A consolidação da crítica epistolográfica, no âmbito dos estudos literários, pressupõe dois movimentos articulados: a difusão de expressivo cabedal de correspondências, em edições fidedignas e anotadas, assim como a definição de consistentes ferramentas interpretativas. Leandro Garcia Rodrigues, professor de teoria literária e literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais, engaja-se notavelmente nessas duas frentes, concorrendo para a potencialização das abordagens do gênero epistolar no Brasil.
Cartas que falam – Ensaios sobre epistolografia colige escritos de natureza e de épocas diversas em três núcleos: “Epistolografia | Ensaios”, “Cartas para Alceu Amoroso Lima” e “Cartas do modernismo”. Os textos espelham os principais interesses do pesquisador e a sua trajetória intelectual, bem como evidenciam os desafios enfrentados por aqueles que se devotam à investigação no terreno da epistolografia, por quem se exige “um olhar e a práxis (…) plurais, intertextuais, interdisciplinares, desierarquizados, desterritorializados”.
Os estudos reunidos neste livro sinalizam abrangentes possibilidades de análise da correspondência de escritores e escritoras. A carta, gênero discursivo híbrido, fricciona-se com a crônica, a crítica, o ensaio, a autobiografia, a ficção, a poesia etc. Posta em circulação, fomenta fervilhantes redes de sociabilidade, ensejando uma “espécie de ‘ágora’ de debates” enraizados no ideológico e no político. O autor ilumina os intercâmbios epistolares no modernismo brasileiro – seu vigor, suas tensões –, debruçando-se sobre diálogos que forjam consensos e rivalidades, que modelam projetos coletivos. Mostra igualmente a riqueza das cartas enquanto laboratório e testemunho da criação literária.
Nesses frutíferos escritos, acompanha-se a constituição (e a singularidade) dos vínculos epistolares, seus pactos e hierarquizações, nas múltiplas geometrias da amizade no campo letrado. Em realce, a epistolografia édita e inédita do pensador católico Alceu Amoroso Lima, extraordinária em muitos sentidos, firmando os laços entre literatura e religião. A contrapeso, a vultosa correspondência de Mário de Andrade.
Leandro Garcia almeja, em suas proposições críticas, a ampliação das fronteiras da teoria literária, para que esta possa também abarcar as cartas (e outras escritas de si), atentando-se à complexa reversibilidade vida-obra, para além dos biografismos ingênuos. Provoca, ainda, a necessária revisão do cânone literário. De fato, ou a história da literatura se reinventa, em face da legitimidade das demandas identitárias, tanto quanto da vitalidade da documentação preservada em arquivos (cartas, manuscritos, marginália em livros etc.), ou, em razão da ineficácia, perderá inteiramente a sua função.
Marcos Antonio de Moraes (IEB-USP)