“Distante”, eu escrevo. E logo me pergunto como medimos as distâncias. Quantas vezes a impressão é de que o mais distante é o que nos ladeia, tamanha a incomunicabilidade, tamanha a extensão das trincheiras. Um homem berra na cara de outro e sei que eles podem farejar, um no outro, o hálito, o suor – e, sob essas coisas da ordem do corpo, outras mais, uma raiva de cem mil anos, o medo igualmente velho de estar no mundo.
Por que será que desenhamos, há cem mil anos, aquelas linhas na pequena pedra ocre, a pedra encontrada numa caverna da costa sul-africana? Terá sido por que nos sentimos perto demais de tudo ou distantes demais de tudo? Terá sido por terror ou enlevo, por amor, por intuir que é possível apanhar uma pedra ocre e com um punhado de traços paralelos e oblíquos dizer: que bonito? E o que é “que bonito”? E para que serve?, reverbera a pergunta nos dias do mercado. Ao nosso lado há também animais ressonando tranquilos, essa é a verdade. Animais inocentes na mais inocente acepção da palavra. Inocentes mesmo em sua violência, algo que jamais poderá ser dito de nós.
“Distante”, eu escrevo. Quando meu próprio corpo talvez seja farelo de um corpo de estrela enterrado lá para os lados do Aglomerado El Gordo, a alguns bilhões de anos-luz daqui. Distante sou eu. Distante é o coração visto das pontas destes dedos que tocam, escrevem, tremem. Distante é o coração visto da cara do homem que berra na cara do outro homem. E o que é isso que se perde no trajeto? Como seria a linguagem pura dos sentidos na fonte – o Aglomerado El Gordo do que depois se torna a nossa atabalhoada forma de estar no mundo? E como, como estar no mundo? Será uma pedra ocre com um punhado de traços paralelos e oblíquos o suficiente? Dizer: passei por aqui há cem mil anos e entalhei uma pedra ocre. Não havia esse nome, entalhe, não havia esse nome, pedra, não havia a designação geográfica “costa sul-africana”. As fronteiras eram o fogo e o cheiro do meu corpo. Meu corpo de pedra. Meu corpo de estrela.
“Distante”, eu escrevo. Os castelos desmoronam, como estava previsto pelas cartas, e um sol nasce junto à cabeça nua dos pendurados de ponta-cabeça. Faz cem mil anos que estão pendurados de ponta-cabeça, com a promessa da luz do sol que nasce. E de tudo o que não sabemos fazemos um amarrado e depositamos no altar das coisas justas. Acreditando nelas. Acreditando que é nelas que acreditamos. Tentando encontrar o caminho que leve de nós a nós mesmos, pela via das palavras ou do silêncio, das cores ou da página-tela em branco. Da pedra ocre. Do abraço à distância, contemplando anos-luz de dúvidas, de tentativa e erro, de mensagens trocadas entre tantos passados e tantos futuros no ensaio do passo do dia de hoje.
“Distante”, eu escrevo, e o que quero dizer é perto, tão perto daqui.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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COLUNA ALFAIATARIA
CARTA A UM AMIGO DISTANTE
por Adriana Lisboa
Por que será que desenhamos, há cem mil anos, aquelas linhas na pequena pedra ocre, a pedra encontrada numa caverna da costa sul-africana? Terá sido por que nos sentimos perto demais de tudo ou distantes demais de tudo? Terá sido por terror ou enlevo, por amor, por intuir que é possível apanhar uma pedra ocre e com um punhado de traços paralelos e oblíquos dizer: que bonito? E o que é “que bonito”? E para que serve?, reverbera a pergunta nos dias do mercado. Ao nosso lado há também animais ressonando tranquilos, essa é a verdade. Animais inocentes na mais inocente acepção da palavra. Inocentes mesmo em sua violência, algo que jamais poderá ser dito de nós.
“Distante”, eu escrevo. Quando meu próprio corpo talvez seja farelo de um corpo de estrela enterrado lá para os lados do Aglomerado El Gordo, a alguns bilhões de anos-luz daqui. Distante sou eu. Distante é o coração visto das pontas destes dedos que tocam, escrevem, tremem. Distante é o coração visto da cara do homem que berra na cara do outro homem. E o que é isso que se perde no trajeto? Como seria a linguagem pura dos sentidos na fonte – o Aglomerado El Gordo do que depois se torna a nossa atabalhoada forma de estar no mundo? E como, como estar no mundo? Será uma pedra ocre com um punhado de traços paralelos e oblíquos o suficiente? Dizer: passei por aqui há cem mil anos e entalhei uma pedra ocre. Não havia esse nome, entalhe, não havia esse nome, pedra, não havia a designação geográfica “costa sul-africana”. As fronteiras eram o fogo e o cheiro do meu corpo. Meu corpo de pedra. Meu corpo de estrela.
“Distante”, eu escrevo. Os castelos desmoronam, como estava previsto pelas cartas, e um sol nasce junto à cabeça nua dos pendurados de ponta-cabeça. Faz cem mil anos que estão pendurados de ponta-cabeça, com a promessa da luz do sol que nasce. E de tudo o que não sabemos fazemos um amarrado e depositamos no altar das coisas justas. Acreditando nelas. Acreditando que é nelas que acreditamos. Tentando encontrar o caminho que leve de nós a nós mesmos, pela via das palavras ou do silêncio, das cores ou da página-tela em branco. Da pedra ocre. Do abraço à distância, contemplando anos-luz de dúvidas, de tentativa e erro, de mensagens trocadas entre tantos passados e tantos futuros no ensaio do passo do dia de hoje.
“Distante”, eu escrevo, e o que quero dizer é perto, tão perto daqui.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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