No ano passado organizamos com o Rafael Gutiérrez uma coletânea de ensaios para a Relicário. A ideia era simples: cada um escreveria sobre o que bem entendesse, da forma como desejasse. Foi nossa única orientação. Se fosse para o livro ter alguma unidade, ela só apareceria depois, quando o volume ficasse pronto. E se calhasse de os textos não terem nenhum ponto de contato, melhor ainda. Nossa proposta, quase um procedimento, era confiar no imprevisto. Deixar o acaso trabalhar.
Acontece que, para fazer esse convite meio anárquico, precisávamos encontrar um título sedutor que sintetizasse com perfeição o que procurávamos. E o que é que a gente estava buscando, no fim das contas? Ainda não sabíamos com total clareza. Mas sabíamos que passava por falar de si mesmo como forma de compreender algo sobre o mundo. Passava por fazer da crítica, do comentário sobre livros, um espaço para experimentar com a matéria autobiográfica. Passava pela aposta na invenção e na ousadia como modo de seguir reivindicando, ainda hoje, a longa tradição do ensaísmo.
O título veio por sorte, e não poderia ser de outra maneira. Um dos autores que desde as primeiras conversas tínhamos pensado em convidar foi o Teodoro Rennó Assunção, professor de língua e de literatura grega na UFMG. Foi folheando um livro dele, meio no desespero, que demos de cara com esta passagem: “O ensaio aqui ainda uma vez quer honrar o seu nome, sendo um experimento aberto (isto é, comportando alguma invenção) inclusive com as fronteiras do gênero”. Era quase o resumo perfeito do que tínhamos idealizado: o sintagma “experimento aberto” era tão rico que, por si só, poderia servir de bússola, a única possível, para os autores da coletânea. Batemos o martelo, o título seria esse.
Passados alguns meses, o material que tínhamos em mãos era dos mais variados. Um dos ensaios tratava do banheiro como espaço de leitura, outro era sobre gibis de super-heróis e lembranças familiares. Havia ainda as confissões de um astrólogo cético, a fantasia de um autor brasileiro de um dia se tornar um “crítico rosarino”, o relato do escritor que sonhava em destruir seus arquivos de romances não publicados, um diário sobre literatura e vida feito sob a forma de postagens no Facebook, textos sobre o estranhamento que as viagens podem causar (seja para participar de um congresso de literatura ou ir a um simples passeio de fim de semana no meio do mato).“Vertebrado pela rigorosa arquitetura do acaso”: é como Paulo Roberto Pires descreve Experimento aberto na orelha do livro. Se havia algum traço de unidade ali, ele estava na atitude, na pegada ensaística que marcava cada um dos textos.
Um ano depois da publicação da coletânea, quando o livro começa a encontrar o seu público, nos chega o convite da Relicário para uma coluna no blog da editora. Uma coluna? Uma coluna para escrever sobre o quê, exatamente? Ora, para escrever sobre o que vocês bem entenderem, da forma como desejarem!
Não tem melhor argumento. Pensamos logo no experimento aberto como um dos pontos de contato dos nossos interesses de escrita: a vontade de experimentar temas, lugares, formas, de ensaiar no sentido que o termo ganha no teatro. No sentido enobrecido por Beckett — “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor” — e depois por Leminski — “nunca cometo o mesmo erro/ duas vezes/ já cometo duas três/ quatro cinco seis/ até esse erro aprender/ que só o erro tem vez”.
Ensaiar para experimentar abertamente, como desafio ao erro, como aperfeiçoamento do erro que, talvez, na melhor das hipóteses, pode ser um modo de melhorar nossa escrita e, na pior, uma chateação breve aos leitores desta coluna.
Ieda Magri nasceu em Águas Frias, Santa Catarina, e vive no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora na UERJ, publicou os romances Um crime bárbaro (Autêntica, 2022), Ninguém (7Letras, 2016) e Olhos de bicho (Rocco, 2013) – bolsa Funarte de Criação Literária e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura –, além do livro de contos Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007). Pela Relicário publicou o livro Uma exposição, semifinalista do prêmio Oceanos 2022 e 2º lugar no prêmio Machado de Assis (Romance) | prêmio Biblioteca Nacional 2022.
Felipe Charbel nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Formado em História pela UERJ, tem doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Professor de História da UFRJ, é autor de Janelas irreais(Relicário, 2018), Timoneiros: retórica, prudência e história emMaquiavel e Guicciardini (EdUnicamp, 2010), entre outros.
Resta por fazer uma coluna — ou um livro — ou ambos — com escritores (ainda) não publicados. Apalpar a matéria informe da literatura por vir em toda sua candência ardente. Um pouco como morrer sem dor. Tipografia viva, a vindoura.
LI SEU DIÁRIO por Ana Elisa Ribeiro Não sei mais se era uma agenda ou um diário. Acho que não tinha cadeado. Eu me lembro da capa dura com o desenho do Garfield, que adorava e com quem me solidarizava no ódio às segundas-feiras. Isso passou. Hoje tenho mais horror aos domingos. E, às …
URUÇUMIRIM VIVE por Rafael Freitas da Silva Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade …
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COLUNA EXPERIMENTO ABERTO
A ESCRITA COMO DESAFIO E APERFEIÇOAMENTO DO ERRO
Por Ieda Magri & Felipe Charbel
No ano passado organizamos com o Rafael Gutiérrez uma coletânea de ensaios para a Relicário. A ideia era simples: cada um escreveria sobre o que bem entendesse, da forma como desejasse. Foi nossa única orientação. Se fosse para o livro ter alguma unidade, ela só apareceria depois, quando o volume ficasse pronto. E se calhasse de os textos não terem nenhum ponto de contato, melhor ainda. Nossa proposta, quase um procedimento, era confiar no imprevisto. Deixar o acaso trabalhar.
Acontece que, para fazer esse convite meio anárquico, precisávamos encontrar um título sedutor que sintetizasse com perfeição o que procurávamos. E o que é que a gente estava buscando, no fim das contas? Ainda não sabíamos com total clareza. Mas sabíamos que passava por falar de si mesmo como forma de compreender algo sobre o mundo. Passava por fazer da crítica, do comentário sobre livros, um espaço para experimentar com a matéria autobiográfica. Passava pela aposta na invenção e na ousadia como modo de seguir reivindicando, ainda hoje, a longa tradição do ensaísmo.
Passados alguns meses, o material que tínhamos em mãos era dos mais variados. Um dos ensaios tratava do banheiro como espaço de leitura, outro era sobre gibis de super-heróis e lembranças familiares. Havia ainda as confissões de um astrólogo cético, a fantasia de um autor brasileiro de um dia se tornar um “crítico rosarino”, o relato do escritor que sonhava em destruir seus arquivos de romances não publicados, um diário sobre literatura e vida feito sob a forma de postagens no Facebook, textos sobre o estranhamento que as viagens podem causar (seja para participar de um congresso de literatura ou ir a um simples passeio de fim de semana no meio do mato).“Vertebrado pela rigorosa arquitetura do acaso”: é como Paulo Roberto Pires descreve Experimento aberto na orelha do livro. Se havia algum traço de unidade ali, ele estava na atitude, na pegada ensaística que marcava cada um dos textos.
Um ano depois da publicação da coletânea, quando o livro começa a encontrar o seu público, nos chega o convite da Relicário para uma coluna no blog da editora. Uma coluna? Uma coluna para escrever sobre o quê, exatamente? Ora, para escrever sobre o que vocês bem entenderem, da forma como desejarem!
Não tem melhor argumento. Pensamos logo no experimento aberto como um dos pontos de contato dos nossos interesses de escrita: a vontade de experimentar temas, lugares, formas, de ensaiar no sentido que o termo ganha no teatro. No sentido enobrecido por Beckett — “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor” — e depois por Leminski — “nunca cometo o mesmo erro/ duas vezes/ já cometo duas três/ quatro cinco seis/ até esse erro aprender/ que só o erro tem vez”.
Ensaiar para experimentar abertamente, como desafio ao erro, como aperfeiçoamento do erro que, talvez, na melhor das hipóteses, pode ser um modo de melhorar nossa escrita e, na pior, uma chateação breve aos leitores desta coluna.
Ieda Magri nasceu em Águas Frias, Santa Catarina, e vive no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora na UERJ, publicou os romances Um crime bárbaro (Autêntica, 2022), Ninguém (7Letras, 2016) e Olhos de bicho (Rocco, 2013) – bolsa Funarte de Criação Literária e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura –, além do livro de contos Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007). Pela Relicário publicou o livro Uma exposição, semifinalista do prêmio Oceanos 2022 e 2º lugar no prêmio Machado de Assis (Romance) | prêmio Biblioteca Nacional 2022.
Felipe Charbel nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Formado em História pela UERJ, tem doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Professor de História da UFRJ, é autor de Janelas irreais (Relicário, 2018), Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini (EdUnicamp, 2010), entre outros.
Um comentário em “COLUNA EXPERIMENTO ABERTO”
Heraclitóris
Resta por fazer uma coluna — ou um livro — ou ambos — com escritores (ainda) não publicados. Apalpar a matéria informe da literatura por vir em toda sua candência ardente. Um pouco como morrer sem dor. Tipografia viva, a vindoura.
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