Ganhar uma medalha olímpica é ser um herói, simplesmente isso. Gosto da antiga lenda grega que associa a criação dos Jogos Olímpicos à figura de Hércules quando da execução de seus 12 trabalhos impossíveis. Após completá-los com sua força descomunal, rapidez e astúcia sem igual, o herói mitológico teria construído um templo em homenagem a Zeus, seu pai. O stadium era o lugar onde os jogos da antiguidade grega aconteciam de quatro em quatro anos. Onde os homens tentavam ser como Hércules. Durante mais de mil anos essas festas e demonstrações eram realizadas na Grécia (aproximadamente dos anos de 700 a.C. a 400 d.C.) incluindo provas de força, lutas, corridas a pé e equestres com representantes de cada região do mar Egeu. Os vencedores eram louvados e imortalizados com poemas e estátuas. Os Jogos Olímpicos também eram cerimônias religiosas aos deuses gregos, em especial o já citado Zeus. Corpo e alma. Por isso, os campeões olímpicos da antiguidade certamente alcançavam o status “temporário” de semideuses, assim como o próprio Hércules o era.
Ubaitaba
Um dos nossos semideuses de Pindorama vem de um lugar chamado Ubaitaba, na Bahia. O nome de origem tupi foi celebrado como “cidade das canoas” nas redes sociais após a conquista espetacular de Isaquias Queiroz em Tóquio, o primeiro ouro da canoagem brasileira. Na verdade, “ubá-y-taba” significa “canoa-rio (água)-taba (aldeia)”, uma ideia mais aproximada do real significado desse nome seria “o rio da aldeia das canoas”, que remete à existência do povoamento macro-tupi dessa área da Bahia, a partir do interior de Itacaré e de tantos outros nomes de municípios de toponímia tupi de toda essa região.
Forte como um touro de Creta e destro como o próprio Hércules, dissociar o herói “sem rim” de Ubaitaba dos indígenas, seus antepassados, é impraticável. O fato de Isaquias ter se consagrado com o remo – instrumento de trabalho de tantos locais que cruzaram aquele mesmo rio em busca de transporte, caça e peixes – torna essa conquista transcendental, mitológica. Só quem já se banhou no rio da aldeia das canoas (atual rio das Contas), como este aqui quem escreve, entende por que o aparecimento de Hércules brasileiros como Isaquias é tão importante. Louvemos a Zeus e a Ubaitaba.
Tucano, papagaios e skate
Ela, na verdade, é uma Fadinha, mas bem que poderia ser chamada também de Imperatriz do Skate, como o nome da cidade onde mora, no Maranhão. Rayssa Leal encantou o mundo, sem falso exagero, ao ganhar a medalha de prata dançando TikTok no stadium olímpico. A astúcia e destreza de Hércules não poderiam ser melhor encarnadas do que numa menina de 13 anos dando um salto com flip para depois deslizar num corrimão de 2,5 metros com uma tábua com rodinhas e, ao tocar o solo, ficar de pé. Feito só comparado às mortais corridas de bigas dos Jogos da antiguidade.
A prodígio da Amazônia mora na beira do imponente rio Tocantins, que nasce na Serra Dourada, em Goiás, percorre todo o Tocantins, atravessa o Maranhão e sobe o Pará até desaguar no Golfo Marajoara, onde outrora existiu uma civilização de dar inveja aos gregos. O próprio rio Tocantins (“tukano” + “tim” = bico de tucano) é casa de inúmeras etnias indígenas de Pindorama. Apenas na região onde se localiza a atual cidade de Imperatriz, ainda sobrevive um pequeno microcosmo de sua ocupação original. Lugar da Terra Indígena Arariboia. A menos de 100 quilômetros da cidade, terras demarcadas garantem a eternidade para povos tupis Awá e Guajajara-Tenetehara originários do Maranhão, mas ao sul a 80 quilômetros os Krikati e Gavião de língua pertencente ao tronco Jê habitam outra reserva composta por serras, local de refúgio, conquistado a duras penas.
O velho Tocantins é a casa de muitos nacionais que ajudaram a moldar o povo local composto por migrantes a procura de lugares férteis, produto que não falta. Ao olhar para a pequena kunhataímirim em cima do skate também é impossível dissociá-la de sua ancestralidade única do coração de Pindorama. O carisma, a simpatia, a leveza, a irreverência e a habilidade extraordinária são características do nosso povo, o povo novo, como preferia Darcy Ribeiro. Porque aquela que nasceu no Bico do Tucano, só poderia mesmo ser uma semideusa.
Hércules se levantou e escolheu bem lá em Davinópolis, município apegado a Imperatriz, nas bordas da Reserva da Mata Grande, onde o babaçu abunda e o segredo de Zeus estará bem guardado com a bisavó Dona Joana. Ela é quem conta as histórias de antigamente, enquanto brinca com os papagaios de estimação como faziam as antigas avós indígenas, ela é quem conta como mata a pauladas as cobras que aparecem no terreno e que achava que a neta podia se machucar andando de skate. Para quem já foi a Imperatriz do rio Tocantins três vezes, e em todas elas mergulhou em suas águas, fica mais fácil perceber como Hércules é atento as coisas de Zeus.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, já na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
2020, O ANO QUE NÃO COMEÇOU Por Elisa Ventura e Nélida Capela Em seu mais recente livro publicado no Brasil, Um mundo sem livros e sem livrarias?, Roger Chartier, a propósito do tema “livrarias”, diz que “é mais necessário do que nunca recordar a importância fundamental das livrarias no tecido das instituições que constituem o …
TIPOETAS por Ana Elisa Ribeiro Outro dia saí só para sair de casa; para tomar um ar; para subir e descer umas ruas; para alimentar a alma; para tomar uma água mineral sem gás; para sentir calor fora do quarto; para rever uma amiga; para ouvir a voz de outrem; para andar de carro …
UMA EXPERIÊNCIA OUTRA COM A LINGUAGEM Por Carolina Correia dos Santos Existe uma relação entre a tagarelice e a posição feminina na linguagem? Por que, na tradição ocidental, as mulheres estão comumente associadas ou à posição silenciosa ou à posição verborrágica, muitas vezes esta última compreendida como excessiva, tagarela? Existe uma linguagem feminina? Assim …
Para ter acessos às páginas iniciais, ao sumário e às apresentações de Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores para o livro “Batendo pasto”, de Maria Lúcia Alvim, clique aqui. Para comprar o livro, clique aqui.
COLUNA PINDORAMA
OS HÉRCULES DE PINDORAMA
por Rafael Freitas da Silva
Ganhar uma medalha olímpica é ser um herói, simplesmente isso. Gosto da antiga lenda grega que associa a criação dos Jogos Olímpicos à figura de Hércules quando da execução de seus 12 trabalhos impossíveis. Após completá-los com sua força descomunal, rapidez e astúcia sem igual, o herói mitológico teria construído um templo em homenagem a Zeus, seu pai. O stadium era o lugar onde os jogos da antiguidade grega aconteciam de quatro em quatro anos. Onde os homens tentavam ser como Hércules. Durante mais de mil anos essas festas e demonstrações eram realizadas na Grécia (aproximadamente dos anos de 700 a.C. a 400 d.C.) incluindo provas de força, lutas, corridas a pé e equestres com representantes de cada região do mar Egeu. Os vencedores eram louvados e imortalizados com poemas e estátuas. Os Jogos Olímpicos também eram cerimônias religiosas aos deuses gregos, em especial o já citado Zeus. Corpo e alma. Por isso, os campeões olímpicos da antiguidade certamente alcançavam o status “temporário” de semideuses, assim como o próprio Hércules o era.
Ubaitaba
Um dos nossos semideuses de Pindorama vem de um lugar chamado Ubaitaba, na Bahia. O nome de origem tupi foi celebrado como “cidade das canoas” nas redes sociais após a conquista espetacular de Isaquias Queiroz em Tóquio, o primeiro ouro da canoagem brasileira. Na verdade, “ubá-y-taba” significa “canoa-rio (água)-taba (aldeia)”, uma ideia mais aproximada do real significado desse nome seria “o rio da aldeia das canoas”, que remete à existência do povoamento macro-tupi dessa área da Bahia, a partir do interior de Itacaré e de tantos outros nomes de municípios de toponímia tupi de toda essa região.
Forte como um touro de Creta e destro como o próprio Hércules, dissociar o herói “sem rim” de Ubaitaba dos indígenas, seus antepassados, é impraticável. O fato de Isaquias ter se consagrado com o remo – instrumento de trabalho de tantos locais que cruzaram aquele mesmo rio em busca de transporte, caça e peixes – torna essa conquista transcendental, mitológica. Só quem já se banhou no rio da aldeia das canoas (atual rio das Contas), como este aqui quem escreve, entende por que o aparecimento de Hércules brasileiros como Isaquias é tão importante. Louvemos a Zeus e a Ubaitaba.
Tucano, papagaios e skate
Ela, na verdade, é uma Fadinha, mas bem que poderia ser chamada também de Imperatriz do Skate, como o nome da cidade onde mora, no Maranhão. Rayssa Leal encantou o mundo, sem falso exagero, ao ganhar a medalha de prata dançando TikTok no stadium olímpico. A astúcia e destreza de Hércules não poderiam ser melhor encarnadas do que numa menina de 13 anos dando um salto com flip para depois deslizar num corrimão de 2,5 metros com uma tábua com rodinhas e, ao tocar o solo, ficar de pé. Feito só comparado às mortais corridas de bigas dos Jogos da antiguidade.
A prodígio da Amazônia mora na beira do imponente rio Tocantins, que nasce na Serra Dourada, em Goiás, percorre todo o Tocantins, atravessa o Maranhão e sobe o Pará até desaguar no Golfo Marajoara, onde outrora existiu uma civilização de dar inveja aos gregos. O próprio rio Tocantins (“tukano” + “tim” = bico de tucano) é casa de inúmeras etnias indígenas de Pindorama. Apenas na região onde se localiza a atual cidade de Imperatriz, ainda sobrevive um pequeno microcosmo de sua ocupação original. Lugar da Terra Indígena Arariboia. A menos de 100 quilômetros da cidade, terras demarcadas garantem a eternidade para povos tupis Awá e Guajajara-Tenetehara originários do Maranhão, mas ao sul a 80 quilômetros os Krikati e Gavião de língua pertencente ao tronco Jê habitam outra reserva composta por serras, local de refúgio, conquistado a duras penas.
O velho Tocantins é a casa de muitos nacionais que ajudaram a moldar o povo local composto por migrantes a procura de lugares férteis, produto que não falta. Ao olhar para a pequena kunhataímirim em cima do skate também é impossível dissociá-la de sua ancestralidade única do coração de Pindorama. O carisma, a simpatia, a leveza, a irreverência e a habilidade extraordinária são características do nosso povo, o povo novo, como preferia Darcy Ribeiro. Porque aquela que nasceu no Bico do Tucano, só poderia mesmo ser uma semideusa.
Hércules se levantou e escolheu bem lá em Davinópolis, município apegado a Imperatriz, nas bordas da Reserva da Mata Grande, onde o babaçu abunda e o segredo de Zeus estará bem guardado com a bisavó Dona Joana. Ela é quem conta as histórias de antigamente, enquanto brinca com os papagaios de estimação como faziam as antigas avós indígenas, ela é quem conta como mata a pauladas as cobras que aparecem no terreno e que achava que a neta podia se machucar andando de skate. Para quem já foi a Imperatriz do rio Tocantins três vezes, e em todas elas mergulhou em suas águas, fica mais fácil perceber como Hércules é atento as coisas de Zeus.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, já na 5ª edição. Prepara a publicação do próximo livro, Arariboia.
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Apresentações de Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores para “Batendo pasto”, de Maria Lúcia Alvim
Para ter acessos às páginas iniciais, ao sumário e às apresentações de Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores para o livro “Batendo pasto”, de Maria Lúcia Alvim, clique aqui. Para comprar o livro, clique aqui.