Quando me perguntam por que eu abri uma livraria, eu respondo que foi para trabalhar com o produto que eu mais gosto na minha vida. Primeiro de tudo, sou um leitor, foi assim que a vida fez sentido para mim e é assim que consigo entender o que acontece e o que deixa de acontecer neste mundão velho sem porteira em que vivemos: lendo.
Como nossos pais
Minha mãe era professora de língua portuguesa e de literatura, e esta profissão dela certamente influenciou nos hábitos de leitura do pessoal lá de casa. Nós todos, quatro crianças, crescemos em meio aos inúmeros livros que ela recebia das editoras e outros tantos que ela e meu pai compravam, porque meu pai também sempre foi um leitor.
Uma imagem difícil de esquecer do quarto dos meus pais eram as duas mesas de cabeceira, uma de cada lado da cama de casal, com pequenas pilhas de livros.
Nas estantes lá de casa havia muita literatura brasileira. Era o principal gênero, desde os românticos até alguns contemporâneos – contemporâneos de meus pais, claro. Alguns autores eram reverenciados: Machado de Assis, Fernando Pessoa e Edgar Allan Poe, pela minha mãe; Erico Verissimo, Mario Vargas Llosa e Mário Palmério, pelo meu pai.
‘O encontro marcado’
Até o dia em que eu descobri que junto da coleção Para Gostar de Ler tinha um exemplar de O encontro marcado, do Fernando Sabino, que eu precisava ler para a escola. Era 1986, eu cursava o segundo ano do colegial, e tinha em casa o livro que a professora pedia. Um exemplar seis anos mais velho que eu, que minha mãe havia comprado ainda solteira. Era costume dela escrever o nome a lápis na segunda capa, ou na guarda, no frontispício e ainda em páginas aleatórias no meio do volume.
Foi com esse livro que eu me descobri leitor. Dali para frente a coisa ficou séria, e um dia, conversando com minha irmã, falei para ela que eu queria abrir uma livraria. Eu estava precisando mudar de profissão, encontrar algo que me devolvesse o prazer de encarar a rotina de uma segunda-feira e até mesmo o trabalho aos sábados. Pensei em tanta coisa… mas minha mulher, sábia como ela só, vaticinou: vai, Adauto, ser livreiro na vida. Ela não falou exatamente assim, mas o Carlos que a minha mãe também adorava e vinha me acompanhando os passos gauches entendeu assim. E o anjo desentortou! E minha irmã topou na hora compartilhar a empreitada comigo.
Adauto e livreiros da cabeceira.
Da cabeceira à estante de Dalila
Ideia aceita, partimos para o planejamento, afinal precisávamos honrar nossas profissões na hora de pensarmos nosso negócio. Minha irmã, advogada; eu, especialista em pesquisa de mercado. Levantei dados macroeconômicos e fui estudar no Sebrae. Entrevistei livreiros e leitores, e com eles aprendi que uma livraria é um negócio de proximidade, de diálogo com o bairro e com seu entorno, é um espaço de férias para quem está no meio de um dia corrido. E assim montamos a Livraria Cabeceira.
A influência de nossa mãe nesta escolha é enorme. Tão enorme que dedicamos uma estante a ela, colocamos uma foto de quando ela se formou professora e a ladeamos com os livros dos escritores e outros artistas que ela nos ensinou a admirar. É quase um pequeno altar que nos protege e nos orienta, marcando a origem do nosso prazer com a leitura.
Uma das origens para o nome da nossa livraria é que o termo “cabeceira” significa também o lugar das nascentes – a cabeceira de um rio é onde nascem as águas limpas e puras que vão dar vida àquele curso d’água. É assim que enxergamos os livros, como olhos d’água que limpam a nossa visão.
O livro pode estar na cabeceira da cama, pode fazer a cabeça de quem o lê, e sempre será a cabeceira das águas que alimentam as almas. O livro, assim como a água, é pura vida.
Adauto Leva é filósofo, tendo trabalhado por 25 anos com pesquisa de mercado e de opinião pública. Escritor, venceu o prêmio Nascente USP/Abril 2002 com o romance Primeiro do ano. Foi sócio da Grua Livros entre 2007 e 2008. Em maio de 2022, junto com sua irmã, a advogada Fabíola Nabuco Leva, abriu a Livraria Cabeceira em São Paulo.
RELICÁRIO EM CÍRCULOS por Pedro Meira Monteiro Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário: Rel. Caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados. 2. Caixa ou baú onde se guardam objetos de grande valor afetivo. 3. Bolsinha com relíquias …
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
URUÇUMIRIM VIVE por Rafael Freitas da Silva Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade …
UM ENCONTRO DE ESTAÇÕES por Luciene Guimarães Marguerite Duras viveu 81 anos e 1996 foi o ano de sua morte. Naquela época, talvez eu a confundisse com outra escritora, a belga Marguerite Yourcenar, autora de Memórias de Adriano, livro que aparecia na lista de mais vendidos, mas que nunca me ocorrera ler. Naturalmente, não …
COLUNA LIVRE
“VAI, ADAUTO, SER LIVREIRO NA VIDA”
por Adauto Leva, da Livraria Cabeceira
Como nossos pais
Minha mãe era professora de língua portuguesa e de literatura, e esta profissão dela certamente influenciou nos hábitos de leitura do pessoal lá de casa. Nós todos, quatro crianças, crescemos em meio aos inúmeros livros que ela recebia das editoras e outros tantos que ela e meu pai compravam, porque meu pai também sempre foi um leitor.
Uma imagem difícil de esquecer do quarto dos meus pais eram as duas mesas de cabeceira, uma de cada lado da cama de casal, com pequenas pilhas de livros.
Nas estantes lá de casa havia muita literatura brasileira. Era o principal gênero, desde os românticos até alguns contemporâneos – contemporâneos de meus pais, claro. Alguns autores eram reverenciados: Machado de Assis, Fernando Pessoa e Edgar Allan Poe, pela minha mãe; Erico Verissimo, Mario Vargas Llosa e Mário Palmério, pelo meu pai.
‘O encontro marcado’
Até o dia em que eu descobri que junto da coleção Para Gostar de Ler tinha um exemplar de O encontro marcado, do Fernando Sabino, que eu precisava ler para a escola. Era 1986, eu cursava o segundo ano do colegial, e tinha em casa o livro que a professora pedia. Um exemplar seis anos mais velho que eu, que minha mãe havia comprado ainda solteira. Era costume dela escrever o nome a lápis na segunda capa, ou na guarda, no frontispício e ainda em páginas aleatórias no meio do volume.
Foi com esse livro que eu me descobri leitor. Dali para frente a coisa ficou séria, e um dia, conversando com minha irmã, falei para ela que eu queria abrir uma livraria. Eu estava precisando mudar de profissão, encontrar algo que me devolvesse o prazer de encarar a rotina de uma segunda-feira e até mesmo o trabalho aos sábados. Pensei em tanta coisa… mas minha mulher, sábia como ela só, vaticinou: vai, Adauto, ser livreiro na vida. Ela não falou exatamente assim, mas o Carlos que a minha mãe também adorava e vinha me acompanhando os passos gauches entendeu assim. E o anjo desentortou! E minha irmã topou na hora compartilhar a empreitada comigo.
Adauto e livreiros da cabeceira.
Da cabeceira à estante de Dalila
Ideia aceita, partimos para o planejamento, afinal precisávamos honrar nossas profissões na hora de pensarmos nosso negócio. Minha irmã, advogada; eu, especialista em pesquisa de mercado. Levantei dados macroeconômicos e fui estudar no Sebrae. Entrevistei livreiros e leitores, e com eles aprendi que uma livraria é um negócio de proximidade, de diálogo com o bairro e com seu entorno, é um espaço de férias para quem está no meio de um dia corrido. E assim montamos a Livraria Cabeceira.
A influência de nossa mãe nesta escolha é enorme. Tão enorme que dedicamos uma estante a ela, colocamos uma foto de quando ela se formou professora e a ladeamos com os livros dos escritores e outros artistas que ela nos ensinou a admirar. É quase um pequeno altar que nos protege e nos orienta, marcando a origem do nosso prazer com a leitura.
Uma das origens para o nome da nossa livraria é que o termo “cabeceira” significa também o lugar das nascentes – a cabeceira de um rio é onde nascem as águas limpas e puras que vão dar vida àquele curso d’água. É assim que enxergamos os livros, como olhos d’água que limpam a nossa visão.
O livro pode estar na cabeceira da cama, pode fazer a cabeça de quem o lê, e sempre será a cabeceira das águas que alimentam as almas. O livro, assim como a água, é pura vida.
Adauto Leva é filósofo, tendo trabalhado por 25 anos com pesquisa de mercado e de opinião pública. Escritor, venceu o prêmio Nascente USP/Abril 2002 com o romance Primeiro do ano. Foi sócio da Grua Livros entre 2007 e 2008. Em maio de 2022, junto com sua irmã, a advogada Fabíola Nabuco Leva, abriu a Livraria Cabeceira em São Paulo.
Posts relacionados
COLUNA ASA DA PALAVRA
RELICÁRIO EM CÍRCULOS por Pedro Meira Monteiro Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário: Rel. Caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados. 2. Caixa ou baú onde se guardam objetos de grande valor afetivo. 3. Bolsinha com relíquias …
COLUNA LIVRE
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
COLUNA PINDORAMA
URUÇUMIRIM VIVE por Rafael Freitas da Silva Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
UM ENCONTRO DE ESTAÇÕES por Luciene Guimarães Marguerite Duras viveu 81 anos e 1996 foi o ano de sua morte. Naquela época, talvez eu a confundisse com outra escritora, a belga Marguerite Yourcenar, autora de Memórias de Adriano, livro que aparecia na lista de mais vendidos, mas que nunca me ocorrera ler. Naturalmente, não …