Esses versos foram escritos pelo poeta e monge zen japonês Kozan Ichikyo em 1360. Consta que ele reuniu os alunos no momento da sua morte, disse que deveriam enterrar seu corpo sem qualquer tipo de homenagem ou cerimônia, pegou um pincel de caligrafia, escreveu esses versos e morreu sentado.
A prática japonesa de escrever jisei (poemas de morte) vem desde o século VII. Os versos são uma espécie de despedida da vida – enigmáticos, às vezes, e mesmo ambivalentes. Há uma beleza e uma tristeza em igual medida no poema de Kozan Ichikyo. O grande Matsuo Bashô, que morreu em 1694, escreveu: “Adoeço em viagem/ meus sonhos erram/ por campos ressequidos”. E Mishima, antes de cometer o suicídio ritual dos samurais, em 1970: “Sopra leve tormenta noturna/ e diz: ‘cair é a essência da flor’/ precedendo aqueles que hesitam”. Moriya Sen’an, em 1838, teve bom humor: “Quando eu morrer me enterrem/ sob um barril de vinho/ numa taverna. Com sorte/ o tonel há de vazar”.
Costumamos ficar um tanto comprometidos com nossas manias de grandeza, de modo que talvez versos como os de Kozan Ichikyo possam parecer quase truísmo. “Entrei no mundo de mãos vazias e saio dele descalço”: isso bem poderia estar no para-choque de um caminhão, comendo poeira pelas estradas. Além disso, ter entrado no mundo descalça e sair dele de mãos vazias não me exime da responsabilidade de encontrar o que calçar entre um extremo e outro. Minhas mãos, ademais, às vezes carregam o que escolho, às vezes, não. Não raro, mal dou conta do tanto que as ocupa. Noutros momentos, estão vazias e isso dói: eu gostaria de preenchê-las. Mas não importa. Não importa que cair seja a essência da flor, como escreveu Mishima, ou que o bom da vida seja rir dela (ou com ela), querendo passar a eternidade do esquecimento debaixo de um barril de vinho, com Moriya Sen’an. A verdade é que de truísmo os versos de Kozan Ichikyo não têm nada e que, em sua radical sutileza, eles reafirmam a onipotência de estar vivo – to be alive is power, escreveu, noutra clave, Emily Dickinson.
Neste momento, porém, o que me mais me comove nos versos do poeta e monge japonês é que eles parecem falar de uma espécie de direito revogado. Há criminosos no poder afirmando cotidianamente que a vida é outra coisa: não simples, mas barata, trivial, descartável. Toda a diferença do mundo entre a desafetação com que Kozan Ichikyo se despede da vida e o descarte da vida consumado por aqueles que deveriam cuidar de nós – afinal, são pagos para fazer isso – mas nos expõem à sordidez e ao aviltamento dos seus desmandos.
Minha chegada, minha partida: dois acontecimentos simples que se enredaram. Nesse enredo, nossos sonhos andam vagando, com os de Bashô, por campos ressequidos. Mas nada de rasgar nossos intestinos em suicídio ritual. Entramos no mundo de mãos vazias e saímos dele descalços – é fato. Mas que não seja para já. Antes do jisei final, ainda há poemas por escrever, trabalhos por realizar. Neste momento, são muitos, e começam por desempossar quem abomina a vida e que, portanto, jamais deveria ter direito de decisão sobre a nossa.
Adriana Lisboaé autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Rakushisha, Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos contos de O sucesso e dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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COLUNA ALFAIATARIA
POEMAS DE VIDA
por Adriana Lisboa
“entrei no mundo de mãos vazias
saio dele descalço
minha chegada, minha partida
dois acontecimentos simples
que se enredaram”
Esses versos foram escritos pelo poeta e monge zen japonês Kozan Ichikyo em 1360. Consta que ele reuniu os alunos no momento da sua morte, disse que deveriam enterrar seu corpo sem qualquer tipo de homenagem ou cerimônia, pegou um pincel de caligrafia, escreveu esses versos e morreu sentado.
A prática japonesa de escrever jisei (poemas de morte) vem desde o século VII. Os versos são uma espécie de despedida da vida – enigmáticos, às vezes, e mesmo ambivalentes. Há uma beleza e uma tristeza em igual medida no poema de Kozan Ichikyo. O grande Matsuo Bashô, que morreu em 1694, escreveu: “Adoeço em viagem/ meus sonhos erram/ por campos ressequidos”. E Mishima, antes de cometer o suicídio ritual dos samurais, em 1970: “Sopra leve tormenta noturna/ e diz: ‘cair é a essência da flor’/ precedendo aqueles que hesitam”. Moriya Sen’an, em 1838, teve bom humor: “Quando eu morrer me enterrem/ sob um barril de vinho/ numa taverna. Com sorte/ o tonel há de vazar”.
Costumamos ficar um tanto comprometidos com nossas manias de grandeza, de modo que talvez versos como os de Kozan Ichikyo possam parecer quase truísmo. “Entrei no mundo de mãos vazias e saio dele descalço”: isso bem poderia estar no para-choque de um caminhão, comendo poeira pelas estradas. Além disso, ter entrado no mundo descalça e sair dele de mãos vazias não me exime da responsabilidade de encontrar o que calçar entre um extremo e outro. Minhas mãos, ademais, às vezes carregam o que escolho, às vezes, não. Não raro, mal dou conta do tanto que as ocupa. Noutros momentos, estão vazias e isso dói: eu gostaria de preenchê-las. Mas não importa. Não importa que cair seja a essência da flor, como escreveu Mishima, ou que o bom da vida seja rir dela (ou com ela), querendo passar a eternidade do esquecimento debaixo de um barril de vinho, com Moriya Sen’an. A verdade é que de truísmo os versos de Kozan Ichikyo não têm nada e que, em sua radical sutileza, eles reafirmam a onipotência de estar vivo – to be alive is power, escreveu, noutra clave, Emily Dickinson.
Neste momento, porém, o que me mais me comove nos versos do poeta e monge japonês é que eles parecem falar de uma espécie de direito revogado. Há criminosos no poder afirmando cotidianamente que a vida é outra coisa: não simples, mas barata, trivial, descartável. Toda a diferença do mundo entre a desafetação com que Kozan Ichikyo se despede da vida e o descarte da vida consumado por aqueles que deveriam cuidar de nós – afinal, são pagos para fazer isso – mas nos expõem à sordidez e ao aviltamento dos seus desmandos.
Minha chegada, minha partida: dois acontecimentos simples que se enredaram. Nesse enredo, nossos sonhos andam vagando, com os de Bashô, por campos ressequidos. Mas nada de rasgar nossos intestinos em suicídio ritual. Entramos no mundo de mãos vazias e saímos dele descalços – é fato. Mas que não seja para já. Antes do jisei final, ainda há poemas por escrever, trabalhos por realizar. Neste momento, são muitos, e começam por desempossar quem abomina a vida e que, portanto, jamais deveria ter direito de decisão sobre a nossa.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Rakushisha, Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos contos de O sucesso e dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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