Nas próximas colunas pretendo comentar a 19ª Flip, algumas de suas mesas e o espírito geral da festa.
Começo pelo início: participar da curadoria com Hermano Vianna, Anna Dantes, João Paulo Lima Barreto e Evando Nascimento foi uma experiência fantástica.
Pela primeira vez, em seus quase vinte anos, a Festa Literária Internacional de Paraty se organizou em torno de um tema, Nhe’éry: plantas e literatura. Não mais um autor, ou autora, em destaque; este ano homenagearam-se os mortos pela pandemia, em especial sábias e sábios indígenas que nos deixaram e levaram consigo saberes de valor inestimável.
A floresta, com suas redes ocultas de colaboração, muitas vezes subterrâneas e operando sem alarde, pode nos ensinar muito. Terá ficado claro que a Flip deste ano tentava escapar ao individualismo. Da curadoria à homenagem, passando por diálogos, encontros e manifestações artísticas memoráveis, tudo procurava fugir da luz que recai sobre um único indivíduo. A diversidade falou mais alto, sem nunca se descolar da força do coletivo.
Lembro, entre outros momentos, da discussão de Emanuele Coccia, Cecilia Cavalieri e Adriana Calcanhotto sobre as metamorfoses. Quando visto a partir de sua transformação incessante, o mundo, assim como as artes, não deixa espaço para divisões claras. A noção asséptica — e politicamente torpe — que permite imaginar que um indivíduo se separa absolutamente do outro cai por terra no momento em que concebemos o mundo como um universo de relações incessantes, mas também como um continuum de matéria.
Na economia das metamorfoses, somos lembrados que entre nós e as estrelas existe uma cadeia de transformações. O espaço que nos separa do céu é marcado por uma história de encontros, divisões e separações de matéria cósmica, até que um dia, nesta pequena nave que chamamos de Terra, surgissem os seres que começaram a transformar matéria gasosa inabitável no ar que respiramos. Nossas irmãs mais velhas, as plantas, são descendentes desses primeiros seres.
Mas, pensando bem, haverá um “ser” separado do outro? Não seríamos um único “ser”? Próximos ou distantes, somos todos parentes de criaturas que supomos “diferentes”, “outras”, quando na verdade cada um de nós não é mais que um acidente, uma conformação que a matéria cósmica ganhou, numa pequeníssima janela de tempo que identificamos como “nossa” vida.
No entanto, o laço que une o corpo de cada um de nós à matéria que nos circunda, bem como a todos os seres viventes, permanece, forte e seguro, mesmo que tenhamos dificuldade em reconhecê-lo. Convém celebrar esse laço cósmico, sagrá-lo, para recordar, ainda e sempre, que somos uma única e bonita continuidade. Romper essa cadeia cósmica que, de forma delicada e complexa, nos une a plantas, animais e coisas, é um gesto fatal que leva ao fim do mundo. Na fórmula cristalina de Ailton Krenak, só nos resta adiar tal dia, aprendendo a bailar com o universo, que é também uma maneira de desacelerar o fim. Desacelerar: haverá coisa mais importante, a essa altura dos acontecimentos?
A 19ª Flip era sobre tudo isso. A festa literária se iniciou com o encantamento de uma cerimôniana Praça da Matriz de Paraty, conduzida por Carlos Papá, Cristine Takuá e por membros das aldeias guaranis de Itaxim e Arapongas. Evocar a floresta, a Nhe’éry, tinha que acontecer sob a batuta deles. São séculos desautorizando, violentando e matando as populações indígenas; mas é a elas que deveríamos recorrer, e delas aprender. Por meio de suas inúmeras cosmogonias e seu vasto e plural vocabulário (Nhe’éry significa “onde as almas se banham” na língua guarani), elas vêm soletrando aquilo que precisaríamos ouvir. A alcunha de “parente” com que os indígenas se chamam nunca foi tão própria. A bem da verdade, no cosmos todos somos parentes, irmãs e primas dos seres viventes, mas também da matéria que preconceituosamente chamamos de “inerte”.
O humanismo é uma força, mas pode tornar-se uma armadilha. A centralidade do humano, bem como a ideia de que o mundo somente ganha sentido sob o olhar racional, é uma forma de arrogância e também de egoísmo. Ao longo das discussões do nosso coletivo, que chamávamos de “floresta curatorial”, pensei diversas vezes no Cartesius de Leminski. Em seu Catatau, o poeta curitibano imaginou que o autor do Discurso do método teria vindo ao Brasil no século XVII com a frota de Maurício de Nassau, para acabar sob uma frondosa árvore pernambucana, arrebatado pelo poder estupefaciente da maconha local.
O que vemos no livro de Leminski é um Descartes que perde a razão: plantas, animais e coisas, tudo desliza em constante metamorfose, encontrando-se e desencontrando-se, enquanto o filósofo teme fundir-se àquele entorno de que ele tenta zelosamente se apartar. Sua missão é observar o mundo de forma objetiva, mas a viagem pelas novas sensações põe o corpo no centro de uma percepção ampliada do mundo. Cartesius termina sua saga, que é também uma viagem pelo fio cortante das palavras, sentindo que as formigas levam todas as partículas de seu corpo para reinos subterrâneos. “Ocaso do sol do meu pensar”, exclama o filósofo, diante da vertigem de sentir-se inapelavelmente unido à matéria que o assombra.
O recado das plantas, a sabedoria das folhas, a utopia da coletividade, a energia operando em uníssono com o cosmos, a força do colonialismo, as formas de resistência, a imaginação e o mundo, o corpo e a imaginação: foi uma Flip memorável, tão remota quanto próxima.
Termino este primeiro de vários relatos com uma imagem dos nossos tempos: o sorriso sob a máscara!
Na fotografia, vemos João Paulo Lima Barreto, do povo tukano, doutor em Antropologia pela UFAM e diretor do Bahserikowi(Centro de Medicina Indígena), e Anna Dantes, editora e organizadora do Selvagem (Ciclo de Estudos sobre a Vida). Dois amigos e colegas da nossa floresta curatorial, que se encontravam em pessoa pela primeira vez na Praça da Matriz de Paraty, para a cerimônia de abertura da Flip.
Foi (e é) só o começo.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integrou o coletivo de curadores da Flip 2021.
UM ENCONTRO DE CLASSE por Pedro Meira Monteiro Eu pretendia continuar aqui na coluna os comentários sobre a Flip “vegetal”, que comecei a escrever em dezembro de 2021. No entanto me sinto impelido a interromper a série logo em seu início, para narrar algo que aconteceu: uma cena simples, dessas que deixam a gente …
2020, O ANO QUE NÃO COMEÇOU Por Elisa Ventura e Nélida Capela Em seu mais recente livro publicado no Brasil, Um mundo sem livros e sem livrarias?, Roger Chartier, a propósito do tema “livrarias”, diz que “é mais necessário do que nunca recordar a importância fundamental das livrarias no tecido das instituições que constituem o …
NÓS VIEMOS DA SELVA por Rafael Freitas da Silva Vem da Presidência da República finalmente um assunto digno e benigno para a reflexão de todos os brasileiros. Na verdade, da República Argentina. Pois lá o mandatário Alberto Fernández verbalizou, em uma conferência com o primeiro-ministro espanhol, em Buenos Aires, um ditado portenho ainda pouco …
UM ENCONTRO DE ESTAÇÕES por Luciene Guimarães Marguerite Duras viveu 81 anos e 1996 foi o ano de sua morte. Naquela época, talvez eu a confundisse com outra escritora, a belga Marguerite Yourcenar, autora de Memórias de Adriano, livro que aparecia na lista de mais vendidos, mas que nunca me ocorrera ler. Naturalmente, não …
COLUNA ASA DA PALAVRA
A FLORESTA DAS LETRAS (1)
por Pedro Meira Monteiro
Nas próximas colunas pretendo comentar a 19ª Flip, algumas de suas mesas e o espírito geral da festa.
Começo pelo início: participar da curadoria com Hermano Vianna, Anna Dantes, João Paulo Lima Barreto e Evando Nascimento foi uma experiência fantástica.
Pela primeira vez, em seus quase vinte anos, a Festa Literária Internacional de Paraty se organizou em torno de um tema, Nhe’éry: plantas e literatura. Não mais um autor, ou autora, em destaque; este ano homenagearam-se os mortos pela pandemia, em especial sábias e sábios indígenas que nos deixaram e levaram consigo saberes de valor inestimável.
A floresta, com suas redes ocultas de colaboração, muitas vezes subterrâneas e operando sem alarde, pode nos ensinar muito. Terá ficado claro que a Flip deste ano tentava escapar ao individualismo. Da curadoria à homenagem, passando por diálogos, encontros e manifestações artísticas memoráveis, tudo procurava fugir da luz que recai sobre um único indivíduo. A diversidade falou mais alto, sem nunca se descolar da força do coletivo.
Lembro, entre outros momentos, da discussão de Emanuele Coccia, Cecilia Cavalieri e Adriana Calcanhotto sobre as metamorfoses. Quando visto a partir de sua transformação incessante, o mundo, assim como as artes, não deixa espaço para divisões claras. A noção asséptica — e politicamente torpe — que permite imaginar que um indivíduo se separa absolutamente do outro cai por terra no momento em que concebemos o mundo como um universo de relações incessantes, mas também como um continuum de matéria.
Na economia das metamorfoses, somos lembrados que entre nós e as estrelas existe uma cadeia de transformações. O espaço que nos separa do céu é marcado por uma história de encontros, divisões e separações de matéria cósmica, até que um dia, nesta pequena nave que chamamos de Terra, surgissem os seres que começaram a transformar matéria gasosa inabitável no ar que respiramos. Nossas irmãs mais velhas, as plantas, são descendentes desses primeiros seres.
Mas, pensando bem, haverá um “ser” separado do outro? Não seríamos um único “ser”? Próximos ou distantes, somos todos parentes de criaturas que supomos “diferentes”, “outras”, quando na verdade cada um de nós não é mais que um acidente, uma conformação que a matéria cósmica ganhou, numa pequeníssima janela de tempo que identificamos como “nossa” vida.
No entanto, o laço que une o corpo de cada um de nós à matéria que nos circunda, bem como a todos os seres viventes, permanece, forte e seguro, mesmo que tenhamos dificuldade em reconhecê-lo. Convém celebrar esse laço cósmico, sagrá-lo, para recordar, ainda e sempre, que somos uma única e bonita continuidade. Romper essa cadeia cósmica que, de forma delicada e complexa, nos une a plantas, animais e coisas, é um gesto fatal que leva ao fim do mundo. Na fórmula cristalina de Ailton Krenak, só nos resta adiar tal dia, aprendendo a bailar com o universo, que é também uma maneira de desacelerar o fim. Desacelerar: haverá coisa mais importante, a essa altura dos acontecimentos?
A 19ª Flip era sobre tudo isso. A festa literária se iniciou com o encantamento de uma cerimônia na Praça da Matriz de Paraty, conduzida por Carlos Papá, Cristine Takuá e por membros das aldeias guaranis de Itaxim e Arapongas. Evocar a floresta, a Nhe’éry, tinha que acontecer sob a batuta deles. São séculos desautorizando, violentando e matando as populações indígenas; mas é a elas que deveríamos recorrer, e delas aprender. Por meio de suas inúmeras cosmogonias e seu vasto e plural vocabulário (Nhe’éry significa “onde as almas se banham” na língua guarani), elas vêm soletrando aquilo que precisaríamos ouvir. A alcunha de “parente” com que os indígenas se chamam nunca foi tão própria. A bem da verdade, no cosmos todos somos parentes, irmãs e primas dos seres viventes, mas também da matéria que preconceituosamente chamamos de “inerte”.
O humanismo é uma força, mas pode tornar-se uma armadilha. A centralidade do humano, bem como a ideia de que o mundo somente ganha sentido sob o olhar racional, é uma forma de arrogância e também de egoísmo. Ao longo das discussões do nosso coletivo, que chamávamos de “floresta curatorial”, pensei diversas vezes no Cartesius de Leminski. Em seu Catatau, o poeta curitibano imaginou que o autor do Discurso do método teria vindo ao Brasil no século XVII com a frota de Maurício de Nassau, para acabar sob uma frondosa árvore pernambucana, arrebatado pelo poder estupefaciente da maconha local.
O que vemos no livro de Leminski é um Descartes que perde a razão: plantas, animais e coisas, tudo desliza em constante metamorfose, encontrando-se e desencontrando-se, enquanto o filósofo teme fundir-se àquele entorno de que ele tenta zelosamente se apartar. Sua missão é observar o mundo de forma objetiva, mas a viagem pelas novas sensações põe o corpo no centro de uma percepção ampliada do mundo. Cartesius termina sua saga, que é também uma viagem pelo fio cortante das palavras, sentindo que as formigas levam todas as partículas de seu corpo para reinos subterrâneos. “Ocaso do sol do meu pensar”, exclama o filósofo, diante da vertigem de sentir-se inapelavelmente unido à matéria que o assombra.
O recado das plantas, a sabedoria das folhas, a utopia da coletividade, a energia operando em uníssono com o cosmos, a força do colonialismo, as formas de resistência, a imaginação e o mundo, o corpo e a imaginação: foi uma Flip memorável, tão remota quanto próxima.
Termino este primeiro de vários relatos com uma imagem dos nossos tempos: o sorriso sob a máscara!
Foi (e é) só o começo.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integrou o coletivo de curadores da Flip 2021.
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