O idioma materno [envio em 03/11]

“Sublinhar livros

Os livros, obviamente, são feitos de frases, que são como os tijolos da construção. Assim como é difícil notar a beleza de um tijolo, as frases, quando lemos, passam relativamente despercebidas, arrastadas pelo fluxo do discurso, como deve ser. Ater-se demais a uma frase é sinal de imaturidade; o que importa em um livro é o conjunto, o edifício verbal, não seus componentes. No entanto, é um costume bastante difundido sublinhar livros. O sublinhado desmente o edifício e destaca o tijolo, o humilde tabique comprimido entre mil tabiques idênticos. É uma espécie de operação de resgate, como se cada sublinhado dissesse: salvem esta frase das garras do livro, libertem esta joia do pântano que a cerca. É sabido que quem começa a sublinhar não consegue parar; os sublinhados se multiplicam, uma praga toma conta do livro, outro livro surge dentro dele, uma república autônoma. O sublinhador pensa: se eu sublinhei aquela frase, como não vou sublinhar esta, e essa outra, e também aquela? O sublinhador se transforma em um segundo autor do livro, extrai dele o livro que gostaria de ter escrito, entra em disputa direta com o livro que lê, ao qual submete a uma caça implacável de frases sublinháveis. Um dia, tive que pedir um de meus livros numa biblioteca universitária para verificar uma informação. Descobri que o exemplar estava profusamente grifado. Fiquei lisonjeado, é claro, pois os sublinhados são a evidência de uma leitura cuidadosa e apaixonada. Logo, porém, fui tomado por um sentimento ambíguo que se tornou francamente incômodo. Eu não estava de acordo com os sublinhados. Meu anônimo leitor havia ignorado passagens que me pareciam marcantes e, no lugar delas, ressaltado linhas meramente funcionais, apáticas. Me senti em um conflito com meu próprio livro, traçando mentalmente meus próprios sublinhados, extraindo do meu livro um outro livro: aquele que eu queria escrever e que, só percebia agora, tinha escrito pela metade.”