“TRADUZIR DONATELLA DI PIENTRANTONIO FOI UMA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO NA SUA LINGUAGEM LITERÁRIA, QUE É MUITO SINGULAR. A ENERGIA QUE A AUTORA COLOCA EM CADA PALAVRA É IMPRESSIONANTE. BELLA MIA É UMA LEITURA QUE ESCORRE, TEM SEU PRÓPRIO FLUXO, MAS QUE É MARCADA POR CERTAS ESCOLHAS.”
Uma história impactante de tirar o fôlego combinada com uma linguagem seca e essencial são as primeiras coordenadas de Bella mia, de Donatella di Pietrantonio, premiada escritora italiana traduzida para várias línguas. Publicado originalmente em 2014, Bella mia é o seu segundo romance, que agora chega ao Brasil, com tradução de Patricia Peterle.
Com a participação de Patricia e de convidadas especiais – a pesquisadora e professora Maria Carolina Casati e a mediadora de leituras Beth Leites –, Bella mia será apresentado na Livraria da Tarde em 29 de novembro, sábado, às 15h. O evento de lançamento terá uma roda de conversa sobre temas afins ao romance, como escrita de mulheres, maternidade, literatura italiana contemporânea e luto.
Conheça mais sobre o livro neste relato de Patricia Peterle, exclusivo para o Blog da Relicário.
O que fazer diante do colapso e do indizível da perda?
Por Patricia Peterle
O que fazer quando a vida nos é arrebatada? Quando a vida singular e a coletiva são arrastadas para o olho do furacão que chega sem pedir licença? Quando a contingência e o desastre fazem com que uma pessoa passe de um dia para o outro a ter de ocupar o lugar de mãe? Um espaço que até então tinha sido descartado e outros caminhos tinham e estavam sendo trilhados. O que fazer diante do colapso e do indizível da perda? Bella mia é tudo isso e muito mais!
“Está sentado no seu lugar com a cabeça cabeluda sobre o prato, o vapor da sopa dilata as espinhas e encurva os pelos longos e sutis que despontam sem projeto, na espera de se tornarem barba. […] Evita os nossos olhos, sabe que estamos olhando para ele e que contamos as proteínas ingeridas e as que deixa no fundo.
Mastiga silêncio.”
Este é o primeiro parágrafo do livro. Já aqui temos uma pequena amostra do caráter duro da linguagem de Donatella di Pientrantonio, uma autora sem adornos, que crava e finca a expressão: “mastiga silencio”.
A escritora Donatella Di Pietrantonio
O clima ao redor da mesa onde se fazem as refeições traz nas moléculas de ar as tensões que cada um ali presente carrega consigo. Feridas do passado e do presente, feridas físicas e não, feridas que se inscrevem no corpo como cicatrizes abertas e que seguem sendo constitutivas destes mesmos sujeitos. Medos e esperanças, riscos e apostas são também os fios sutis da trama.
Caterina
Irmã gêmea de Olivia, Caterina se vê de um dia para o outro diante do sobrinho Marco, que necessita da sua presença. Ela é a narradora protagonista que nunca demostrou ter interesse pela maternidade e já tinha abandonado esta ideia. A irmã, Olivia, é uma das vítimas do terremoto que atingiu a cidade de Áquila em 2009. Áquila se torna de repente uma cidade fantasma e cheia, pois agora são os destroços das casas e a poeira que a habitam. O que se faz quando os pontos de referência são violentamente arrancados?
A família de Caterina é o centro deste romance: três mulheres (a nonna, as filhas gêmeas) e Marco. De uma perspectiva, o que temos são os corpos daqueles que sobreviveram – restos de uma morte que não cessa de não se inscrver em resíduos e objetos – e o corpo da cidade, por sua vez, massacrado. Não há um caminho certo, uma receita, uma diretriz nesta tensa rede de relações, cada um deles terá seus embates para se reencontrar no pós-terremoto.
Bella mia traz uma epígrafe sintomática de Mariangela Gualtieri, uma vez que alude ao que será encontrado em suas páginas. Os versos foram retirados do livro Fuoco centrale [“Fogo central”] e colocam em cena a dificuldade de se identificar, trazendo a descrição de um corpo minúsculo e o sentido de “pequenez” que não deixa de aludir à protagonista Caterina: “Antes eu era muito/ leve, pesava poucos/ quilos. Antes havia/ só três ou quatro/ quilos/ de mim, só poucos/ quilos de mim, só poucos/ quilos tinha o meu/ nome.”
A maternidade
Bella mia, de Donatella di Pientrantonio, é o segundo romance de literatura italiana publicado pela Relicário. O primeiro foi Brilha como vida, de Maria Grazia Calandrone, que traduzi em parceria com Andrea Santurbano. Calandrone também abordava o tema da maternidade, mas a partir de outra perspectiva e de um caso real que tinha ganhado as páginas dos jornais.
A partilha de experiências é um dos elos entre esses dois romances: o abandono de uma criança num parque romano e o terremoto que abala e arrasa a vida dos habitantes de uma cidade.
Donatella di Pientrantonio desenvolve em Bella mia um de seus grandes temas, a maternidade. Neste romance, como ela mesma afirmou em entrevistas, o interesse era explorar uma dimensão da maternidade em que uma pessoa pode se encontrar para além de suas intenções, desejos e vontades, imposições sociais.
“Não é meu filho. Marco e eu não nos pertencemos. E se uma gêmea tivesse de morrer, não quis ser eu a testemunha. A loteria do terremoto extraiu casualmente e os separou, Olivia e a sua criatura. Salvou a mim, e às vezes sinto saudades do fim que me foi negado. Não sou mãe, ele não é fruto deste ventre magro. É outro, nascido de uma outra quase igual a mim. Eu não o amo, frequentemente não o amo, quando volto para casa e cheiro sua presença, sinto logo um incômodo no estômago e depois caio sob os disparos de seus olhos. Me assusta, como a enormidade da minha tarefa. Deveria ser sua mãe reserva. Sou, ao contrário, a suplente com a primeira nomeação incapaz de enfrentar a classe turbulenta.
Nenhuma ajuda de Olivia. Não chovem sinais do seu irredutível outro lugar. Fica separada, não lança uma voz neste mundo aquém de vivos abandonados. Perdemos o contato, e ela a magia.”
É justamente esta a situação em que se encontra Caterina diante de seu sobrinho Marco, que já é um adolescente. Caterina não vive somente o luto – difícil de aceitar para ela – diante da perda de Olivia, mas precisa lidar com a nova reconfiguração que a morte impõe. Como uma mulher que sempre se sentiu incapaz de cuidar de uma outra pessoa, talvez inclusive dela mesma, consegue tirar de dentro de si forças para lidar com o real que bate à sua porta? Como ocupar o lugar de mãe não se sentindo apta pata tal? Ou melhor recusando este mesmo papel?
Talvez aqui tenhamos outra discussão, apontada também por Adriana Cavarero: o fato de a palavra “mulher” evocar por si só a ideia de um destino dentro de um preciso sistema de expectativas, que podem se apresentar com inúmeros disfarces. E, ao lado deste aspecto, é possível ainda colocar a relação mãe/filha, entre a nonna e Caterina, e, se quisermos, o fio pode se estendido aos demais personagens que vão aparecendo ao redor deste núcleo central.
A dor, o corpo, o silêncio
Como gerações diferentes respondem e lidam com a dor? A nonna se mostra mais habituada a enfrentar a dor, com sua “casca-dura” mostra uma capacidade de se defender por meio da fé e tenta viver com o luto devastador pela perda da filha. Já Marco desabafa sua imensa dor num comportamento rebelde, numa espontaneidade violenta, e é o primeiro personagem que aparece no livro. É ele quem possui as espinhas, que evita o encontro dos olhos da nonna e da tia, que não tem apetite. É ele, enfim, que “mastiga silêncio”. Silêncio que pode estar para dor, para o vazio, para as incertezas trazidas por uma situação deste porte, para as infindáveis dúvidas, para a raiva inevitável diante de um mundo que tira o que se ama. O que acontece quando se perde o que se ama? Esta é uma das perguntas que movem os personagens deste romance.
O corpo diante do trauma fala e se expõe. A protagonista de Bella mia depois do terremoto, depois de ver o corpo da irmã sendo levado, chega a perder o ciclo menstrual. Os ciclos menstruais das irmãs eram síncronos, como outras sensações, mas desde que Olivia se foi, Caterina diz que nem uma gota de sangue saiu do seu útero.
Quais as vias (se é que há uma possível) para se reconstruir? Caterina é uma ceramista, e seu ateliê terá um papel importante nessa experiência, pois é lá, mexendo na massa do barro, que ela dá vida a duas estátuas gêmeas: “No último momento, escavo com um só golpe da estaca de madeira o grito incessante da boca que eu tinha deixado fechada. Agora está pronta para o forno. […] O grito é de Olivia. Pensava que fosse meu, mas agora que terminei a mulher, se parece mais com ela”. E, enfim: “Coloquei as gêmeas na janela, fechada, para olhar também a parte de trás delas”.
Como sublinhou Walter Siti, as palavras de Donatella di Pietrantonio “têm músculos”. Fico feliz de este livro ser publicado no Brasil pela Relicário, que tem um cuidado único com o processo de produção de seu catálogo. Meu agradecimento a toda a equipe da editora e, sobretudo, ao Thiago Landi, pela atenção e por todas as sugestões na revisão.
Patricia Peterle é professora de Literatura Italiana na UFSC, tradutora, poeta e pesquisadora do CNPq. Tem um percurso na psicanálise pelo ICPOL-SC, além de integrar o Coletivo Psicanálise na Praça. Traduziu autores como Giovanni Pascoli, Giorgio Caproni, Enrico Testa, Eugenio De Signoribus, Maria Grazia Calandrone, Andrea Zanzotto, Antonella Anedda, Laura Pugno, Giorgio Agamben, Roberto Esposito, Franco Rella. Escreveu e organizou diversos ensaios. Entre seus livros, estão Perdi o peão, mas aceito jogar (Quelônio, 2024) e Quando a língua bate (7Letras, 2024). Pela Relicário, publicou À escuta da poesia (2023).
O REVÉS DE UM PARTO Por Cláudia Lamego Escrito em prosa poética, Brilha como vida pode ser lido como um romance de formação em estilhaços. Da poeta que escreve, no internato, “palavras como alavancas, martelos, flechas apontadas contra algo que vibra e não tem nome ou palavra” à escritora que encontra nas palavras a …
NOTÍCIAS DA PRIMEIRA EPIDEMIA por Rafael Freitas da Silva Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados …
DIA DO ÍNDIO E MONUMENTO TUPINAMBÁ por Rafael Freitas da Silva Por que o Rio de Janeiro não tem um monumento em homenagem e lembrança à contribuição dos tupinambás, tupis e tamoios – gênese dos atuais cariocas? Desde o lançamento de O Rio antes do Rio tenho sido perguntado quais são os lugares …
GUIA TURÍSTICO DE ‘O RIO ANTES DO RIO’ (parte 2) por Rafael Freitas da Silva Em nosso último encontro aqui na Pindorama, prometi que faria uma série de colunas como uma espécie de “guia do presente”, para se encontrar as sensações de um Rio antes do Rio perdido por aí. Gosto de fazer uma …
COLUNA LIVRE
“TRADUZIR DONATELLA DI PIENTRANTONIO FOI UMA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO NA SUA LINGUAGEM LITERÁRIA, QUE É MUITO SINGULAR. A ENERGIA QUE A AUTORA COLOCA EM CADA PALAVRA É IMPRESSIONANTE. BELLA MIA É UMA LEITURA QUE ESCORRE, TEM SEU PRÓPRIO FLUXO, MAS QUE É MARCADA POR CERTAS ESCOLHAS.”
Uma história impactante de tirar o fôlego combinada com uma linguagem seca e essencial são as primeiras coordenadas de Bella mia, de Donatella di Pietrantonio, premiada escritora italiana traduzida para várias línguas. Publicado originalmente em 2014, Bella mia é o seu segundo romance, que agora chega ao Brasil, com tradução de Patricia Peterle.
Com a participação de Patricia e de convidadas especiais – a pesquisadora e professora Maria Carolina Casati e a mediadora de leituras Beth Leites –, Bella mia será apresentado na Livraria da Tarde em 29 de novembro, sábado, às 15h. O evento de lançamento terá uma roda de conversa sobre temas afins ao romance, como escrita de mulheres, maternidade, literatura italiana contemporânea e luto.
Conheça mais sobre o livro neste relato de Patricia Peterle, exclusivo para o Blog da Relicário.
O que fazer diante do colapso e do indizível da perda?
Por Patricia Peterle
O que fazer quando a vida nos é arrebatada? Quando a vida singular e a coletiva são arrastadas para o olho do furacão que chega sem pedir licença? Quando a contingência e o desastre fazem com que uma pessoa passe de um dia para o outro a ter de ocupar o lugar de mãe? Um espaço que até então tinha sido descartado e outros caminhos tinham e estavam sendo trilhados. O que fazer diante do colapso e do indizível da perda? Bella mia é tudo isso e muito mais!
“Está sentado no seu lugar com a cabeça cabeluda sobre o prato, o vapor da sopa dilata as espinhas e encurva os pelos longos e sutis que despontam sem projeto, na espera de se tornarem barba. […] Evita os nossos olhos, sabe que estamos olhando para ele e que contamos as proteínas ingeridas e as que deixa no fundo.
Mastiga silêncio.”
Este é o primeiro parágrafo do livro. Já aqui temos uma pequena amostra do caráter duro da linguagem de Donatella di Pientrantonio, uma autora sem adornos, que crava e finca a expressão: “mastiga silencio”.
A escritora Donatella Di Pietrantonio
O clima ao redor da mesa onde se fazem as refeições traz nas moléculas de ar as tensões que cada um ali presente carrega consigo. Feridas do passado e do presente, feridas físicas e não, feridas que se inscrevem no corpo como cicatrizes abertas e que seguem sendo constitutivas destes mesmos sujeitos. Medos e esperanças, riscos e apostas são também os fios sutis da trama.
Caterina
Irmã gêmea de Olivia, Caterina se vê de um dia para o outro diante do sobrinho Marco, que necessita da sua presença. Ela é a narradora protagonista que nunca demostrou ter interesse pela maternidade e já tinha abandonado esta ideia. A irmã, Olivia, é uma das vítimas do terremoto que atingiu a cidade de Áquila em 2009. Áquila se torna de repente uma cidade fantasma e cheia, pois agora são os destroços das casas e a poeira que a habitam. O que se faz quando os pontos de referência são violentamente arrancados?
A família de Caterina é o centro deste romance: três mulheres (a nonna, as filhas gêmeas) e Marco. De uma perspectiva, o que temos são os corpos daqueles que sobreviveram – restos de uma morte que não cessa de não se inscrver em resíduos e objetos – e o corpo da cidade, por sua vez, massacrado. Não há um caminho certo, uma receita, uma diretriz nesta tensa rede de relações, cada um deles terá seus embates para se reencontrar no pós-terremoto.
Bella mia traz uma epígrafe sintomática de Mariangela Gualtieri, uma vez que alude ao que será encontrado em suas páginas. Os versos foram retirados do livro Fuoco centrale [“Fogo central”] e colocam em cena a dificuldade de se identificar, trazendo a descrição de um corpo minúsculo e o sentido de “pequenez” que não deixa de aludir à protagonista Caterina: “Antes eu era muito/ leve, pesava poucos/ quilos. Antes havia/ só três ou quatro/ quilos/ de mim, só poucos/ quilos de mim, só poucos/ quilos tinha o meu/ nome.”
A maternidade
Bella mia, de Donatella di Pientrantonio, é o segundo romance de literatura italiana publicado pela Relicário. O primeiro foi Brilha como vida, de Maria Grazia Calandrone, que traduzi em parceria com Andrea Santurbano. Calandrone também abordava o tema da maternidade, mas a partir de outra perspectiva e de um caso real que tinha ganhado as páginas dos jornais.
A partilha de experiências é um dos elos entre esses dois romances: o abandono de uma criança num parque romano e o terremoto que abala e arrasa a vida dos habitantes de uma cidade.
Donatella di Pientrantonio desenvolve em Bella mia um de seus grandes temas, a maternidade. Neste romance, como ela mesma afirmou em entrevistas, o interesse era explorar uma dimensão da maternidade em que uma pessoa pode se encontrar para além de suas intenções, desejos e vontades, imposições sociais.
“Não é meu filho. Marco e eu não nos pertencemos. E se uma gêmea tivesse de morrer, não quis ser eu a testemunha. A loteria do terremoto extraiu casualmente e os separou, Olivia e a sua criatura. Salvou a mim, e às vezes sinto saudades do fim que me foi negado. Não sou mãe, ele não é fruto deste ventre magro. É outro, nascido de uma outra quase igual a mim. Eu não o amo, frequentemente não o amo, quando volto para casa e cheiro sua presença, sinto logo um incômodo no estômago e depois caio sob os disparos de seus olhos. Me assusta, como a enormidade da minha tarefa. Deveria ser sua mãe reserva. Sou, ao contrário, a suplente com a primeira nomeação incapaz de enfrentar a classe turbulenta.
Nenhuma ajuda de Olivia. Não chovem sinais do seu irredutível outro lugar. Fica separada, não lança uma voz neste mundo aquém de vivos abandonados. Perdemos o contato, e ela a magia.”
É justamente esta a situação em que se encontra Caterina diante de seu sobrinho Marco, que já é um adolescente. Caterina não vive somente o luto – difícil de aceitar para ela – diante da perda de Olivia, mas precisa lidar com a nova reconfiguração que a morte impõe. Como uma mulher que sempre se sentiu incapaz de cuidar de uma outra pessoa, talvez inclusive dela mesma, consegue tirar de dentro de si forças para lidar com o real que bate à sua porta? Como ocupar o lugar de mãe não se sentindo apta pata tal? Ou melhor recusando este mesmo papel?
Talvez aqui tenhamos outra discussão, apontada também por Adriana Cavarero: o fato de a palavra “mulher” evocar por si só a ideia de um destino dentro de um preciso sistema de expectativas, que podem se apresentar com inúmeros disfarces. E, ao lado deste aspecto, é possível ainda colocar a relação mãe/filha, entre a nonna e Caterina, e, se quisermos, o fio pode se estendido aos demais personagens que vão aparecendo ao redor deste núcleo central.
A dor, o corpo, o silêncio
Como gerações diferentes respondem e lidam com a dor? A nonna se mostra mais habituada a enfrentar a dor, com sua “casca-dura” mostra uma capacidade de se defender por meio da fé e tenta viver com o luto devastador pela perda da filha. Já Marco desabafa sua imensa dor num comportamento rebelde, numa espontaneidade violenta, e é o primeiro personagem que aparece no livro. É ele quem possui as espinhas, que evita o encontro dos olhos da nonna e da tia, que não tem apetite. É ele, enfim, que “mastiga silêncio”. Silêncio que pode estar para dor, para o vazio, para as incertezas trazidas por uma situação deste porte, para as infindáveis dúvidas, para a raiva inevitável diante de um mundo que tira o que se ama. O que acontece quando se perde o que se ama? Esta é uma das perguntas que movem os personagens deste romance.
O corpo diante do trauma fala e se expõe. A protagonista de Bella mia depois do terremoto, depois de ver o corpo da irmã sendo levado, chega a perder o ciclo menstrual. Os ciclos menstruais das irmãs eram síncronos, como outras sensações, mas desde que Olivia se foi, Caterina diz que nem uma gota de sangue saiu do seu útero.
Quais as vias (se é que há uma possível) para se reconstruir? Caterina é uma ceramista, e seu ateliê terá um papel importante nessa experiência, pois é lá, mexendo na massa do barro, que ela dá vida a duas estátuas gêmeas: “No último momento, escavo com um só golpe da estaca de madeira o grito incessante da boca que eu tinha deixado fechada. Agora está pronta para o forno. […] O grito é de Olivia. Pensava que fosse meu, mas agora que terminei a mulher, se parece mais com ela”. E, enfim: “Coloquei as gêmeas na janela, fechada, para olhar também a parte de trás delas”.
Como sublinhou Walter Siti, as palavras de Donatella di Pietrantonio “têm músculos”. Fico feliz de este livro ser publicado no Brasil pela Relicário, que tem um cuidado único com o processo de produção de seu catálogo. Meu agradecimento a toda a equipe da editora e, sobretudo, ao Thiago Landi, pela atenção e por todas as sugestões na revisão.
Posts relacionados
COLUNA LIVRE
O REVÉS DE UM PARTO Por Cláudia Lamego Escrito em prosa poética, Brilha como vida pode ser lido como um romance de formação em estilhaços. Da poeta que escreve, no internato, “palavras como alavancas, martelos, flechas apontadas contra algo que vibra e não tem nome ou palavra” à escritora que encontra nas palavras a …
COLUNA PINDORAMA
NOTÍCIAS DA PRIMEIRA EPIDEMIA por Rafael Freitas da Silva Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados …
COLUNA PINDORAMA
DIA DO ÍNDIO E MONUMENTO TUPINAMBÁ por Rafael Freitas da Silva Por que o Rio de Janeiro não tem um monumento em homenagem e lembrança à contribuição dos tupinambás, tupis e tamoios – gênese dos atuais cariocas? Desde o lançamento de O Rio antes do Rio tenho sido perguntado quais são os lugares …
COLUNA PINDORAMA
GUIA TURÍSTICO DE ‘O RIO ANTES DO RIO’ (parte 2) por Rafael Freitas da Silva Em nosso último encontro aqui na Pindorama, prometi que faria uma série de colunas como uma espécie de “guia do presente”, para se encontrar as sensações de um Rio antes do Rio perdido por aí. Gosto de fazer uma …