Palavras podem voar? Sair por aí, flanando? Podem cair, equilibrar-se, flutuar?
Santo Agostinho pensava na palavra como um sinal, capaz de recordar ou apontar para algo. Já Abelardo fez uma pergunta bem mais interessante: o que seria do nome da rosa, se no mundo não existissem rosas?
O que acontece quando a palavra se esquiva de sua função referencial, e não aponta nem para esta nem para aquela coisa? Quando não há mais coisa a referir-se? Não seria justo dizer que ela então flutua?
As teorias da linguagem são muitas. Basta lembrar a suposição de que, na aurora da linguagem, estaria o canto e, talvez, a onomatopeia. Assustado, alguém imitou o ruído do animal que se aproximava, e aquele ruído virou a palavra capaz de alertar e proteger o grupo do perigo. É uma visão bonita e engraçada, mas deixa de lado o fato de que também o mundo não humano tem suas próprias linguagens.
Origem
“Asa da Palavra” é o nome desta coluna, que estreia hoje no Blog da Relicário. A expressão vem da leitura de Guimarães Rosa por Caetano Veloso: “margem da palavra/ entre as escuras duas/ margens da palavra/ clareira, luz madura/ rosa da palavra” e, mais adiante, “asa da palavra/ asa parada agora/ casa da palavra/ onde o silêncio mora/ brasa da palavra/ a hora clara, nosso pai”.
As palavras ardem e voam, planam e clareiam. Mas pousam? Qual seria o pouso alegre das palavras? Em que estalagem à beira da estrada elas descansam? Em que momento deixam de expressar, exaustas? Qual o último suspiro de uma palavra? O que é uma palavra dita pela última vez, por aquele que a pronunciou antes de desaparecer, ele, o último da aldeia? Será “rosa”, apenas o nome da rosa?
Sentidos e representações
Ainda não sei o que aparecerá nesta coluna, nos próximos meses: literatura, crítica, ensaio, imagens, sons. Seja como for, gosto de pensar nas palavras que planam sem que saibamos onde elas vão pousar. Asa parada, agora, da palavra: como se o sentido se estirasse diante de nós, pronto a entregar-se. No entanto, os que lemos e amamos a literatura sabemos que basta chegar perto do sentido para vê-lo retrair-se. Quando pensávamos agarrá-la, a palavra desliza e se perde no mundo das letras.
Mundo das letras? Dos sons? Ou de tudo que é sentido?
Penso no comentário de Arnaldo Antunes sobre livro de João Bandeira: “Uma linguagem à flor da pele (a flor, a pele)/ Da linguagem/ Das coisas”.
Tratar-se-ia da pele da linguagem das próprias coisas, ali onde as coisas são só coisas, impermeáveis à nossa linguagem? Mas haverá tal coisa?
Penso ainda em “The Doorway”, de Louise Glück: “I wanted to stay as I was,/ still as the world is never still,/ not in midsummer but the moment before/ the first flower forms, the moment/ nothing is as yet past—”. Traduzo os versos, prosaicamente: “Eu queria ficar como eu estava/ parada como o mundo nunca é,/ não em pleno verão mas logo antes/ da primeira flor formar-se, no momento/ em que nada é ainda passado—”.
O poema, cujo título poderia ser traduzido por “A soleira”, termina com estas duas estrofes: “Prior to flowering, the epoch of mastery// before the appearance of the gift,/ before possession”. Em tradução livre: “Antes do florescer, a época da compreensão// antes do aparecimento do que se dá,/ antes de possuí-lo.”
A intenção de capturar o sentido é vã. Por isso, a poeta quer viver na soleira, vendo o mundo que vai existindo (valha o gerúndio), no momento exato em que ele ainda não passou, em que não é possível fixá-lo como uma natureza morta (“natureza-morta” — still life, em inglês).
Uma linguagem à flor da pele da linguagem das coisas requer abandonar o desejo de possuir o mundo, deixando que ele apenas seja. De fato, a linguagem tem um pouco desse lado sombrio e totalitário de quem quer parar o mundo para enquadrá-lo. Mas surge aí Wittgenstein a nos lembrar que a linguagem é movediça: cada peça pressupõe outra e, quando nos damos conta, estamos em pleno jogo com as palavras, atirando-as ao ar para que voem até onde puderem aterrissar.
Um jogo válido é o puro encantamento da comunhão. Carlos Papá, do povo Guarani Mbya, lembra que muito antes do celular os fios das mensagens se estendiam pela terra e pelo céu, permitindo a comunicação dentre a floresta. Recentemente assisti a uma aula em que Papá falava do poder das gotículas da neblina, que levam para longe as palavras dos pajés. Uma espécie de vapor significante envolve quem entrega o espírito à Nhe’éry; isto é, àquilo que também é chamado de Mata Atlântica e que os indígenas veem como o lugar onde as almas se banham.
Eis a intenção desta coluna: roçar palavras que voam, buscando o momento em que as coisas não se tornaram passado, quando elas estão ainda protegidas da terrível vontade de possuí-las. Falar das coisas sem ter de dominá-las. Coisas várias, intensas ou não, mas, inevitavelmente, por um fio — o fio das palavras que voam.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
NABOS, COMPUTADORES E MARACÁS por Adriana Lisboa O apanhador de nabos Mostra o caminho Com um nabo – Kobayashi Issa (1763-1826) O que poderão a literatura e a arte no nosso mundo, hoje? Como é que elas podem ser “por nós”? Cortázar dizia ser a literatura uma das formas da felicidade humana. Para …
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COLUNA ASA DA PALAVRA
O FIO DAS PALAVRAS QUE VOAM
por Pedro Meira Monteiro
Santo Agostinho pensava na palavra como um sinal, capaz de recordar ou apontar para algo. Já Abelardo fez uma pergunta bem mais interessante: o que seria do nome da rosa, se no mundo não existissem rosas?
O que acontece quando a palavra se esquiva de sua função referencial, e não aponta nem para esta nem para aquela coisa? Quando não há mais coisa a referir-se? Não seria justo dizer que ela então flutua?
As teorias da linguagem são muitas. Basta lembrar a suposição de que, na aurora da linguagem, estaria o canto e, talvez, a onomatopeia. Assustado, alguém imitou o ruído do animal que se aproximava, e aquele ruído virou a palavra capaz de alertar e proteger o grupo do perigo. É uma visão bonita e engraçada, mas deixa de lado o fato de que também o mundo não humano tem suas próprias linguagens.
Origem
“Asa da Palavra” é o nome desta coluna, que estreia hoje no Blog da Relicário. A expressão vem da leitura de Guimarães Rosa por Caetano Veloso: “margem da palavra/ entre as escuras duas/ margens da palavra/ clareira, luz madura/ rosa da palavra” e, mais adiante, “asa da palavra/ asa parada agora/ casa da palavra/ onde o silêncio mora/ brasa da palavra/ a hora clara, nosso pai”.
As palavras ardem e voam, planam e clareiam. Mas pousam? Qual seria o pouso alegre das palavras? Em que estalagem à beira da estrada elas descansam? Em que momento deixam de expressar, exaustas? Qual o último suspiro de uma palavra? O que é uma palavra dita pela última vez, por aquele que a pronunciou antes de desaparecer, ele, o último da aldeia? Será “rosa”, apenas o nome da rosa?
Sentidos e representações
Ainda não sei o que aparecerá nesta coluna, nos próximos meses: literatura, crítica, ensaio, imagens, sons. Seja como for, gosto de pensar nas palavras que planam sem que saibamos onde elas vão pousar. Asa parada, agora, da palavra: como se o sentido se estirasse diante de nós, pronto a entregar-se. No entanto, os que lemos e amamos a literatura sabemos que basta chegar perto do sentido para vê-lo retrair-se. Quando pensávamos agarrá-la, a palavra desliza e se perde no mundo das letras.
Mundo das letras? Dos sons? Ou de tudo que é sentido?
Penso no comentário de Arnaldo Antunes sobre livro de João Bandeira: “Uma linguagem à flor da pele (a flor, a pele)/ Da linguagem/ Das coisas”.
Tratar-se-ia da pele da linguagem das próprias coisas, ali onde as coisas são só coisas, impermeáveis à nossa linguagem? Mas haverá tal coisa?
Penso ainda em “The Doorway”, de Louise Glück: “I wanted to stay as I was,/ still as the world is never still,/ not in midsummer but the moment before/ the first flower forms, the moment/ nothing is as yet past—”. Traduzo os versos, prosaicamente: “Eu queria ficar como eu estava/ parada como o mundo nunca é,/ não em pleno verão mas logo antes/ da primeira flor formar-se, no momento/ em que nada é ainda passado—”.
O poema, cujo título poderia ser traduzido por “A soleira”, termina com estas duas estrofes: “Prior to flowering, the epoch of mastery// before the appearance of the gift,/ before possession”. Em tradução livre: “Antes do florescer, a época da compreensão// antes do aparecimento do que se dá,/ antes de possuí-lo.”
A intenção de capturar o sentido é vã. Por isso, a poeta quer viver na soleira, vendo o mundo que vai existindo (valha o gerúndio), no momento exato em que ele ainda não passou, em que não é possível fixá-lo como uma natureza morta (“natureza-morta” — still life, em inglês).
Uma linguagem à flor da pele da linguagem das coisas requer abandonar o desejo de possuir o mundo, deixando que ele apenas seja. De fato, a linguagem tem um pouco desse lado sombrio e totalitário de quem quer parar o mundo para enquadrá-lo. Mas surge aí Wittgenstein a nos lembrar que a linguagem é movediça: cada peça pressupõe outra e, quando nos damos conta, estamos em pleno jogo com as palavras, atirando-as ao ar para que voem até onde puderem aterrissar.
Um jogo válido é o puro encantamento da comunhão. Carlos Papá, do povo Guarani Mbya, lembra que muito antes do celular os fios das mensagens se estendiam pela terra e pelo céu, permitindo a comunicação dentre a floresta. Recentemente assisti a uma aula em que Papá falava do poder das gotículas da neblina, que levam para longe as palavras dos pajés. Uma espécie de vapor significante envolve quem entrega o espírito à Nhe’éry; isto é, àquilo que também é chamado de Mata Atlântica e que os indígenas veem como o lugar onde as almas se banham.
Eis a intenção desta coluna: roçar palavras que voam, buscando o momento em que as coisas não se tornaram passado, quando elas estão ainda protegidas da terrível vontade de possuí-las. Falar das coisas sem ter de dominá-las. Coisas várias, intensas ou não, mas, inevitavelmente, por um fio — o fio das palavras que voam.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
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