Degolarratos (Scannasurice) é uma peça do dramaturgo italiano Enzo Moscato, encenada poucos anos após o terremoto de Irpinia, de 1980, e constitui-se como metáfora do desmoronamento não apenas físico, mas também humano e social, que atingiu Nápoles e toda a sua cultura milenar na década que se seguiu. Na visão de Enzo Moscato, intitulado hoje “poeta da cena italiana”, o trauma coletivo do terremoto provoca um corte, seco e definitivo, com a língua, a música, a cultura e a identidade napolitana do passado.
Dessa maneira, o Terremoto e Nápoles se tornam elementos altamente simbólicos e universais na peça, contando não apenas o trauma físico e real desse microcosmo, mas representando também, sobretudo, um derruimento moral que a dramaturgia vai construindo e alargando em macrocosmo. O Terremoto na peça ganha a força corrosiva da homologação global, e Nápoles representa o retrato de uma cidade genérica, que se conforma aos desastres provocados pela calamidade natural.
Por meio da peça, o autor propõe um novo uso da língua napolitana, isto é, anti-musical e anti-tradicional, assim como uma Nápoles anti-bandolim e anti-cartão postal, como se, após o choque geral, não fosse mais possível conduzir a língua como os mestres do passado. A dramaturgia moscatiana representa um dos primeiros sinais de ruptura, profunda e irreversível, com a consagrada “Tradição Napolitana”.
Degolarratos é um monodrama, cujo personagem é uma travesti que vive em um subterrâneo desolado, nos Quartieri Spagnoli. A estrutura dramatúrgica da peça alterna momentos distintos nos quais o protagonista, o “Degolarratos”, dialoga com os ratos, metáfora dos napolitanos, os quais, perante ao real sismo de 1980, não se uniram para reconstruir e curar as feridas da cidade e da sociedade. “Degolarratos” dialoga também com um estudante de filosofia que vive no andar de cima, cuja presença se dá apenas por evocação, e que representa o elemento positivo da arquitetura dramatúrgica, como uma possibilidade de redenção futura. Em outros momentos, extremamente visionários e oníricos, são professadas soluções impiedosas ao câncer que apodrece a cidade.
Esta tradução, inédita no Brasil, visa preencher a lacuna e dar a conhecer a obra de um dos dramaturgos mais originais do panorama artístico-teatral europeu, cuja proposta é marcada por uma galáxia febril e caótica de línguas e de invenções cênicas, que, desde do início, o colocaram sob a atenção do público e da crítica internacional. Além da peça, o livro traz uma entrevista inédita com o autor, realizada pela atriz e tradutora do livro Anita Mosca.