A ideia não é nada original, mas às vezes eu penso em enviar uma carta a mim mesma, vinte, vinte e cinco anos atrás. É que foi um tempo de escolhas que eu não sabia que estava fazendo, opções que eu não via que tinha, amizades que eu não percebia que eram fortes ou fracas, desejos que eu não administrava direito, burrices que eu poderia ter evitado.
Se fosse possível enviar uma carta a mim mesma, já sei que eu teria a curiosidade de lê-la, mas também sei que talvez eu duvidasse muito do que eu mesma me dizia. Pode ser inclusive que eu fosse teimosa, cética, soberba, e preferisse achar que a eu do futuro não sabe nada. Oi? Quem ela pensa que é? Quem eu penso que sou? Quem penso que serei ou seria? Àquela altura, talvez eu achasse, com mais firmeza, que seria, que poderia ser em plenitude; hoje já sei que não. Como me avisar, afinal?
As dobras do tempo
Às vezes penso que uma carta talvez não resolvesse. Um áudio, quem sabe? Mas, além das dobras do tempo, que não me permitem a comunicação comigo lá, há ainda as tecnologias, que inexistem conforme essa dobra está mais aqui ou mais acolá. A Ana de hoje consegue enviar, mas a Ana de antes não podia receber uma mensagem de WhatsApp. Seria tão prático!
Talvez eu me dissesse para manter algumas escolhas: siga fazendo, mantenha o curso, pise firme, fale grosso que dá. Certamente eu me alertaria sobre coisas, eventos e pessoas: saia, desista, não vá, desfaça, desconvide, recuse, ignore, passe batida, revide. Mas será que eu seria capaz, àquela altura, da pessoa que sou hoje? Ou ao menos de me ouvir? Talvez tivéssemos um problema de comunicação mais profundo: serei capaz, hoje, de perceber e descrever minha frustração com isso e aquilo? E aquela menina determinada, mas ainda míope, entenderia?
Se algo pode incomodar uma pessoa, entre tantas e incontáveis coisas, é a sensação de que o próximo passo será em falso. Sinto isso desde que nasci. Tem a ver comigo, com aquela menina; tem a ver com esta mulher de hoje, uma outra; e tem a ver com um país que não deixa ninguém em paz. Futuro é uma palavra luxuosa. Viver, para aquela menina, tanto quanto para mim hoje, tem a ver com tocar um futuro.
A carta que não posso enviar a mim mesma… tento enviar ao meu filho de 17 anos. O que não pude me dizer, décadas atrás, e continuo não podendo hoje, eu tento dizer ao meu garoto, que não percebe direito as escolhas que faz, nos menores gestos, e que, pior que eu, não enxerga futuro nenhum. Não se vê adiante, não se mira em outro tempo. Sem dúvida, é mais frágil do que eu, que esperava, ao menos esperava.
Mas não sei se esperar era melhor. Talvez o tamanho da minha frustração seja muito maior do que o que meu garoto sentirá daqui a algumas décadas. Talvez ele esteja mais preparado para despromessas e desvirtuamentos do que eu pude estar, do que eu ainda estou. Talvez uma carta, afinal, não resolvesse nada, nem adiante, nem agora, nem depois. Talvez não seja mesmo o caso de avisar nada e deixar viver. Talvez só reste mesmo escrever para um alívio qualquer.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
PALAVRA VAGALUME por Pedro Meira Monteiro No texto anterior — o primeiro da minha coluna aqui no blog da Relicário — eu me referia a palavras que voam, pousam, descansam e se levantam novamente. A ideia era imaginar que as palavras possam flutuar num espaço de plena diversão, distantes ainda do compromisso de significar. …
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COLUNA MARCA PÁGINA
CARTA PARA A JOVEM EU
por Ana Elisa Ribeiro
Se fosse possível enviar uma carta a mim mesma, já sei que eu teria a curiosidade de lê-la, mas também sei que talvez eu duvidasse muito do que eu mesma me dizia. Pode ser inclusive que eu fosse teimosa, cética, soberba, e preferisse achar que a eu do futuro não sabe nada. Oi? Quem ela pensa que é? Quem eu penso que sou? Quem penso que serei ou seria? Àquela altura, talvez eu achasse, com mais firmeza, que seria, que poderia ser em plenitude; hoje já sei que não. Como me avisar, afinal?
As dobras do tempo
Às vezes penso que uma carta talvez não resolvesse. Um áudio, quem sabe? Mas, além das dobras do tempo, que não me permitem a comunicação comigo lá, há ainda as tecnologias, que inexistem conforme essa dobra está mais aqui ou mais acolá. A Ana de hoje consegue enviar, mas a Ana de antes não podia receber uma mensagem de WhatsApp. Seria tão prático!
Talvez eu me dissesse para manter algumas escolhas: siga fazendo, mantenha o curso, pise firme, fale grosso que dá. Certamente eu me alertaria sobre coisas, eventos e pessoas: saia, desista, não vá, desfaça, desconvide, recuse, ignore, passe batida, revide. Mas será que eu seria capaz, àquela altura, da pessoa que sou hoje? Ou ao menos de me ouvir? Talvez tivéssemos um problema de comunicação mais profundo: serei capaz, hoje, de perceber e descrever minha frustração com isso e aquilo? E aquela menina determinada, mas ainda míope, entenderia?
Se algo pode incomodar uma pessoa, entre tantas e incontáveis coisas, é a sensação de que o próximo passo será em falso. Sinto isso desde que nasci. Tem a ver comigo, com aquela menina; tem a ver com esta mulher de hoje, uma outra; e tem a ver com um país que não deixa ninguém em paz. Futuro é uma palavra luxuosa. Viver, para aquela menina, tanto quanto para mim hoje, tem a ver com tocar um futuro.
A carta que não posso enviar a mim mesma… tento enviar ao meu filho de 17 anos. O que não pude me dizer, décadas atrás, e continuo não podendo hoje, eu tento dizer ao meu garoto, que não percebe direito as escolhas que faz, nos menores gestos, e que, pior que eu, não enxerga futuro nenhum. Não se vê adiante, não se mira em outro tempo. Sem dúvida, é mais frágil do que eu, que esperava, ao menos esperava.
Mas não sei se esperar era melhor. Talvez o tamanho da minha frustração seja muito maior do que o que meu garoto sentirá daqui a algumas décadas. Talvez ele esteja mais preparado para despromessas e desvirtuamentos do que eu pude estar, do que eu ainda estou. Talvez uma carta, afinal, não resolvesse nada, nem adiante, nem agora, nem depois. Talvez não seja mesmo o caso de avisar nada e deixar viver. Talvez só reste mesmo escrever para um alívio qualquer.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
2 respostas para “COLUNA MARCA PÁGINA”
Carla Viana Coscarelli
Maravilhoso texto!
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