A História da Literatura, enquanto disciplina, tende a fixar os autores em nichos bem demarcados, dos quais eles raramente podem fugir. A melhor crítica é a que toma de assalto essa posição, em nome da própria força da literatura, como diria Lionel Trilling. Mas o mesmo crítico nos adverte que essa força, ao atacar uma posição historicista, não reside na anacrônica presentificação do passado, senão no reconhecimento de sua preteritude (pastness). Um autor, completa Trilling, é nosso contemporâneo somente quando compreendemos o quanto ele era um homem de seu tempo. Esse nosso senso do passado é o que o torna nosso contemporâneo.
Não é senão essa a radical mudança crítica que Eduardo Veras opera sobre a compreensão da poética de Alphonsus de Guimaraens, com uma análise estrutural do Setenário das Dores de Nossa Senhora. Se a História da Literatura fixava o autor como o “solitário de Mariana”; ou como um místico, cuja poesia se explicaria pela biografia; ou, no máximo, como uma eventual fonte de inspiração semipassadista para os jovens Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, o autor deste estudo demonstra, com acurado senso de análise textual, a autoconsciência de Alphonsus, que a imprimiu tanto na arquitetura do Setenário, quanto no comportamento da voz poética no interior dos textos.
É no “espaço apertado” entre a experiência mística falha e a consciência do poeta em relação à linguagem que Alphonsus realiza a sua poesia, como demonstra o agudo analista. Os dois polos, assim, se conjugam: a experiência mística se faz incompleta, exatamente porque mediada pela consciência da linguagem. Veras aproxima esse duplo componente da poesia de Alphonsus do que Hugo Friedrich denomina a “despersonalização” do poeta moderno. Alphonsus pode e deve, portanto, ser aproximado de Baudelaire, Mallarmé, George e Cruz e Sousa, não como repetidor de traços estilísticos, mas como autor de uma obra que encarna uma “…vivência particular e incomparável da agonia que caracteriza a poesia de seu tempo”. E, por esse movimento da análise, o autor faz de Alphonsus de Guimaraens nosso verdadeiro contemporâneo.
Marcus Vinicius de Freitas [UFMG]