O poema se inscreve profundamente em sua língua. A densidade de relações que entrelaçam elementos formais, conteúdos semânticos e elementos temáticos enraízam o texto poético em sua “floresta linguística” – para retomar uma conhecida metáfora de Walter Benjamin em “A Tarefa do tradutor”. Assim, a poesia desafia a tradução e contribui para traçar as fronteiras de um território linguístico, de um “aqui”. Entretanto, a maioria d@s poetas são plurilíngues, frequentemente também traduzem, e a criação poética vem muitas vezes associada a vivências da pluralidade linguística capazes de instalar um “lá” na relação com a língua de escrita, que nem sempre é exclusivamente a materna.
Esta constatação é o ponto de partida da pesquisa pós-doutoral que realizo atualmente em estadia na França, junto à École Normale Supérieure (ENS-Ulm) com financiamento do CNPq. O ensaio em processo de escrita, que recebeu também um incentivo à criação literária do Centre National du Livre, instituição francesa, visa as diferentes configurações do “translíngue” na poesia contemporânea, e particularmente neste presente em que a globalização se intensifica com importantes fluxos de migrantes e refugiados, mas também com a generalização do recurso online.
A motivação para o ensaio que estou escrevendo vem também de minhas próprias experiências de escrita poética deslocada. Vivi mais de quinze anos em Paris, onde fiz minha tese de doutorado sobre Walter Benjamin. Durante muitos anos estive com frequência entre duas línguas aprendidas tardiamente: o alemão do autor que estudava e o francês, no qual escrevia prosa teórica. A poesia surgiu inicialmente como retorno à língua materna, depois de quase dez anos sem escrever em português. Mas quando esta odisseia parecia encerrada com meu retorno ao Brasil e a publicação de Bye bye Babel, meu primeiro livro de poesia, vieram alguns poemas em francês, e comecei a praticar a autotradução como recurso criativo. Também voltei a viver em Paris, ainda que provisoriamente.
Sombras longas foi quase inteiramente escrito durante a pandemia de Covid-19, que passei na França para estar perto de meu filho, aqui nascido e criado, sem deixar de dar aulas na PUC-Rio por via remota. A situação linguística foi a de um bilinguismo quotidiano intenso, gerando também escrita nas duas línguas. Sombras longas tem, assim, suas próprias sombras. Ombres longues, reconfiguração em francês do mesmo projeto temático, dá continuidade à escrita dupla de Bye bye Babel, que teve sua versão francesa também publicada em 2023 pela coleção “Al Dante” da editora Les presses du réel.
Na pesquisa atual, parto então do meu próprio ponto de vista, situado numa dada configuração da pluralidade linguística, para entrecruzar produções poéticas francófonas e lusófonas. Tenho lido autores e autoras de diferentes nacionalidades e origens étnicas – observo, aliás, que a produção indígena brasileira e a africana, tanto de expressão portuguesa quanto francesa, são bastante ricas em hibridações e práticas translíngues.
Do desejo de ampliar o alcance desta pesquisa, e pensar coletivamente essas experiências poéticas translíngues, veio a ideia para o ciclo de encontros “Entre línguas” em parceria com a Librairie EXC, em Paris. Especializada em poesia, EXC fica na charmosa Passage Molière, em frente à Maison de la poésie. É um lugar muito especial, que me encantou desde a primeira vez que lá estive, e conta com a excelente curadoria de Julien Viteau, também responsável pela editora Extrême contemporain.
O ciclo de cinco encontros, organizado em colaboração com o crítico Rodolphe Perez e com o escritor italiano Angelo Vannini, foi lançado no dia 20 de junho. Contamos com a presença, os testemunhos e as leituras d@s poetas: Marielle Anselmo, Vincent Broqua, Denise Desautels e Guillaume Métayer. Foi bastante surpreendente o grande interesse despertado. A livraria lotou! Recomeçamos em setembro com uma conversa sobre “escrever em outra língua”, reunindo as poetas Elke de Rijcke (belga) e Linda Maria de Baros (romena). São previstos ainda três encontros até janeiro de 2025 com os temas: “hibridação e crioulização”, “auto tradução e variação”, “geopolíticas da tradução”.
O objetivo é colocar questões, mais do que respondê-las, já que cada poeta se encontra num ponto de vista situado em relação à pluralidade das línguas.
Estaria a poesia relacionada a um aguçamento da consciência da pluralidade linguística? A criação poética engendra um olhar estrangeiro para a própria língua? O que é uma língua materna? O que acontece quando língua materna e língua de escrita divergem? Será que na tradução as línguas conversam?
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A Relicário estará na 21ª FESTA DO LIVRO DA USP! Todos os livros com 50% de desconto. Datas: 27, 28 e 29 de novembro, das 9h às 21h 30 de novembro, das 9h às 20h Local: Av. Prof. Mello Moraes, travessa C Cidade Universitária – São Paulo – SP
COLUNA LIVRE
LÍNGUA E POESIA
por Patrícia Lavelle
O poema se inscreve profundamente em sua língua. A densidade de relações que entrelaçam elementos formais, conteúdos semânticos e elementos temáticos enraízam o texto poético em sua “floresta linguística” – para retomar uma conhecida metáfora de Walter Benjamin em “A Tarefa do tradutor”. Assim, a poesia desafia a tradução e contribui para traçar as fronteiras de um território linguístico, de um “aqui”. Entretanto, a maioria d@s poetas são plurilíngues, frequentemente também traduzem, e a criação poética vem muitas vezes associada a vivências da pluralidade linguística capazes de instalar um “lá” na relação com a língua de escrita, que nem sempre é exclusivamente a materna.
Esta constatação é o ponto de partida da pesquisa pós-doutoral que realizo atualmente em estadia na França, junto à École Normale Supérieure (ENS-Ulm) com financiamento do CNPq. O ensaio em processo de escrita, que recebeu também um incentivo à criação literária do Centre National du Livre, instituição francesa, visa as diferentes configurações do “translíngue” na poesia contemporânea, e particularmente neste presente em que a globalização se intensifica com importantes fluxos de migrantes e refugiados, mas também com a generalização do recurso online.
A motivação para o ensaio que estou escrevendo vem também de minhas próprias experiências de escrita poética deslocada. Vivi mais de quinze anos em Paris, onde fiz minha tese de doutorado sobre Walter Benjamin. Durante muitos anos estive com frequência entre duas línguas aprendidas tardiamente: o alemão do autor que estudava e o francês, no qual escrevia prosa teórica. A poesia surgiu inicialmente como retorno à língua materna, depois de quase dez anos sem escrever em português. Mas quando esta odisseia parecia encerrada com meu retorno ao Brasil e a publicação de Bye bye Babel, meu primeiro livro de poesia, vieram alguns poemas em francês, e comecei a praticar a autotradução como recurso criativo. Também voltei a viver em Paris, ainda que provisoriamente.
Sombras longas foi quase inteiramente escrito durante a pandemia de Covid-19, que passei na França para estar perto de meu filho, aqui nascido e criado, sem deixar de dar aulas na PUC-Rio por via remota. A situação linguística foi a de um bilinguismo quotidiano intenso, gerando também escrita nas duas línguas. Sombras longas tem, assim, suas próprias sombras. Ombres longues, reconfiguração em francês do mesmo projeto temático, dá continuidade à escrita dupla de Bye bye Babel, que teve sua versão francesa também publicada em 2023 pela coleção “Al Dante” da editora Les presses du réel.
Na pesquisa atual, parto então do meu próprio ponto de vista, situado numa dada configuração da pluralidade linguística, para entrecruzar produções poéticas francófonas e lusófonas. Tenho lido autores e autoras de diferentes nacionalidades e origens étnicas – observo, aliás, que a produção indígena brasileira e a africana, tanto de expressão portuguesa quanto francesa, são bastante ricas em hibridações e práticas translíngues.
Do desejo de ampliar o alcance desta pesquisa, e pensar coletivamente essas experiências poéticas translíngues, veio a ideia para o ciclo de encontros “Entre línguas” em parceria com a Librairie EXC, em Paris. Especializada em poesia, EXC fica na charmosa Passage Molière, em frente à Maison de la poésie. É um lugar muito especial, que me encantou desde a primeira vez que lá estive, e conta com a excelente curadoria de Julien Viteau, também responsável pela editora Extrême contemporain.
O ciclo de cinco encontros, organizado em colaboração com o crítico Rodolphe Perez e com o escritor italiano Angelo Vannini, foi lançado no dia 20 de junho. Contamos com a presença, os testemunhos e as leituras d@s poetas: Marielle Anselmo, Vincent Broqua, Denise Desautels e Guillaume Métayer. Foi bastante surpreendente o grande interesse despertado. A livraria lotou! Recomeçamos em setembro com uma conversa sobre “escrever em outra língua”, reunindo as poetas Elke de Rijcke (belga) e Linda Maria de Baros (romena). São previstos ainda três encontros até janeiro de 2025 com os temas: “hibridação e crioulização”, “auto tradução e variação”, “geopolíticas da tradução”.
O objetivo é colocar questões, mais do que respondê-las, já que cada poeta se encontra num ponto de vista situado em relação à pluralidade das línguas.
Estaria a poesia relacionada a um aguçamento da consciência da pluralidade linguística? A criação poética engendra um olhar estrangeiro para a própria língua? O que é uma língua materna? O que acontece quando língua materna e língua de escrita divergem? Será que na tradução as línguas conversam?
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