“Pois qual explicação podemos dar para que este Batendo pasto, escrito em 1982, seja o primeiro inédito de Maria Lúcia Alvim em quarenta anos? Como passamos quatro décadas sem o trabalho de uma de nossas excelentes poetas do pós-guerra, com uma obra múltipla, que passa pela tradição do soneto, pela experimentação com a fala do quotidiano, com o minimalismo de seus epigramas, e ainda o caudaloso histórico de tantos poemas daquela obra-prima que é o Romanceiro de Dona Beja (1979)?
(…)
Escrito em 1982 na Fazenda do Pontal em Minas Gerais, o livro vem marcado por um vocabulário do campo, da vida específica que lá se desenrola unindo os ritmos das refeições ao das colheitas, dos seres humanos a outras espécies que com eles habitam tais espaços: vacas, cavalos. Mas o livro não celebra qualquer utilitarismo comercial: tudo é digno, tudo vive e compartilha espaço e seu oxigênio, os morcegos, as galinhas e os pavões, os gatos e as moscas, ou, no Reino Vegetal, tanto o arroz como o capim. Essa é uma das grandes belezas do livro, que marcará a mescla de registros ao longo dos poemas, nos quais a palavra precisa por vezes requer a pobreza, por vezes a riqueza.”
Ricardo Domeneck
“Batendo pasto é tudo que já havia de versatilidade, vigor e experimento, porém ampliado: é litania delirante e apego à palavra justa a um só tempo, como vemos no alucinante “Litania da Lua e do Pavão”, como que fundindo contraditórios. É tradição lírica-amorosa, como em “O amor / soltou do meu corpo” e erótica, como em “Seio”. É um olho arregalado nos experimentos formais das vanguardas urbanas do século XX (estética do fragmento, cortes abruptos, sintaxes fraturadas etc.) e uma imersão de vida no mundo rural, no gosto de suas palavras, nos contornos e contorcionismo desta língua em muitas línguas, como em “A obsessão estalava sobre o trempe”, para ficarmos em apenas um exemplo. É também o multilinguismo com inglês e francês, que já havia se talhado nos livros anteriores e aparece desde o primeiro poema aqui. É a metapoesia opaca e provocadora, como em “P o e s i a”, a revisita muito singular a Emily Dickinson, como em toda a série “Torrencial”, a retomada sempre virtuose dos sonetos (“Eu era assim no dia dos meus anos” é um caso impressionante de simplicidade e sofisticação na antirrima sistemática vinculada aos modos de ser no tempo), o aforismo certeiro (veja-se o poema “Angelim”, com apenas o verso “O carinho é um outro caminho do corpo”). Enfim, o movimento entre o riso, ora desbragado (como em “Íngua” e “Stella”), ora contido e sarcástico, e o pensamento rigoroso (“Era uma tarde frese, empelicada”). Não é nenhum exagero afirmar que Batendo pasto reúne e depura o que havia de melhor na poesia dos anos 1980 e que, mesmo inédito por mais de trinta anos, sai agora com a força de um livro escrito na semana passada. Maria Lúcia Alvim está vivíssima, resta um público leitor igualmente vivo.”
Guilherme Gontijo Flores