Fantasmas, separação, memória e apagamento, fantasia, fotografias, saber fotográfico, desejo, pobreza, decote, batom e paetês, beleza, aparência, vó e vão, visitas, generosidade, escrita… “Sigo em busca de uma imagem síntese que traduza com exatidão a essência luminosa e desafiadora da avó”, escreve Flávia para dar um sentido ao que vai acontecendo nestas páginas. Entre as conversas e o silêncio, nas visitas periódicas à avó em uma casa de repouso, a busca se realiza por meio de fragmentos tateantes, e também de uma assertividade generosa. Diagnosticada com Alzheimer, começa a se apagar a pessoa fascinante que foi essa mulher caleidoscópica, nascida em 1930, destinada a ser o anjo do lar – como diria Virginia Woolf –, mas cuja força a faz escapar, não sem violência, dessa armadilha. Como diz uma amiga da narradora: “Enquanto uma se esquece, a outra se lembra”. Essa outra, a neta que sempre se sentiu distanciada dessa mulher, começa a interrogar a vida da avó, e são justamente as imperfeições dela que levam a uma compreensão inesperada; olha-se para aquilo que provocava rejeição e entende-se a complexidade desse sentimento. Olhar é também ser olhada. “Não sou mais a menina que, aos olhos da avó, não sabia se arrumar direito”. Ver-se através dessa outra – de suas cores, suas roupas, seu léxico, suas manias – é também se aproximar corajosamente de uma pergunta sobre o que significa, hoje ainda, ser uma mulher. Nessa troca de olhares que a memória proporciona, Coisas presentes demais se torna um lugar para amar a avó – esse amor que parecia não existir e que aqui se torna verdade.
_Paloma Vidal