeador, só que muito mais delicado e bem menos hostil. É como um outro jeito de escrever. Foi isso que pensei quando vi a máquina e enxerguei o rosto da minha amiga. Ela, que pode ver e fazer poesia, que faz vídeos, que costura, que borda, que se expressa de muitos jeitos, saberia como empregar aquele presente.
A costureira que frequento, geralmente para fazer bainhas em calças jeans, não tem noção de que poderia ser artista no uso de suas linhas e pontos. Ela tem uma máquina lindamente castigada pelo uso intenso, mas não vê nas bobinas de linhas coloridas uma espécie de paleta de pintor ou de caixa tipográfica. Ela usa um caderninho pautado para anotar os nomes das clientes e fazer as contas, depois cobrar o serviço. É pontual, assertiva. Talvez risse da pequenez e da fragilidade da maquineta que dei à minha amiga de presente. Elas são costureiras e têm diferentes olhares sobre seus fazeres.
O estofador que consultei para resolver os problemas de duas cadeiras demorou a me retornar. Ele não pareceu muito perito no uso do WhatsApp, então tentei ajudar ligando de volta pelo telefone convencional. Ele trabalha com tecidos duros, resistentes, ásperos às vezes. Não costuma ser pontual nem muito assertivo, mas é cuidadoso no trato com clientes. Me chama de senhora e eu devolvo com o mesmo tratamento. Só que eu não me acho uma senhora, e o considero, há muito, um senhor. Ele vê a foto de uma das cadeiras, diz que aquilo é “moleza” de fazer, que cobrará barato, diz um preço que não me incomoda, pede um horário para uma visita, pergunta meu endereço. Ele é uma espécie de costureiro, mas muito mais bruto, com máquinas maiores, uso de força, madeira, prego, uns grampeadores enormes, dedos fortes, unhas sujas. Eventualmente, maneja tintas, lixas e vernizes. Talvez ele também se risse da maquineta que dei à minha amiga.
Falei também com o vidraceiro. Como estão caros os vidros, os cortes, os acabamentos! Não compensa mais proteger uma mesa com um vidro pouco espesso. O moço, jovem e perito em redes sociais, me pediu fotos dos objetos, desenhos do meu projeto, medidas precisas, tipos de polimento. Notou que desisti quando me disse preços e passou a pensar em alternativas mais em conta. De uma outra vez, ele foi pontual e os vidros ficaram bons. Agora, não sei. Pergunto se ele corta vidros que eu já tenho. Ele diz que sim, mas imagino que isso não seja muito estimulante. Tire as medidas. Eu as tirarei com a maior precisão possível, usando uma trena, mas poderia ser a fita métrica mole que usa a costureira para fazer minhas bainhas de calças. Trenas, fitas, réguas e até escalímetros. Nível, você sabe o que é um nível? Tenho dois: um pequeno e outro grande, usado geralmente para planejar a diagramação de quadros nas paredes. Como um nível dá segurança e conforto!
Aqui misturo tecidos, linhas, madeiras, grampos e vidros. Aqui se olha para tudo e se quer reformar as coisas que não perdem a beleza com o passar do tempo, embora se possam gastar e quebrar. Aqui a plaquinha na porta é de: Temos.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
NÓS VIEMOS DA SELVA por Rafael Freitas da Silva Vem da Presidência da República finalmente um assunto digno e benigno para a reflexão de todos os brasileiros. Na verdade, da República Argentina. Pois lá o mandatário Alberto Fernández verbalizou, em uma conferência com o primeiro-ministro espanhol, em Buenos Aires, um ditado portenho ainda pouco …
CARTA A UMA AMIGA por Giovanna Dealtry Querida amiga escritora, Escrevo-lhe uma carta sem minha letra. Poderemos falar nisso em outra carta, se você assim o quiser. Sobre caligrafia e o desenho impresso no papel pelo gesto da mão e do aprendizado da linguagem. É um assunto do meu interesse, porque vivi angustiada com …
CARTA PARA A JOVEM EU por Ana Elisa Ribeiro A ideia não é nada original, mas às vezes eu penso em enviar uma carta a mim mesma, vinte, vinte e cinco anos atrás. É que foi um tempo de escolhas que eu não sabia que estava fazendo, opções que eu não via que …
DOIS DE CADA por Ana Elisa Ribeiro Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes …
COLUNA MARCA PÁGINA
TRENAS, FITAS, RÉGUAS, NÍVEIS
por Ana Elisa Ribeiro
Dei à minha amiga – professora e poeta – uma minimáquina de costura. Duvidei um pouco de que o pequeno equipamento funcionasse a contento, mas comprei e entreguei, assim que a vi – a pessoa – diante de mim para um abraço. É uma maquininha que eu já tinha visto antes, em algum momento da vida, mas que me parecia extinta. Erro meu. Existe e pode costurar, a partir da colocação de uma linha e de uns gestos ritmados da mão. Lembra um grampeador, só que muito mais delicado e bem menos hostil. É como um outro jeito de escrever. Foi isso que pensei quando vi a máquina e enxerguei o rosto da minha amiga. Ela, que pode ver e fazer poesia, que faz vídeos, que costura, que borda, que se expressa de muitos jeitos, saberia como empregar aquele presente.
A costureira que frequento, geralmente para fazer bainhas em calças jeans, não tem noção de que poderia ser artista no uso de suas linhas e pontos. Ela tem uma máquina lindamente castigada pelo uso intenso, mas não vê nas bobinas de linhas coloridas uma espécie de paleta de pintor ou de caixa tipográfica. Ela usa um caderninho pautado para anotar os nomes das clientes e fazer as contas, depois cobrar o serviço. É pontual, assertiva. Talvez risse da pequenez e da fragilidade da maquineta que dei à minha amiga de presente. Elas são costureiras e têm diferentes olhares sobre seus fazeres.
O estofador que consultei para resolver os problemas de duas cadeiras demorou a me retornar. Ele não pareceu muito perito no uso do WhatsApp, então tentei ajudar ligando de volta pelo telefone convencional. Ele trabalha com tecidos duros, resistentes, ásperos às vezes. Não costuma ser pontual nem muito assertivo, mas é cuidadoso no trato com clientes. Me chama de senhora e eu devolvo com o mesmo tratamento. Só que eu não me acho uma senhora, e o considero, há muito, um senhor. Ele vê a foto de uma das cadeiras, diz que aquilo é “moleza” de fazer, que cobrará barato, diz um preço que não me incomoda, pede um horário para uma visita, pergunta meu endereço. Ele é uma espécie de costureiro, mas muito mais bruto, com máquinas maiores, uso de força, madeira, prego, uns grampeadores enormes, dedos fortes, unhas sujas. Eventualmente, maneja tintas, lixas e vernizes. Talvez ele também se risse da maquineta que dei à minha amiga.
Falei também com o vidraceiro. Como estão caros os vidros, os cortes, os acabamentos! Não compensa mais proteger uma mesa com um vidro pouco espesso. O moço, jovem e perito em redes sociais, me pediu fotos dos objetos, desenhos do meu projeto, medidas precisas, tipos de polimento. Notou que desisti quando me disse preços e passou a pensar em alternativas mais em conta. De uma outra vez, ele foi pontual e os vidros ficaram bons. Agora, não sei. Pergunto se ele corta vidros que eu já tenho. Ele diz que sim, mas imagino que isso não seja muito estimulante. Tire as medidas. Eu as tirarei com a maior precisão possível, usando uma trena, mas poderia ser a fita métrica mole que usa a costureira para fazer minhas bainhas de calças. Trenas, fitas, réguas e até escalímetros. Nível, você sabe o que é um nível? Tenho dois: um pequeno e outro grande, usado geralmente para planejar a diagramação de quadros nas paredes. Como um nível dá segurança e conforto!
Aqui misturo tecidos, linhas, madeiras, grampos e vidros. Aqui se olha para tudo e se quer reformar as coisas que não perdem a beleza com o passar do tempo, embora se possam gastar e quebrar. Aqui a plaquinha na porta é de: Temos.
Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
Posts relacionados
COLUNA PINDORAMA
NÓS VIEMOS DA SELVA por Rafael Freitas da Silva Vem da Presidência da República finalmente um assunto digno e benigno para a reflexão de todos os brasileiros. Na verdade, da República Argentina. Pois lá o mandatário Alberto Fernández verbalizou, em uma conferência com o primeiro-ministro espanhol, em Buenos Aires, um ditado portenho ainda pouco …
COLUNA LIVRE
CARTA A UMA AMIGA por Giovanna Dealtry Querida amiga escritora, Escrevo-lhe uma carta sem minha letra. Poderemos falar nisso em outra carta, se você assim o quiser. Sobre caligrafia e o desenho impresso no papel pelo gesto da mão e do aprendizado da linguagem. É um assunto do meu interesse, porque vivi angustiada com …
COLUNA MARCA PÁGINA
CARTA PARA A JOVEM EU por Ana Elisa Ribeiro A ideia não é nada original, mas às vezes eu penso em enviar uma carta a mim mesma, vinte, vinte e cinco anos atrás. É que foi um tempo de escolhas que eu não sabia que estava fazendo, opções que eu não via que …
COLUNA MARCA PÁGINA
DOIS DE CADA por Ana Elisa Ribeiro Obrigada, Paulo, por trazer na mala, em sua viagem de férias ao Brasil, mais peso do que deveria. Se tem uma coisa chata a se pedir a alguém em viagem internacional (e mesmo nacional) é que traga livro. No plural então… é pior ainda. Mas às vezes …