Minha culpa é mítica. O corpo pode ser de homem, mas eu sou, essencialmente, um touro. Ou será o contrário? Tenho no topo da cabeça este par de chifres cujo peso estorvaria um homem normal, mais um par de ventas largas e pelos que me recobrem todo o rosto, do pescoço até a raiz dos chifres. Isto explica parte de mim.
Meu ponto de vista é o do labirinto. Observadas daqui as coisas do mundo dos homens parecem caóticas – esse mundo lá fora, de que fui banido por conta da minha origem e da minha condição, mas que já não me interessa ou seduz. Do ponto de vista do labirinto, tudo o que ultrapassa esta geometria interna é confuso. Somente entre corredores que não vão dar em nada ou que vão dar em si mesmos, que se abrem para salas que se abrem para outras múltiplas salas de onde se bifurcam novos corredores que se entrecruzam e cruzam novas salas, somente nesta ordem eu me sinto seguro. O labirinto, sendo sempre variável, é sempre o mesmo.
Nem o sacrifício eu queria. Devorar essas moças e esses moços que me mandam de quando em quando. Somos herbívoros, touro e homem. Veja estes dentes, estas mãos. Mandam esses jovens porque sem crime não haveria história, porque o meu degredo no centro de um labirinto por si só não seria suficiente. Mandam esses jovens para que em algum momento o herói se justifique: o que seria dele sem mim?
O herói! Tão bem que o conheço. O herói que virá libertar o labirinto e o mundo de mim – eu, híbrido monstro, violento sem sê-lo, fruto de um amor interdito e sem recato entre uma mulher e um touro branco. O que sabe esse herói acerca do amor, da impossibilidade do amor, da absoluta paz de um touro branco poupado ao sacrifício, da punição injustificada, da solidão de um rebento híbrido condenado ao desterro?
Sou essencialmente um touro. Sou essencialmente um homem. Mas por não poderem chegar à totalidade de mim eles me matam: eis que vem aí o herói, esse sórdido, com os seus estratagemas, pronto para assassinar e sair ileso do labirinto e ser comemorado pelos séculos. Somente assim ganho uma história. Minha culpa é mítica. Minha morte, mais estúpida que a do mais estúpido dos mortais.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
POEMAS DE VIDA por Adriana Lisboa “entrei no mundo de mãos vazias saio dele descalço minha chegada, minha partida dois acontecimentos simples que se enredaram” Esses versos foram escritos pelo poeta e monge zen japonês Kozan Ichikyo em 1360. Consta que ele reuniu os alunos no momento da sua morte, disse que deveriam …
NARRAR A VIDA por Ana Holanda Levei meu pai, um senhor de 86 anos, para fazer uma endoscopia. Quando o deixei em casa, ele ainda sentia sono por conta da sedação do exame. Comeu pouco e foi deitar. No final da tarde, passei novamente em sua casa para ver como estava. Dormindo, disse categoricamente …
ADRIENNE RICH & ANNE SEXTON Presença e poesia Nascida em 16 de maio de 1929, Adrienne Cecile Rich foi uma poeta, ensaísta e ativista feminista americana. Recebeu diversos prêmios literários, como o National Book Award, e foi reconhecida como uma das autoras mais influentes da segunda metade do século XX – dando voz à luta …
NOSSOS 8 ANOS DE LIVROS por Maíra Nassif [Este texto foi escrito pela editora Maíra Nassif, no dia 9 de outubro de 2021, aniversário de 8 anos da Relicário] Devo dizer que fiquei bem contente pelo aniversário de 8 anos da Relicário cair num sábado. HOJE! Isso porque posso estar aqui, sentada …
COLUNA ALFAIATARIA
MINOTAURO
por Adriana Lisboa
Meu ponto de vista é o do labirinto. Observadas daqui as coisas do mundo dos homens parecem caóticas – esse mundo lá fora, de que fui banido por conta da minha origem e da minha condição, mas que já não me interessa ou seduz. Do ponto de vista do labirinto, tudo o que ultrapassa esta geometria interna é confuso. Somente entre corredores que não vão dar em nada ou que vão dar em si mesmos, que se abrem para salas que se abrem para outras múltiplas salas de onde se bifurcam novos corredores que se entrecruzam e cruzam novas salas, somente nesta ordem eu me sinto seguro. O labirinto, sendo sempre variável, é sempre o mesmo.
Nem o sacrifício eu queria. Devorar essas moças e esses moços que me mandam de quando em quando. Somos herbívoros, touro e homem. Veja estes dentes, estas mãos. Mandam esses jovens porque sem crime não haveria história, porque o meu degredo no centro de um labirinto por si só não seria suficiente. Mandam esses jovens para que em algum momento o herói se justifique: o que seria dele sem mim?
O herói! Tão bem que o conheço. O herói que virá libertar o labirinto e o mundo de mim – eu, híbrido monstro, violento sem sê-lo, fruto de um amor interdito e sem recato entre uma mulher e um touro branco. O que sabe esse herói acerca do amor, da impossibilidade do amor, da absoluta paz de um touro branco poupado ao sacrifício, da punição injustificada, da solidão de um rebento híbrido condenado ao desterro?
Sou essencialmente um touro. Sou essencialmente um homem. Mas por não poderem chegar à totalidade de mim eles me matam: eis que vem aí o herói, esse sórdido, com os seus estratagemas, pronto para assassinar e sair ileso do labirinto e ser comemorado pelos séculos. Somente assim ganho uma história. Minha culpa é mítica. Minha morte, mais estúpida que a do mais estúpido dos mortais.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
Posts relacionados
COLUNA ALFAIATARIA
POEMAS DE VIDA por Adriana Lisboa “entrei no mundo de mãos vazias saio dele descalço minha chegada, minha partida dois acontecimentos simples que se enredaram” Esses versos foram escritos pelo poeta e monge zen japonês Kozan Ichikyo em 1360. Consta que ele reuniu os alunos no momento da sua morte, disse que deveriam …
COLUNA LIVRE
NARRAR A VIDA por Ana Holanda Levei meu pai, um senhor de 86 anos, para fazer uma endoscopia. Quando o deixei em casa, ele ainda sentia sono por conta da sedação do exame. Comeu pouco e foi deitar. No final da tarde, passei novamente em sua casa para ver como estava. Dormindo, disse categoricamente …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
ADRIENNE RICH & ANNE SEXTON Presença e poesia Nascida em 16 de maio de 1929, Adrienne Cecile Rich foi uma poeta, ensaísta e ativista feminista americana. Recebeu diversos prêmios literários, como o National Book Award, e foi reconhecida como uma das autoras mais influentes da segunda metade do século XX – dando voz à luta …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
NOSSOS 8 ANOS DE LIVROS por Maíra Nassif [Este texto foi escrito pela editora Maíra Nassif, no dia 9 de outubro de 2021, aniversário de 8 anos da Relicário] Devo dizer que fiquei bem contente pelo aniversário de 8 anos da Relicário cair num sábado. HOJE! Isso porque posso estar aqui, sentada …